segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Violências invisíveis

Ieda Estergilda de Abreu
Revista Fórum

A pesquisadora Luciane Lucas dos Santos fala sobre como o atual modelo de desenvolvimento e a sociedade de consumo se relacionam com as formas de violência presentes em nosso cotidiano.

Como o atual modelo de desenvolvimento, adotado não apenas no Brasil, mas também em outros em países, afeta a dignidade humana? A questão do modelo neo-extrativista de desenvolvimento, a violência intrínseca a ele, o consumo e a questão indígena brasileira, temas entrelaçados, são estudados e discutidos pela professora e pesquisadora em Sociologia do Consumo Luciane Lucas dos Santos. Nesta entrevista, Luciane aborda as inúmeras formas de violência presentes no nosso cotidiano e como a sociedade de consumo e o modelo de desenvolvimento nutrem a invisibilidade desses fenômenos.

Como se manifesta a violência hoje, na sua avaliação?

Muitos imaginam a violência como sendo apenas algo que tem a ver com o mal que um vai causar ao outro, com o contexto da guerra, da limpeza étnica, da violência das cidades. Há muitas formas de violência. Caminhões com ameixas apodrecendo ao sol, que não chegam ao território palestino, é, por exemplo, uma forma de violência. Pode-se pensar também na humilhação social e na invisibilidade de algumas minorias – caso dos moradores de rua – como uma forma agressiva e silenciosa de violência. É comum pensarmos que morador de rua quer vida fácil, não faz nada, não gosta de trabalhar. Não é verdade. Estive com alguns numa feira de trocas embaixo do Viaduto do Glicério [região central de São Paulo] e aprendi muito. Muitos estão diretamente envolvidos na organização da feira de trocas do Glicério. Trabalham montando e desmontando as barracas, na limpeza dos banheiros, no apoio às tarefas da cozinha. Recebem mirucas (moeda social) por este trabalho e, com elas, obtêm aquilo de que necessitam – alimento, roupas, produtos de higiene pessoal. Nós temos uma concepção equivocada sobre a população em situação de rua. Muitos trabalham. Tem gente que veio de outros estados, da construção civil, perderam o emprego, não tiveram como voltar e ficaram por aqui. Muitos não voltam para casa, para sua terra, por vergonha. A razão para se estar na rua também pode ser diversa: o abandono e a desagregação familiar, assim como o desemprego, estão entre os motivos. A droga e o álcool chegam, às vezes, depois. A invisibilidade social a que eles são muitas vezes relegados é, sem dúvida, uma forma de violência.

A senhora diz que o modelo de desenvolvimento de um país pode vir a ser, paradoxalmente, um vetor de violência. Como é isso?

As ideias de progresso e desenvolvimento não raro transformam-se em desrespeito às diversidades e às diferentes temporalidades que marcam as múltiplas formas de organização da vida. O Brasil faz parte de um grupo de países que têm apostado no neo-extrativismo – ou seja, trata-se de uma aposta nos hidrocarbonetos, na mineração, no alargamento dos latifúndios. As correlações, no entanto, nos escapam. O hidrocarboneto pode estar no batom; quanto mais você compra, mais petróleo é necessário; quanto mais renova o celular, mais é necessário o coltan. Muita gente não sabe que por trás da sede de novidades tecnológicas (laptops, celulares, pads), existe uma demanda crescente por este minério – o coltan (columbita-tantalita) – e que, muitas vezes, a demanda de coltan no mercado internacional implicará o acirramento da guerra civil em países como a República Democrática do Congo, onde há uma grande quantidade desse minério. Não se trata de não ter celular, mas de discutir a violência invisível que habita os produtos, serviços e tudo mais que está no nosso cotidiano.

Qual o papel do consumo nesse contexto?

A maneira como eu me visto, onde eu como, que lugares eu frequento, tudo isto diz algo sobre mim. Os hábitos de consumo estão diretamente relacionados à questão da identidade. Há um mito, aqui, que precisa ser desfeito: o de que o consumo seja um ato individual. Embora ele pareça ancorar-se na escolha do indivíduo, o repertório que sustenta e valida o consumo é social. Isto quer dizer que, embora os indivíduos re-signifiquem, a todo momento, os conteúdos que recebem eles estão sempre presos a uma teia de significados validada socialmente. Outra questão a considerar é que, no mundo contemporâneo, os nossos afetos têm sido mediados pelo mundo dos bens. Há riscos nisto. Uma mãe atarefada que leva o filho, no fim do dia, para comer numa destas grandes lojas de fast food está tentando propiciar à criança uma experiência de bem-estar instantânea. Ela pode pensar: “meu filho, não temos muito tempo para estarmos juntos…. quero que esta experiência seja alegre pra você… se você gosta tanto de ficar aqui, então vambora”.

Mas de todas as coisas que precisamos repensar acerca do consumo, uma me parece urgente: o reconhecimento de que o consumo constitui um sistema de classificação social. Este modelo de consumo que hoje alimentamos contribui para que se naturalize uma hierarquia entre diferenças. Hierarquia entre gêneros, etnias e classes sociais. Mas, também, entre saberes, entre temporalidades, entre modos de estar no mundo e organizar a reprodução material da vida.

O que o carro significa nesse contexto?

