Juliana Sayuri
O Estado de São Paulo
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Em 1989, o economista argentino Alfredo Calcagno integrava a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), da ONU. Na época em Santiago do Chile, observou de perto o desenrolar das diretrizes do Consenso de Washington (com o afrouxamento das políticas econômicas do Estado em favor da liberalização do mercado) e as posteriores reviravoltas políticas para desatolar a economia latino-americana. Hoje em Genebra, Ph.D. pela Université Paris I - Panthéon-Sorbonne, 55 anos e oficial de Assuntos Econômicos da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), ele sente um déjà vu ao assistir às convulsões da crise europeia e projeta dias piores para 2012.
Piores, ele diz, porque os remédios atuais são similares aos que, na visão dele, fizeram mal ao serem empurrados goela abaixo dos latino-americanos nos anos 80 e 90. Um receituário "conhecido" e "equivocado" em suas palavras. Para debelar a infecção que se alastra levando empregos e esperanças no Velho Continente, Calcagno prescreve um Banco Central Europeu mais forte na formulação de políticas econômicas alternativas e firmeza contra os excessos do mundo financeiro: "Os governos precisam submeter os mercados ao bem comum. E não dá para simplesmente pedir: 'Por gentileza, comportem-se de outro modo, sejam altruístas, pensem no bem comum'. É ridículo. Não se pede a alguém que funcione contra sua natureza".
Analistas têm comparado a atual crise europeia com o passado latino-americano. A Grécia de hoje seria a Argentina de ontem. Faz sentido?
Depende. A história ensinou muito à América Latina e por isso ela foi se afastando das políticas propugnadas no Consenso de Washington. Aumentando o peso dos governos nas decisões econômicas, alguns sul-americanos lidaram bem com a crise em 2008 e 2009. Os que sofreram nos anos 80 e 90 aprenderam. Mas, como dizem, os pais não conseguem transmitir suas experiências aos filhos adolescentes. Então, a Europa terá de aprender por conta própria. E está fazendo da pior maneira. Há uma política de pressão por reformas liberais, por privatizar o que ainda não foi privatizado, por reduzir salários e serviços sociais. São medidas conjunturais e estruturais que lembram o passado recente da América Latina, quando as políticas econômicas eram discutidas e decididas fora da região. Elas vinham de Washington, sede do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e eram avalizadas nos Departamentos de Estado e de Comércio dos Estados Unidos. Na Europa está acontecendo algo parecido. É o setor financeiro - bancos e agências de classificação de risco - que está decidindo o que os países devem fazer. As políticas de ajustes são parecidas e não são os Parlamentos, os governos ou os partidos que decidem, porque, afinal, socialistas ou conservadores têm feito mais ou menos o mesmo. As decisões vêm da "troika": Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia. De certo modo, passamos por um revival do Consenso de Washington. Isso nos dá a sensação de que, neste momento na Europa, a democracia se torna cada vez mais formal e menos real.
Mas a Europa desconhece os riscos embutidos nesse revival?
O continente está sendo guiado por teorias econômicas equivocadas, a meu ver. A crise não foi causada pelo déficit fiscal, mas pela bolha financeira, pela irresponsabilidade do setor financeiro. O déficit é uma consequência da crise, não a causa. E, no entanto, todos estão empenhados em reduzi-lo. E os bancos e os especuladores causadores da crise continuam atuando como árbitros do mercado. Então, tanto a causa quanto a resposta para a crise estão equivocadas. O que eles estão fazendo? Cortando gastos e aumentando o imposto sobre o consumo. Nessa situação, os cortes fiscais reduzem ainda mais o crescimento e agravam a recessão. A Europa está às portas de uma grande recessão neste fim de 2011, e 2012 será ainda pior. Quando se reduz o gasto fiscal também se reduzem os ingressos fiscais, mas o déficit continua, o crescimento é ainda menor e os impostos ainda maiores. Então, é uma espiral descendente. E para quê? Para dar confiança aos mercados, que vão continuar a apertar os governos. Portugal, Itália e Espanha estão com taxas de juros cada vez mais altas, apesar dos ajustes. A França também. E, na quarta-feira, a Alemanha tomou seu primeiro revés, porque afinal não é uma ilha, tampouco pode pretender não sofrer os custos do que está acontecendo na Europa. As medidas não estão funcionando, mas os governos insistem. É um problema ideológico.
