sexta-feira, 4 de julho de 2008

Reflexões sobre Allende e o Chile


Antonio Cortés Terzi
Gramsci e o Brasil

No dia 26 de junho, comemora-se o centenário de nascimento de Salvador Allende, uma das figuras políticas mais significativas da política latino-americana do século XX. Em torno de Allende concentram-se alguns dos problemas mais significativos — e espinhosos — da relação entre socialismo e democracia política. Eleito presidente do Chile em 1970, seria derrubado três anos depois por um violento golpe de Estado, que conduziria seu país, pouco a pouco, à condição de laboratório de experimentos neoliberais sob regime ferozmente repressivo. Para assinalar a passagem do centenário de Allende, Gramsci e o Brasil entrevistou Antonio Cortés Terzi, sociólogo da Universidade de Concepción, no Chile. Terzi pertenceu à direção nacional do Partido Socialista, tanto na clandestinidade quanto no exílio (no México e na Argentina). Voltou ao seu país em 1988 e, atualmente, é diretor do Centro de Estudios Sociales Avance e consultor político dos governos da Concertación. Escreveu vários livros, entre os quais Gramsci: teoría política e El circuito extrainstitucional del poder [*].

P: Quais os traços mais relevantes da “via chilena para o socialismo”, que a diferenciaram de outros caminhos da esquerda latino-americana, como, por exemplo, o cubano?

A originalidade mais evidente e mais difundida consiste em que Allende concebe a “via chilena para o socialismo” sem o ato revolucionário, sem o uso da violência, mas como um caminho que respeita a democracia tal como esta existia no Chile de então.

O fato no qual nem sempre se presta suficiente atenção é que o “allendismo” não só postulava o respeito à institucionalidade democrática para efeito de conquistar o poder ou, mais estritamente, o governo, mas também para efeito das transformações revolucionárias. Ou seja, as mudanças próprias de um projeto que aspira a construir uma sociedade socialista deviam se realizar com apego à institucionalidade. Por exemplo, a nacionalização do cobre se faz com uma lei aprovada pelo Congresso, no qual a Unidade Popular não tinha maioria.

Por certo, não escapava a Allende que a institucionalidade vigente em algum momento impediria determinadas mudanças. Mas a resposta do “allendismo” não era a ruptura institucional, mas sim a transformação da institucionalidade através dos recursos da institucionalidade democrática.

Talvez se possa ilustrar o que foi dito com dois exemplos.

a) o essencial do seu Programa de Governo, inclusive as duas medidas radicais — reforma agrária (fim do latifúndio) e criação de uma poderosa área de economia estatal que supunha expropriações (fim dos monopólios) —, era possível aplicando leis vigentes;

b) uma das mudanças institucionais mais importantes propostas por Allende era a instalação de uma Assembléia Popular. Mas, no fundo, esta mudança implicava apenas liquidar o sistema bicameral, especificamente o Senado, e instituir como corpo legislativo uma Câmara única, eleita segundo os parâmetros tradicionais e próprios de uma democracia.

Creio que o essencial da “via chilena” residia na idéia de um processo revolucionário capaz de aglutinar a maioria em torno das mudanças e fazer pesar esta maioria através dos canais institucionais democráticos.

Naquele tempo, Gramsci era um desconhecido na esquerda chilena. Até mesmo a intelectualidade mais sofisticada pouca sabia e falava dele. Apesar disso, poder-se-ia dizer que no “allendismo” existe uma espécie de “gramscismo inconsciente”, dada sua preocupação de gerar uma hegemonia político-cultural que desse sustentação a um processo revolucionário com/na democracia.

P: Na perspectiva de agora, quais erros, limites e contradições mais importantes é possível apontar naquela experiência?

Muito se falou que o erro fundamental consistiu no fato de que a radicalidade do processo não correspondia à efetiva correlação de forças. A esquerda havia ganho a presidência com pouco mais de um terço dos votos e era minoria no Congresso Nacional. E é preciso ver esta situação em função do compromisso de respeito à institucionalidade democrática estabelecido por Allende.
Pois bem. Estes juízos estão corretos, mas é preciso matizá-los e complementá-los com outras situações equívocas, sem as quais o “allendismo” parece mais um desatino do que uma experiência frustrada.

