domingo, 13 de julho de 2008

Um povo sem decência


Kenneth Serbin
Especial para Folha

Desprovida de valores, sociedade americana perdeu o respeito pelo outro e se tornou insensível aos problemas dos demais países do Globo.

A disputa presidencial McCain-Obama vai mergulhar os EUA em um debate histórico e acalorado sobre segurança nacional. Enquanto os candidatos irão se concentrar nas decisões de política externa tomadas pela elite, as políticas só irão melhorar, porém, se eles enfocarem o debate na responsabilidade pessoal dos próprios americanos pela segurança.

Os norte-americanos estão desorientados. Um claro exemplo do que está errado com a segurança nacional na base da sociedade ocorreu em um recente concerto de rock ao ar livre do grupo The Police, em San Diego [no final de maio]. O problema se concentra nas noções de decência básica, coerência nas regras e regulamentos e respeito à lei. Também tem muito a ver com hipocrisia.Eu e minha mulher, que é mineira, somos fãs de Sting, o líder do grupo The Police, em parte por causa de sua dedicação à causa dos povos indígenas do Brasil. Em vez de uma demonstração de solidariedade do mesmo nível do talento e da consciência social de Sting, no entanto, presenciamos um comportamento arrogante e irresponsável de muitos de nossos concidadãos. Apesar da proibição de cadeiras no gramado, os seguranças permitiram que as pessoas as levassem, mas exigiram que fossem reclinadas de modo a não obstruir a visão de outras pessoas. Mas muitos que chegaram tarde ficaram de pé no gramado, bloqueando a visão dos que estavam sentados. Então os seguranças desdenharam de seu próprio regulamento sobre altura e não os obrigaram a se sentar.

O cheiro de maconha enchia o ar. Nenhum segurança impediu as pessoas de fumar. Vimos apenas dois policiais, que não detiveram ninguém por posse de maconha. Nenhum agente federal estava à procura de traficantes ou verificava se outras drogas ilícitas circulavam entre o público.

A cena contrastou acentuadamente com uma recente blitz contra estudantes usuários de drogas e traficantes em uma universidade pública local [a Universidade Estadual de San Diego, no início de maio]. Esse incidente, ocorrido depois de duas overdoses fatais sofridas por estudantes, revelou a variedade de substâncias ilegais disponíveis para compra nos EUA: cocaína, maconha, óleo de haxixe, pílulas de ecstasy, cogumelos alucinógenos, metanfetamina e remédios por receita usados ilicitamente. Perguntei-me por que não se aplica o mesmo rigor ao público dos concertos e às operações criminosas que o abastecem. Parte da resposta está no fato de que o público tinha entre 40 e 60 anos. Enquanto muitos dessa geração contribuíram para a justiça social, muitos outros nesse grupo mais privilegiado da história se sentem com direito a tudo, inclusive a desrespeitar os outros e a lei.

Essa geração trouxe para os EUA a cultura da droga e hoje é um mau exemplo para a juventude. Os organizadores de shows querem o dinheiro dessa geração, e por isso a segurança nos concertos é frouxa. O governo americano gasta bilhões combatendo as drogas no exterior, mas em casa tanto os cidadãos quanto a polícia ignoram o consumo individual.

Uma sociedade sem decência comum e sem vontade para atacar o tráfico de drogas enfrenta uma séria ameaça à sua segurança interna. Não são questões abstratas. Os usuários de drogas ilegais dão lucro para as organizações criminosas internacionais e ameaçam a linha de frente da segurança nacional: a educação das crianças.

Crise cultural

Como muitos americanos não têm mais valores, a cultura dos EUA está em crise. Essa crise revelou uma clara fraqueza social que deriva de arrogância, complacência e insensibilidade e permitiu que Osama bin Laden atacasse o país com a mais facilidade.

Essa mesma cultura exige um alto padrão de vida à custa dos outros e é a mesma que assumiu hipotecas altamente duvidosas a juros baixos e, depois, ficou indignada quando o chão sumiu. As soluções arranjadas por políticos irresponsáveis só vão exacerbar a crise cultural.

Os norte-americanos adoram carros obscenamente grandes, que bebem muito combustível, e depois se indignam com os altos preços da gasolina enquanto permanecem alheios ao fato de que o resto do mundo sempre pagou preços mais altos e dirigiu carros mais econômicos.

Com o poder do dólar, os EUA financiam imprudentemente sua dívida recorrendo cada vez mais a governos e investidores estrangeiros enquanto compram produtos baratos feitos por trabalhadores em países com salários absurdamente baixos e condições de trabalho arriscadas.

Os americanos não conseguem enxergar como o seu comportamento mina a segurança nacional. As civilizações declinam tanto por causa de fatores externos quanto internos. Nos EUA os fatores internos parecem estar se acelerando em um ritmo estonteante. A cultura insensibilizou as pessoas para si mesmas e para seus vizinhos, aqui e em outras partes do mundo, e assim aumentou a vulnerabilidade do país.

Somente uma mudança de atitude pode solucionar esta crise. Para começar a mudança, Obama e McCain devem discutir a posição dos EUA no mundo não com frases padronizadas sobre o terrorismo, a força dos EUA e o apoio às tropas, mas reconhecendo que a verdadeira liderança mundial envolve uma dose de autocrítica e consciência sobre o impacto das ações individuais nos assuntos mundiais. A questão é se os candidatos têm coragem para pedir que os norte-americanos se olhem no espelho.

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