Cristina Soreanu
Carta Maior
Em meio às turbulências externas e internas da economia e da política norte-americanas, a cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) realizada em Lisboa nos dias 19 e 20 de novembro de 2010, e a reunião do Conselho OTAN-Rússia, representaram uma inflexão para a administração de Barack Obama. Três dimensões puderam ser identificadas nestes eventos: o lançamento de novas diretrizes estratégicas; a tentativa de dar continuidade a políticas de 2009/2010 e o atendimento de demandas republicanas.
Sem sucesso, Obama e diversos líderes europeus utilizaram o evento como cortina de fumaça frente os problemas econômicos e para manter seus compromissos na OTAN, em particular a Guerra do Afeganistão, cujo custo doméstico é elevado. Para isso, as “grandes” questões temáticas da Cúpula, o lançamento do “Novo Conceito Estratégico da OTAN” e do “Novo Conselho OTAN-Rússia”, buscaram ser definidas como históricas. Entretanto, estas abordagens não trouxeram novidades. Tomando como base o “Novo Conceito Estratégico”, observou-se a reafirmação do papel global além do espaço geográfico (operações out of area) e a modernização da aliança.
Tais mecanismos já constavam das revisões anteriores de 1991 e 1999, marcos da transformação da instituição no pós-Guerra Fria. Em 1999, ano da operação militar em Kosovo, foi iniciado o processo de expansão ao Leste Europeu, que, em duas ondas, 1999 e 2002, completou-se. Diferente de outras alianças que simplesmente definharam ao atingir seu objetivo principal, a OTAN reinventou-se a partir do fim da contenção da URSS, ampliando sua missão além de suas fronteiras e seu discurso pró-democracia.
Mesmo os que se declaram isolacionistas ou unilateralistas nos EUA acreditam que a OTAN possui papel relevante. Além de representar a unidade do eixo ocidental, a aliança sustenta-se nesta trajetória de “sucesso”. Mais do que uma organização militar de segurança coletiva, que visava defender-se de um inimigo, desde o tempo da bipolaridade, a instituição foi apresentada como sustentáculo da democracia e do capitalismo na Europa Ocidental, i.e, do modelo liberal contraposto ao socialista-comunista. Militarmente, ela foi, e é, funcional para os interesses dos EUA, mas também europeus ocidentais, apesar das criticas eventuais.
A organização preserva o continente de custos e ônus econômicos e políticos. Mesmo em momentos de maior tensionamento como nos anos 1960 (França) e a Guerra do Iraque em 2002/2003, na qual EUA-Grã-Bretanha e os novos membros da Europa Oriental apóiaram a invasão, enquanto Alemanha e França mantiveram-se no “Eixo da Paz”, chegou-se a uma acomodação. Para o Leste Europeu, ela é a Cortina de Ferro sob outro signo, o da proteção diante do revisionismo russo, e, para as antigas repúblicas soviéticas um alvo almejado, mas que dificilmente será conquistado sem forte reação de Moscou.
Padrão similar observou-se na reunião do Conselho OTAN-Rússia, visando a construção da “Parceria Estratégica”. Em retrospecto, este foi seu terceiro lançamento, antecedido por 1999 e 2002. Em 1999 e 2002, as tentativas fracassaram por ações unilaterais norte-americanas que afastaram a Rússia das negociações, a Guerra de Kosovo e a Guerra do Iraque, respectivamente. No atual contexto o risco é similar, uma vez que os EUA demonstram sinais confusos em alguns compromissos negociados bilateramente. Dentre estes, menciona-se o “novo START”, Tratado de Redução de Armas Estratégicas, assinado em 2010 na cúpula bilateral Obama-Medvedev, que se compromete com a redução significativa de ogivas e de mísseis balísticos intercontinentais; as negociações “rumo ao zero” para o banimento de armas nucleares; e a instalação do escudo antimisseis no continente europeu.
Nestas dinâmicas, inserem-se as dimensões da continuidade da agenda e as demandas republicanas. Tanto o “Novo START” quanto o “rumo zero” já sofriam inúmeros questionamentos, uma vez que eram considerados políticas de fraqueza diante dos Estados “bandidos”, Irã e Coréia do Norte. Os dois países continuaram desenvolvendo seus arsenais e a Coréia do Norte detém comprovada capacidade nuclear, mesmo com as pressões da comunidade internacional e as Conversações das Seis Partes (EUA, Coréia do Norte, Coréia do Sul, Japão, Rússia e China). Ainda para ser votado no Congresso, o novo START pode ser revisto ou bloqueado, prática comum do Senado norte-americano.