Allende presumia, e nisto confiava, que esta correlação inicial de forças podia ser modificada no curso do processo. O que tinha um fundamento mais do que razoável: o programa de governo do candidato democrata-cristão era bastante próximo do programa da UP, e, somadas eleitoralmente ambas as forças, tinha-se uma ampla maioria. Dito de outro modo, Allende via um país com uma grande maioria inclinada a transformações profundas, ainda que nem toda esta maioria se expressasse através da esquerda.

Leve-se em conta que este diagnóstico ou previsão não estava distante do que foi ocorrendo eleitoralmente. Nas eleições municipais de 1971, a Unidade Popular recebe mais de 50% da votação e, nas eleições parlamentares de 1973, quando o país se encontrava numa crise desastrosa, a esquerda conseguiu 43% dos votos. Ou seja, uma porcentagem superior à obtida pelo próprio Allende nas eleições presidenciais e superior, também, a todas as eleições anteriores a 1970.

Claro, de todo modo a correlação de forças, nos marcos da democracia representativa, permanecia desfavorável a que se implementasse o projeto na sua totalidade. Mas a lógica “allendista” teve relativa confirmação na prática.
Neste sentido, há outros problemas tão influentes quanto o indicado e que respondem pelo fracasso da experiência.

Um deles é a sobrevalorização, por parte de Allende, da força da institucionalidade democrática e do compromisso das Forças Armadas com esta institucionalidade. Questão que tampouco era um completo desatino. Lembre-se que, entre 1970 e 1974, são assassinados dois comandantes-em-chefe do Exército [**]. E, de fato, o golpe militar começou dentro das Forças Armadas. Ou seja, também neste plano o “allendismo” tinha níveis de racionalidade aceitáveis.

O outro problema relevante é a falta de um diagnóstico preciso sobre o cenário político internacional e, mais especificamente, sobre a política norte-americana para a América Latina, no momento em que a derrota no Vietnã já era uma realidade. Creio que nem Allende nem ninguém previu a agressividade da política do governo dos EUA em relação ao processo chileno.

Mas, na minha opinião — e sei que é uma opinião polêmica —, o núcleo explicativo do fracasso residiu em outro fenômeno, que tem a ver com o que se poderia chamar de “solidão intelectual” do “allendismo”. A via chilena nunca teve um amparo, uma sustentação teórica aceitável ou assimilável por parte das correntes de pensamento político que dominavam a esquerda chilena. Era um projeto de esquerda sem teoria de esquerda.

Deve-se considerar que o “allendismo” nunca foi um movimento próximo do populismo. Era a figura, o líder da esquerda, mas a esquerda estava na sua maior parte estritamente organizada em dois partidos, o Partido Comunista e o Partido Socialista. Ambos os partidos, ainda que de maneira diferente, tinham como referência o marxismo e, concretamente, o marxismo da época, que pecava por simplificações, dogmas, ortodoxias, etc. E naquele momento o “allendismo” não se adequava à teoria leninista do Estado, por exemplo. Nem à idéia global de que “a violência é a parteira da história”.

Esta carência teórica naturalmente tem efeitos muito práticos. Primeiro, significa carência de instrumentos para conquistar intelectualmente elites e grupos dirigentes dos partidos de esquerda. Conquistar, no sentido de convencê-los de que a “via chilena” é uma concepção da mudança revolucionária para o Chile e não o simples nome de uma estratégia política e político-eleitoral. E, em segundo lugar, esta mesma carência não permite construir um discurso intelectual e político consistente e aglutinador de uma massa crítica que configurasse um “partido allendista” (informal e factual, evidentemente), ou seja, um grupo dirigente compenetrado dos significados da “via chilena”.

Allende tinha amigos e aliados muito leais, mas não grupos de líderes e dirigentes que atuassem organicamente como expressão da “via chilena”. Embora não soe muito bem, os partidos de esquerda tinham uma relação sobretudo instrumental com Allende e a “via chilena”. O PC não abandona sua concepção de uma revolução “democrático-nacional” para o Chile, ou seja, uma “revolução” que, em outra linguagem, implica mais ou menos um modelo estatista de desenvolvimento, semelhante aos propugnados pelas Frentes Populares. Em outras palavras, não considera a “via chilena” como um processo em perspectiva socialista, mas uma estratégia para governar com um programa desenvolvimentista daquele tipo.