Haverá perdas no âmbito social?
É um risco. As políticas de ajustes na Europa agora também apontam para o corte de gastos sociais: aposentadorias, saúde, educação. Há aí um custo social, sobretudo se for visto pela questão do desemprego e dos salários congelados. Então, essa é uma crise em que pagam os mais pobres, porque as saídas encontradas jogam as cargas mais pesadas sobre os setores mais vulneráveis.
O sr. concorda com a opinião do economista francês Daniel Cohen, que compara a situação europeia à Grande Depressão de 1929?
Sim, mas pelo fato de as dificuldades, tanto em 1929 como agora, atingirem tão duramente os países mais fortes. Estados Unidos, Japão e Europa, que representam dois terços da economia mundial, têm crescimento muito baixo. Se os três grandes focos da economia desenvolvida freiam, estarão freando a economia mundial. Eles seriam os primeiros afetados, mas existe o risco de afetarem os outros também.
Até quando os países emergentes poderão dormir relativamente tranquilos, sem ter pesadelos com a contaminação da crise?
Essa é a grande pergunta, para a qual ainda não tenho resposta. Não sei se os investidores e agentes financeiros dos países emergentes estão tão tranquilos assim. Mas o crescimento nas nações em desenvolvimento tem se mantido forte. O problema é que se as grandes economias não crescem - ou se entram em recessão - isso afetará os preços das matérias-primas e dos produtos dos emergentes. As políticas desses países precisam privilegiar o fortalecimento dos mercados internos, regionais e do comércio sul-sul. É possível não ser arrastado pela crise dos ricos na medida em que esses países emergentes possam continuar crescendo com os próprios mercados.
Entre a sociedade e os mercados há os governos, além de atores como FMI e BCE. Como equilibrar esse campo de tensões?
Eu insisto: qual foi a causa para a crise senão os mercados financeiros desregulados? Neste momento, são também os mercados financeiros que estão empurrando uma solução para a crise. Eles pensam que através da contração fiscal a crise vá se estancar. Eu acredito que isso vá agravá-la. Os governos, então, ficarão cada vez mais apertados entre a gente que sofre e protesta e os mercados. Ou os governos regulam os mercados ou os mercados regulam os governos. Os mercados deveriam estar submetidos a financiar o crescimento, não a especular e criar bolhas que depois arrebentam, obrigando os governos a colocar dinheiro na mesa. Os governos precisam regular e submeter os mercados ao bem comum. E não dá para simplesmente pedir: "Por gentileza, comportem-se de outro modo, sejam altruístas, pensem no bem comum". É ridículo. Não se pede a alguém que funcione contra sua natureza. E a natureza dos mercados é fazer o máximo de lucro com o mínimo de risco e o mais rápido possível. É a regulação pública que tem que dizer: "Isso pode, mas isso não pode".
Esse quadro ameaça a governabilidade política na Europa?
O problema é que o continente está muito integrado em alguns aspectos econômicos, como a moeda única, o euro, mas não em outras questões, como as políticas salarial e fiscal. Esse desequilíbrio se traduz em problemas de competitividade para os sócios periféricos como Grécia e Portugal diante de países como a Alemanha. Não só porque eles tiveram uma política mais frouxa com os preços e os salários, mas porque a Alemanha teve uma política excessivamente rigorosa nesses quesitos. Quer dizer, não só os países da periferia europeia não cumpriram as condições fixadas, como tampouco a Alemanha, mas no sentido inverso, pois durante anos ela fez uma espécie de competição desleal com o resto da Europa ao não subir seus salários junto com a produtividade. É um problema de falta de coerência econômica interna, revelado agora com a crise. Para piorar, o Banco Central Europeu não cumpre a função característica dos bancos centrais, que é a de garantir a estabilidade em última instância. Espanha, Grécia e Itália estão sem financiamento acessível porque os mercados estão muito assustados com os riscos excessivamente altos. Não se usa o centro de financiamento lógico que é o Banco Central. Para que o euro se mantenha e para evitar a saída de alguns países da União Europeia, precisaríamos de um Banco Central forte. Essa é uma grande diferença em relação aos Estados Unidos e o Japão.