No caso do escudo antimisseis, observa-se a mudança mais significativa da administração Obama: a promessa da retomada da construção e instalação do escudo, com implicações óbvias para os arsenais chinês e russo, e não só para as ameaças “oficiais” iraniana, norte-coreana e mesmo de terroristas que poderiam obter armas ilegalmente. Em março/abril, Obama e Medvedev tinham chegado a um acordo para a suspensão da instalação, devido ao interesse norte-americano em contar com o apoio russo às sanções contra o programa nuclear iraniano no CSONU. O impasse, contudo, permanece, contando com a resistência da China, e o pendor unilateral dos EUA no tema. Mesmo a Turquia, membro da OTAN, que negociou com o Brasil o Acordo Tripartite com o Irã, foi criticada por sua iniciativa de apaziguamento.
O rechaço à suspensão do escudo, na OTAN e em casa, levou ao anúncio da reativação do projeto. Apesar da Rússia negar que isso levaria a tensões renovadas, mantendo a pauta do presente Conselho OTAN-Rússia é preciso observar como o tema afetará as relações bilaterais de forma abrangente. A postura russa é de pragmatismo, consciente da impossibilidade de confrontar os EUA e a OTAN, mas preparado para a consolidação de alternativas via Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China).
Embora para os democratas o escudo não seja central, tendo sido abandonado pelo governo de Bill Clinton (1993/2000), para os republicanos sua prioridade é alta desde seu surgimento na Guerra Fria com Ronald Reagan (1981/1988), na forma da Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE), conhecida como “Guerra nas Estrelas”. Para muitos, foi a sombra do IDE um dos principais responsáveis pela aceleração do colapso soviético. A administração W. Bush (2001/2008) recuperara o programa como Teatro de Defesa de Mísseis (TMD). Nos cálculos da Casa Branca, ceder ao TMD envolve a aproximação com os republicanos para a aprovação do pendente START e para a continuidade da missão no Afeganistão desenhada pela Casa Branca: a ofensiva em 2010, o início do desengajamento em 2011 e o término do conflito em 2014. Resta aguardar se estas “trocas” políticas terão o efeito desejado, ou se no setor estratégico observar-se-á um recrudescimento do unilateralismo.
Mais importante do que estas táticas compensatórias, é a contínua percepção de que entre as instituições multilaterais, a OTAN continua sendo um dos poucos consensos remanescentes na agenda externa e espaço preferencial do exercício da hegemonia. Enquanto em outras esferas político-econômicas-sociais a projeção da liderança encontra-se limitada por seu declínio relativo, a ascensão de novos pólos e perda de vigor, na aliança transatlântica prevalece o poder militar norte-americano, sem diluição e sem, na maioria das vezes, contestação.
Carta Maior
Em meio às turbulências externas e internas da economia e da política norte-americanas, a cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) realizada em Lisboa nos dias 19 e 20 de novembro de 2010, e a reunião do Conselho OTAN-Rússia, representaram uma inflexão para a administração de Barack Obama. Três dimensões puderam ser identificadas nestes eventos: o lançamento de novas diretrizes estratégicas; a tentativa de dar continuidade a políticas de 2009/2010 e o atendimento de demandas republicanas.
Sem sucesso, Obama e diversos líderes europeus utilizaram o evento como cortina de fumaça frente os problemas econômicos e para manter seus compromissos na OTAN, em particular a Guerra do Afeganistão, cujo custo doméstico é elevado. Para isso, as “grandes” questões temáticas da Cúpula, o lançamento do “Novo Conceito Estratégico da OTAN” e do “Novo Conselho OTAN-Rússia”, buscaram ser definidas como históricas. Entretanto, estas abordagens não trouxeram novidades. Tomando como base o “Novo Conceito Estratégico”, observou-se a reafirmação do papel global além do espaço geográfico (operações out of area) e a modernização da aliança.
Tais mecanismos já constavam das revisões anteriores de 1991 e 1999, marcos da transformação da instituição no pós-Guerra Fria. Em 1999, ano da operação militar em Kosovo, foi iniciado o processo de expansão ao Leste Europeu, que, em duas ondas, 1999 e 2002, completou-se. Diferente de outras alianças que simplesmente definharam ao atingir seu objetivo principal, a OTAN reinventou-se a partir do fim da contenção da URSS, ampliando sua missão além de suas fronteiras e seu discurso pró-democracia.
Mesmo os que se declaram isolacionistas ou unilateralistas nos EUA acreditam que a OTAN possui papel relevante. Além de representar a unidade do eixo ocidental, a aliança sustenta-se nesta trajetória de “sucesso”. Mais do que uma organização militar de segurança coletiva, que visava defender-se de um inimigo, desde o tempo da bipolaridade, a instituição foi apresentada como sustentáculo da democracia e do capitalismo na Europa Ocidental, i.e, do modelo liberal contraposto ao socialista-comunista. Militarmente, ela foi, e é, funcional para os interesses dos EUA, mas também europeus ocidentais, apesar das criticas eventuais.