Por sua parte, o PS, ou suas frações majoritárias, ambiciona a Revolução Socialista e, portanto, muito influenciado pela experiência cubana, considera o governo de Allende não como uma via, mas uma plataforma de poder e um momento de radicalização para desembocar no ato revolucionário.

Em resumo, com estas três concepções e estratégias em disputa, o resultado é que o processo não tem direção. Talvez o mais correto seja aceitar que o processo ocorrido no Chile, entre 1970 e 1973, não é a “via chilena” de Allende. Obviamente, tal via é o que Allende trata de fazer avançar, mas na prática sua visão se contamina ou distorce com o desenvolvimento paralelo das outras visões e estratégias.

Para ser justo, seria preciso acrescentar outro dado chave e explicativo da perda de controle do processo por parte de Allende. Desde o fim da década de 60, o Chile já vivia num estado elevado de agitação, mobilização e efervescência social. A vitória de Allende, longe de estabilizar socialmente o país, incentiva a mobilização camponesa, operária e juvenil-estudantil.

Aqui se encontra uma contradição no “allendismo”, uma contradição objetiva, do tipo que não oferece uma síntese fácil. Allende busca e promove o apoio ativo, a mobilização popular para a realização das suas medidas programáticas. Mas num momento de mudanças radicais é muito difícil controlar ou disciplinar a mobilização social. Sobretudo se este disciplinamento implica manter a mobilização nos limites de um Estado de Direito e de uma democracia “burguesa”. Assim, e inevitavelmente, as mobilizações sociais eram de apoio às medidas do governo, mas, por sua vez e simultaneamente, desembocavam em petições e ações radicalizadoras do processo.

Convém ter em conta, ademais, que o processo que deflagra a “via chilena” coincide com um processo de mudança geracional de líderes políticos e sociais. Os dirigentes sociais e políticos médios provêm da juventude, o que, certamente, é um ingrediente adicional que aponta para a radicalização. E, diga-se de passagem, o peso da juventude no governo de Allende foi demonstrado com os estudos que se fizeram sobre a idade das vítimas da ditadura (assassinados e desaparecidos): a imensa maioria tinha menos de 30 anos.

Em suma, queria dizer que a contradição do allendismo ou da “via chilena” é que levava adiante um processo revolucionário com mobilização social, pretendendo, por outro lado, que esta mobilização não ultrapassasse os compromissos programáticos nem os marcos jurídicos da democracia.

P: O que significa Allende para o Chile de hoje, depois da duríssima experiência dos anos de chumbo e da simultânea implantação de um modelo neoliberal radical?

Allende, no Chile de hoje, não tem um significado unívoco. Minha primeira impressão é que, desgraçadamente, o Allende “profundo” foi subsumido pelo Allende herói-mártir. E uma segunda impressão é que Allende é uma figura em si mesma submetida a uma cisão. Tal cisão obedece às profundas rupturas ideológicas e políticas que se produziram na esquerda chilena e, mais concretamente, entre o PC e o PS. Para o PC e outros setores da esquerda, Allende é o revolucionário anticapitalista e um exemplo de conseqüência revolucionária; enquanto, para o PS, é uma espécie de arquétipo de socialista democrático.

Embora seja doloroso confessar, Allende, no Chile de hoje, não constitui um legado atualizado para a esquerda. É um símbolo, mas muito vazio de conteúdo ou com conteúdos falsos e estabelecidos a partir de posições políticas aprioristas.

P: Enrico Berlinguer, em 1973, retirou algumas conclusões sobre os “fatos do Chile”. Uma delas, a mais conhecida, é que a esquerda não pode se contentar com pouco mais da metade dos votos num processo de mudança substantiva. Esta conclusão ainda vigora para os nossos dias?

Certamente, é uma conclusão genericamente válida. Mas, com o correr do tempo e das reflexões, merece ser revisada para efeito de uma especificação maior.