O remédio imposto às nações periféricas da Europa está sendo amargo demais?
Tanto as formas de ajudar os países da periferia europeia quanto as formas de ajudar os países do centro estão equivocadas. Não é com mais recessão que se conseguirá algo. Como é possível fazer crescer esses países? Precisamos ver caso a caso. É um problema de insolvência, como na Grécia? Então, é preciso tratar a debilidade como um caso de insolvência. Não se pode pagar? Não se pague. E se não se paga, que se comece a redistribuir as perdas. A dívida impagável tem que deixar de ser um peso morto para a economia. Os bancos que especularam com a dívida grega que paguem, que tenham perdas, porque senão fica um jogo em que o centro sempre ganha. Na especulação se ganha e se perde, eles sabem disso. E se o problema é de liquidez, caso da Espanha e da Itália? Então é preciso dar crédito barato. Fora do mercado. E é aí que deveria entrar o Banco Central Europeu exercendo seu papel de banco central. É preciso dar as costas aos mercados quando os mercados só agravam a crise. É preciso buscar outros mecanismos. Os países latino-americanos não saíram da crise porque desdobraram seus capitais para que o mercado recuperasse a confiança. Primeiro saíram da crise, depois se voltaram ao mercado. A Europa não sairá da crise se continuar com os cortes. Mas se mudar as políticas ativas de crescimento e passar a tratar o problema das dívidas como um horizonte de vários anos, ela poderá se recuperar relativamente rápido. Tudo depende do tipo de política.
A chanceler alemã, Angela Merkel, rejeitou o plano da Comissão Europeia que prevê até uma revisão da ideia de soberania dos países em crise. Como podemos interpretar esse posicionamento?
Há duas razões pelas quais a Alemanha se opõe a um papel mais intenso do BCE no manejo da crise das dívidas públicas: primeiro, a monetização das dívidas poderia despertar a inflação; segundo, pensam que se os governos receberem financiamentos terão menos investimentos para ajustar suas contas fiscais. Acredito que não haja um risco de inflação neste momento nos países desenvolvidos e isso se vê claramente nos Estados Unidos. O outro argumento depende de como se estabeleça o acesso aos refinanciamentos dos governos, que pode ser condicionado a determinadas políticas macroeconômicas. Mas cada vez mais há vozes que defendem que o BCE deva mudar totalmente seu comportamento para se tornar um ingrediente essencial, porém não o único, para a solução da crise.
Ainda podemos dizer que a França e a Alemanha são o coração da UE?
Esses países são os motores da UE: pautam as discussões e têm maior poder político para levar tais pautas adiante. Mas não podemos esquecer que a UE é composta de 27 países e há muitas decisões que precisam ser tomadas por unanimidade. A resposta seria "sim", mas "não". Quer dizer, o protagonismo continua sendo desse duo, mas ele não pode subestimar as necessidades e os interesses dos outros 25 Estados-membros.
Na Espanha, mesmo depois da derrota dos socialistas, o mercado não deu a trégua pedida pelo vencedor, o conservador Mariano Rajoy. Investidores cobraram juros mais altos para os títulos da dívida e a Bolsa de Madri despencou. Qual é sua avaliação?
