O Globo
O filósofo esloveno Slavoj Žižek atende ao telefone no seu quarto de hotel, em Porto Alegre, e responde ao pedido de desculpas do repórter pelo atraso com uma piada. O bom humor continua o mesmo, mas se restringe apenas à entrevista. No seu novo livro, “Menos que nada — Hegel e a sombra do materialismo dialético”, Žižek deixa de lado as referências cinematográficas e as frases polêmicas que o tornaram famoso, em troca de maior rigor intelectual. O que torna o texto difícil para não iniciados.
Naquela que ele considera sua maior obra, o filósofo retoma argumentos de outros livros e defende o retorno ao expoente do idealismo alemão. Em entrevista no dia da primeira de uma série de conferências dadas nas duas últimas semanas, ele defende Marx, mas confessa que seu “verdadeiro amor é Hegel”.
Hegel andava fora de moda e sofreu duras críticas nas últimas décadas. Por que então voltar a Hegel agora?
Hegel e seu grande sistema apareciam quase como um inimigo natural para o que chamamos de historicismo e desconstrucionismo. Mas nos últimos cinco anos, dez anos, é esta abordagem que está saindo de moda. No mundo todo há um retorno à filosofia do fundamento, com Alain Badiou na França e seu jovem círculo chamado de “realismo especulativo”. Mas o Hegel a quem muitos estão voltando, e me incluo aí, não é esse do idealismo absoluto. Hegel é o maior pensador da contingência radical. Você pode dizer que ele faz um sistema teleológico. Sim, mas é sempre retroativo. Hegel proibiu qualquer especulação sobre o futuro.
Essa leitura tem implicações políticas, não?
O ponto político é fundamental no meu retorno a Hegel. Eu sou um radical de esquerda, até mesmo um comunista em alguns momentos, mas temos que admitir que a experiência comunista no século XX foi, em última instância, uma grande catástrofe. O comunismo não proveu uma alternativa global para o capitalismo, pelo contrário. Foi o comunismo que possibilitou a explosão de capitalismo da China. Não é como o antigo marxista gosta de dizer, “nós sabemos que a tendência da História é em direção ao comunismo, a História está do nosso lado”. Não! É preciso abandonar isso. Para Hegel, temos um marco zero e uma tentativa de mudar as coisas, mas isso sempre dá errado. Na Revolução Francesa, a luta por liberdade terminou no Terror. Ele não defende uma volta à velha ordem, ela está perdida. A questão se torna o que fazer depois que dá errado, sem garantias ontológicas de que a História está do nosso lado.
Devemos abandonar o determinismo histórico que aparece em Marx?
Precisamente. Se formos deterministas estamos todos acabados. Ser determinista hoje é ir para uma espécie de novo apartheid, onde teremos nações top, nações produtoras e muitas outras nações que simplesmente foram deixadas de fora da história. Isso pode acontecer inclusive dentro de um país. Um amigo meu esteve recentemente no Congo. São incríveis esses países. Você tem uma minoria, onde você tem mineração, petróleo ou alguma outra coisa, totalmente integrada no capitalismo global. E o resto da sociedade está vegetando, totalmente excluída, em guerras civis ou nada. Não sou um otimista. Alguns amigos apontam para a Espanha, a Grécia e acreditam que o mundo está se movendo. Eu duvido. Eu conheço bastante a situação grega, conheço as pessoas do Syriza (partido de esquerda grego), Alex Tsipras (líder do Syriza) é meu amigo e eles devem ganhar as próximas eleições. Mas já há divisões dentro do partido. Tsipras defende uma visão mais realista, e eu estou do lado dele. Ele tem medo de que a Grécia não sobreviva fora da Europa. Ele está receoso de que uma coalização mais ampla seja necessária, mas há alguns radicais de esquerda que querem uma espécie de revolução pura e autêntica, o que é claro que nunca vai acontecer. É uma posição de princípios firmes, mas ao mesmo tempo extremamente oportunista. Às vezes, a coisa mais oportunista é você defender seus princípios. Porque você se prende aos seus princípios e diz que não pode fazer nada. É uma posição muito confortável.
Então onde ficaria Marx nessa equação?
Devemos retornar a Marx por Hegel e com uma postura crítica. Por exemplo, Antonio Negri, com quem tive conflitos em outros tempos, estava certo ao apontar que hoje, com o avanço do conhecimento como fator produtivo e fonte de riqueza, não podemos nos prender na teoria marxista do valor-trabalho. É preciso ver criticamente a questão do proletariado. Quem são os agentes da mudança hoje? Definitivamente não é a classe trabalhadora. Hoje, estar empregado é um privilégio, porque a maioria está sem emprego, excluída. A massa está em empregos temporários, precários.
Como o senhor avalia as consequências da crise econômica atual no mundo?
A grande derrotada dessa crise foi a democracia. A tradição democrática europeia está se perdendo lentamente. O grande vencedor foi um capitalismo autoritário. A crise está na Europa Ocidental e até certo ponto nos Estados Unidos. Rússia, China, Singapura estão explodindo. O desenvolvimento capitalista atual está ligado a governos autoritários. Na vida privada, você tem todas as liberdades que quiser: sexual, você pode viajar, tem até uma certa liberdade intelectual. Mas, mesmo assim, você sabe quem está no poder. Essa é uma tendência muito perigosa e é por isso que continuo um radical de esquerda.
Mas para compreender a crise não é preciso um retorno a Marx também?
Continuo pensando que Marx nos deu, de longe, a melhor descrição da dinâmica do capitalismo global. Mas precisamos seguir em frente. Por Marx, mas além de Marx.
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