A organização preserva o continente de custos e ônus econômicos e políticos. Mesmo em momentos de maior tensionamento como nos anos 1960 (França) e a Guerra do Iraque em 2002/2003, na qual EUA-Grã-Bretanha e os novos membros da Europa Oriental apóiaram a invasão, enquanto Alemanha e França mantiveram-se no “Eixo da Paz”, chegou-se a uma acomodação. Para o Leste Europeu, ela é a Cortina de Ferro sob outro signo, o da proteção diante do revisionismo russo, e, para as antigas repúblicas soviéticas um alvo almejado, mas que dificilmente será conquistado sem forte reação de Moscou.
Padrão similar observou-se na reunião do Conselho OTAN-Rússia, visando a construção da “Parceria Estratégica”. Em retrospecto, este foi seu terceiro lançamento, antecedido por 1999 e 2002. Em 1999 e 2002, as tentativas fracassaram por ações unilaterais norte-americanas que afastaram a Rússia das negociações, a Guerra de Kosovo e a Guerra do Iraque, respectivamente. No atual contexto o risco é similar, uma vez que os EUA demonstram sinais confusos em alguns compromissos negociados bilateramente. Dentre estes, menciona-se o “novo START”, Tratado de Redução de Armas Estratégicas, assinado em 2010 na cúpula bilateral Obama-Medvedev, que se compromete com a redução significativa de ogivas e de mísseis balísticos intercontinentais; as negociações “rumo ao zero” para o banimento de armas nucleares; e a instalação do escudo antimisseis no continente europeu.
Nestas dinâmicas, inserem-se as dimensões da continuidade da agenda e as demandas republicanas. Tanto o “Novo START” quanto o “rumo zero” já sofriam inúmeros questionamentos, uma vez que eram considerados políticas de fraqueza diante dos Estados “bandidos”, Irã e Coréia do Norte. Os dois países continuaram desenvolvendo seus arsenais e a Coréia do Norte detém comprovada capacidade nuclear, mesmo com as pressões da comunidade internacional e as Conversações das Seis Partes (EUA, Coréia do Norte, Coréia do Sul, Japão, Rússia e China). Ainda para ser votado no Congresso, o novo START pode ser revisto ou bloqueado, prática comum do Senado norte-americano.
No caso do escudo antimisseis, observa-se a mudança mais significativa da administração Obama: a promessa da retomada da construção e instalação do escudo, com implicações óbvias para os arsenais chinês e russo, e não só para as ameaças “oficiais” iraniana, norte-coreana e mesmo de terroristas que poderiam obter armas ilegalmente. Em março/abril, Obama e Medvedev tinham chegado a um acordo para a suspensão da instalação, devido ao interesse norte-americano em contar com o apoio russo às sanções contra o programa nuclear iraniano no CSONU. O impasse, contudo, permanece, contando com a resistência da China, e o pendor unilateral dos EUA no tema. Mesmo a Turquia, membro da OTAN, que negociou com o Brasil o Acordo Tripartite com o Irã, foi criticada por sua iniciativa de apaziguamento.
O rechaço à suspensão do escudo, na OTAN e em casa, levou ao anúncio da reativação do projeto. Apesar da Rússia negar que isso levaria a tensões renovadas, mantendo a pauta do presente Conselho OTAN-Rússia é preciso observar como o tema afetará as relações bilaterais de forma abrangente. A postura russa é de pragmatismo, consciente da impossibilidade de confrontar os EUA e a OTAN, mas preparado para a consolidação de alternativas via Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China).
Embora para os democratas o escudo não seja central, tendo sido abandonado pelo governo de Bill Clinton (1993/2000), para os republicanos sua prioridade é alta desde seu surgimento na Guerra Fria com Ronald Reagan (1981/1988), na forma da Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE), conhecida como “Guerra nas Estrelas”. Para muitos, foi a sombra do IDE um dos principais responsáveis pela aceleração do colapso soviético. A administração W. Bush (2001/2008) recuperara o programa como Teatro de Defesa de Mísseis (TMD). Nos cálculos da Casa Branca, ceder ao TMD envolve a aproximação com os republicanos para a aprovação do pendente START e para a continuidade da missão no Afeganistão desenhada pela Casa Branca: a ofensiva em 2010, o início do desengajamento em 2011 e o término do conflito em 2014. Resta aguardar se estas “trocas” políticas terão o efeito desejado, ou se no setor estratégico observar-se-á um recrudescimento do unilateralismo.
Mais importante do que estas táticas compensatórias, é a contínua percepção de que entre as instituições multilaterais, a OTAN continua sendo um dos poucos consensos remanescentes na agenda externa e espaço preferencial do exercício da hegemonia. Enquanto em outras esferas político-econômicas-sociais a projeção da liderança encontra-se limitada por seu declínio relativo, a ascensão de novos pólos e perda de vigor, na aliança transatlântica prevalece o poder militar norte-americano, sem diluição e sem, na maioria das vezes, contestação.
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