Os mercados financeiros podem até ter seus gostos políticos e ideológicos - e provavelmente pendiam mais para Rajoy do que para Zapatero -, mas o que eles querem é ganhar dinheiro. E se dão conta perfeitamente de que o ajuste feito por Zapatero não solucionou o problema deles e o ajuste "ao quadrado" que fará Rajoy tampouco o solucionará. Então, ainda estamos à espera de uma mudança de política. Seria até estranho alguém dizer: "Agora, com mais ajuste e recessão, nossa confiança é maior". Nada disso. Estamos mais perto da quebra do que antes. A única forma de evitá-la é se a Europa criar os instrumentos para dizer: "Não vamos deixar que nenhum país quebre, pois colocaremos todo o dinheiro necessário". E aí há um bloqueio político. A Europa ainda não está de acordo para fazer o que é necessário.
Santiago Iñiguez, reitor da IE University, de Madri, usou palavras duras para analisar a situação: disse que a crise curará a 'arrogância' europeia. O sr. concorda?
A Europa está perdendo espaço na economia mundial. Até agora ela teve um modelo de cooperação e de integração econômica. E também uma ideia de que a integração social é importante e nada pode ser deixado à própria sorte. Mas o risco de perder o euro é o que a deixa mais debilitada. E assim está perdendo também o caráter de exemplaridade para outras regiões, de como fazer uma união, uma integração econômica, social e política. O caso europeu até pode continuar sendo útil como modelo, mas evidentemente não com a instauração de uma moeda única e com um Banco Central neoliberal. Isso é preciso evitar.
Qual é o papel jogado pela Inglaterra?
O Reino Unido está menos interessado do que nunca no euro. Mas isso não quer dizer que considere sair da UE. E vale lembrar que a zona do euro conta com 17 dos 27 países membros da UE. Diante da crise, talvez certos setores britânicos tenham mencionado que queiram diminuir o compromisso com a UE, mas não abandoná-la. Mas, se por acaso o Reino Unido saísse da UE, mantendo porém os acordos existentes, a diferença econômica seria pequena, ao contrário da política. Seria estranho se o Reino Unido quisesse renunciar ao poder de decisão que tem hoje na UE, inclusive de opinar sobre os temas do euro, mesmo sem fazer parte da zona do euro. Não é provável que isso aconteça em um futuro próximo.
De 0 a 10, qual é o risco de desintegração econômica da Europa?
Não estamos diante dessa eventualidade. Estamos, sim, diante de um problema muito sério na administração da crise da zona do euro. Ou focamos na UE como uma instituição mais flexível, com um Banco Central Europeu com mais funções e mais instrumentos para conter uma crise, ou não vamos ajudar em nada e isso afetará ainda mais a zona euro. Então, é possível que alguns países particularmente afetados, como a Grécia, abandonem o euro. Mas seria algo marginal. E mesmo o colapso da zona do euro - e o retorno a 17 moedas nacionais - é pouco provável. O colapso da UE é ainda mais difícil, porque temos um processo bem-sucedido de integração de mais de 50 anos. Não me parece que esteja em questão a continuidade da UE. Estão em questão alguns aspectos importantes de seus rumos, como o papel do BCE, a harmonização de políticas estruturais e uma reforma coordenada dos países. É um tema político difícil.
Desde 2008, caíram oito governos na Europa. Só neste mês foram Grécia, Itália e Espanha. Qual pode ser o próximo?
A crise castiga o nível de vida dos europeus. E isso coloca questionamentos políticos: os governos estão perdendo a soberania, não ouvem o povo. Há mal-estar. O curioso é que tem importado pouco se a política vai para a direita ou para esquerda. As pessoas querem mudanças. Qual será o próximo governo a cair? Não sei. Haverá eleições na França em 2012 e na Alemanha em 2013. Ambos os governos sofreram reveses nas eleições regionais. Nas presidenciais, Sarkozy e Merkel terão que provar que podem conduzir a crise melhor que a oposição.
O sr. crê em equilíbrio entre o liberalismo econômico e o intervencionismo do Estado?
Não. E não quero dizer que estou contra uma economia de mercado, mas isso não quer dizer que sou a favor de um mercado livre e desregulado, com especulações e bolhas financeiras. Os mercados financeiros e os bancos são importantes, mas que tenham impacto positivo na economia real. E isso não se faz espontaneamente. A regulação é necessária.
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