Tem tudo a ver, estamos falando da violência estrutural, cotidiana e que tem muito da nossa aceitação. E aí entram as relações de trabalho. Falemos do combustível que alimenta nossos carros – carros que associamos ao conforto. Um trabalhador, no canavial, corta 12 toneladas diárias de cana. Ele anda quase nove quilômetros para cortar essas toneladas, segundo uma pesquisa da Embrapa. Faz cerca de 800 trajetos diários, dá 133 mil golpes de podão por dia. É uma violência silenciosa de que não temos notícia. Ainda assim, queremos que aumente o valor do etanol no mercado internacional porque significa que o Brasil vai crescer. De que modelo de desenvolvimento estamos falando, afinal?

E sobre os impactos sociais e culturais por trás do nosso consumo?

Vamos ao caso dos megaeventos, tendo em vista o “consumo” da cidade. Veja o que se passa no Rio de Janeiro. Bairros inteiros estão sendo afetados para facilitar o tráfego entre o Galeão e a Barra. Em São Paulo são organizadas visitas a Paraisópolis, que fica ao lado do Morumbi, por R$ 300. Você sai da Vila Olímpia, por exemplo, e vai até Paraisópolis fazer um city tour. Os pobres viram, simplesmente, objeto de consumo. De repente, torna-se in subir o bondinho do Alemão ou ir aos restaurantes bacanas que agora estão dentro das favelas. Usando um termo empregado por Boaventura de Sousa Santos, estamos diante de uma relação de “apropriação e violência”. A favela tem sido espetacularizada. Não estou dizendo que tudo o que esteja acontecendo em função da Copa seja ruim, que as pessoas não estejam se reorganizando e criando oportunidades, mas quando transformamos a favela noutra coisa, estabelecemos com ela uma relação de violência.

A questão indígena é outro tema de sua pesquisa. Como encaixaria no contexto da violência?

Vou dar alguns exemplos do que tem acontecido com os povos indígenas para mostrar a situação de insegurança jurídica e fundiária. Inúmeros documentos – entre projetos de lei, decretos etc – tratam de questões candentes sob uma perspetiva claramente anti-indígena. A PEC 215 e a PEC 38 são bons exemplos. A PEC 215 propõe que seja do Congresso Nacional a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas e quilombolas (já a PEC 38 propõe que seja o Senado a fazê-lo). Isto significa, todos sabemos, uma barreira política aos processos de demarcação. A Portaria 303, por sua vez, em consonância com o Código Florestal, separa os povos originários dos recursos que estão em suas terras. Ou seja, restringe o usufruto dos bens e recursos por parte destas populações, ainda que tais bens e recursos se encontrem em terras indígenas. Se o Código Florestal abre o caminho ao retrocesso em relação aos direitos coletivos, a Portaria 303 pavimenta a estrada que confirma o grande latifúndio. Mas a questão não pára aí: a partir da Portaria 303, as demarcações já estabelecidas podem ser revistas e reconsideradas.

Outro exemplo é o projeto de lei 1610/96, bem como seu texto substitutivo, que complementam o cenário de retrocesso. Versam, ambos, sobre a exploração de recursos minerais em terras indígenas – sempre, é claro, com a alegação do interesse nacional. Segundo este Projeto de Lei, alcunhado de PL da Mineração, a consulta pública passa a ser um ato mais simbólico do que deliberativo e não interfere na continuidade do processo de exploração mineral.

O que fazer?

Primeiro, precisamos entender que dentro da diferença existem diferenças, para podermos perceber a dignidade de forma mais ampla. Na luta das mulheres, por exemplo, é comum acharmos que o movimento feminista é um só, que vai reunir todas as lutas numa luta única. Há também violência quando as mulheres são tratadas como se falassem em uníssono, como se seus mundos fossem de uma única cor ou matiz. Os problemas das mulheres não são sempre os mesmos; tampouco elas têm uma essência platônica a compartilhar. Cair nesta cilada epistemológica é desconsiderar que os problemas vividos por estas mulheres podem ser ampliados diante de outras questões vividas na própria carne, como, por exemplo, o racismo, a intolerância religiosa, o preconceito com a opção sexual e as diferenciações de classe que abatem ainda mais o corpo da mulher pobre. Já ouvi de uma mulher da periferia de São Paulo dizendo: “Quero saber como é que vocês podem me apoiar no final de semana, que é quando o bicho pega.” É uma pergunta interessante. As condições de resposta de uma mulher de classe média à situação de violência doméstica não são as mesmas de uma mulher que vive na periferia. Assim, não dá para, em nome dos direitos humanos, acharmos que a luta é a mesma para todo mundo; não necessariamente ela será.

A senhora diz também que precisamos repensar a paz.

Sim, fala-se muito na cultura de paz, mas acho importante pensarmos de que paz estamos falando e como ela é possível. Evocar a paz implica, primeiro, não esquecer a diferença dentro das diferenças e perceber que não é possível evocar a paz, a dignidade, passando por cima de desigualdades e dívidas históricas. Não estou dizendo que a paz não é possível, quero deixar claro. Contudo, é importante ter em conta que esta paz branca que tudo dilui – inclusive a história – é também violenta. A cultura de paz só poderá efetivamente acontecer mediante efetivos processos de tradução intercultural e, portanto, de respeito às diferenças. A tradução intercultural, nos termos propostos por Boaventura de Sousa Santos, configura-se como um antídoto poderoso contra o esgarçamento do tecido social, constituindo também uma forma preciosa de articulação política das minorias silenciadas. Queremos a paz, sim, mas uma paz justa, que não seja construída em cima do silenciamento e da diluição da diferença.

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