Creio que um ensinamento da experiência “allendista” é que se deve saber distinguir entre votos e hegemonia político-cultural, uma vez que nem sempre coincidem. Às vezes, pode-se realizar uma reforma substantiva com pouco mais de 50% dos votos, porque existe uma maioria social superior a este número que luta por tal reforma. Mas também pode ocorrer o contrário: ainda que se tenha um número superior de sufrágios, a sociedade resiste a determinadas transformações.

Talvez a conclusão de Berlinguer — compartilhada por muitos outros — seja um pouco extemporânea. Em 1973, estava na mesa de discussões a viabilidade ou a inviabilidade de revoluções anticapitalistas. E a viabilidade ou a inviabilidade de revoluções violentas ou pacíficas. Penso que este tipo de debate constitui o pano de fundo das análises de Berlinguer. Mas estes debates, pelo menos no Chile, foram abandonados ou deixados de lado pelas esquerdas.

P: E o que pode significar Allende, hoje, para uma esquerda que, em todo o mundo, parece condenada à defensiva, e num contexto em que não se fala mais em “transição ao socialismo”?

Antes de mais nada, deve-se ter presente que já não existe uma esquerda, mas várias, e que o conceito se aplica desde Tony Blair até Fidel Castro. Em geral, as esquerdas que têm protagonismo político nos seus respectivos países — repito, em geral — não estão postulando uma mudança estrutural de sociedade, não se propõem como meta a construção de uma “sociedade socialista”. Em conseqüência, pouco ou nada têm o que dizer sobre “transição ao socialismo”.

Minha opinião é que as esquerdas se autodesarmaram teórica e intelectualmente. Deixaram de ser uma contracultura em relação ao capitalismo e uma nova proposta político-cultural. E isso não só como conseqüência da “queda dos muros”, mas principalmente porque não desenvolveram uma concepção da modernidade a partir do instrumental da teoria crítica. Tudo isso se traduz politicamente em carência de ideário e de programa transformador e na sua conversão numa força não só sistêmica, mas também reprodutora do sistêmico. Em poucas palavras, minha convicção é que as esquerdas estão chamadas a se abrirem mais audazmente a processos de reconstrução.

Nesta lógica, Allende lega-nos uma conduta que tem a ver, precisamente, com audácia. Uma conduta que se reflete, resumidamente, em dois aspectos. Por um lado, Allende, sem sair do “espírito” da esquerda marxista da época, rompe com as ortodoxias e vai construindo, empiricamente, não só uma concepção distinta da mudança social, mas também, de fato, uma concepção diferente da edificação do socialismo. E, por outro lado, Allende esquadrinha a realidade nacional para descobrir as perspectivas de mudança a partir de dentro do status quo. Vale dizer, percebe e detecta que o próprio status quo é contraditório e algumas das suas tendências, se forem potencializadas, inclinam-se à mudança social.

P: Se o contexto mundial parece excluir a hipótese imediata de “transição ao socialismo”, na América Latina, e muito particularmente na Venezuela bolivariana, fala-se em “socialismo do século XXI”. Neste caso, estaríamos próximos ou distantes da inspiração allendista? Ou se trata de circunstâncias que não se podem comparar?

Existem enormes distâncias entre o “chavismo” e o “allendismo”. Mas, a meu ver, a mais substantiva pode parecer paradoxal: em Allende, revela-se uma clara inclinação no sentido de um imaginário de sociedade socialista ostensivamente distante dos modelos dos “socialismos reais”. Em vez disso, minha impressão é que Chávez orienta o processo em direção às formas “ortodoxas” ou conhecidas de socialismo. Neste sentido, parece-me mais adequado dizer que Allende antecipou-se na visualização do “socialismo do século XXI”, e não que este último esteja representado na experiência venezuelana.
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[*] Esta entrevista contou com a colaboração de Fernando de la Cuadra, professor da Universidade Federal do Ceará.
[**] Trata-se, respectivamente, de René Schneider e Carlos Prats, este último assassinado pela polícia política chilena na Argentina, onde se encontrava depois do golpe de 11 de setembro de 1973.

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