segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A utopia andina em Flores Galindo

Alberto Aggio
Gramsci e o Brasil

Nós, brasileiros, conhecemos muito pouco o Peru, em particular a sua vida republicana, os dilemas históricos que a sociedade peruana enfrentou na construção da sua contemporaneidade, os anseios, utopias e limites que se impuseram à construção da sua modernidade e que até hoje são objeto de novos projetos e de ações governamentais visando a sua construção. Conhecemos menos ainda o conjunto de ideias que foram elaboradas e emergiram nesses processos, com suas promessas, êxitos e fracassos, ou seja, aquilo que, com alguma licenciosidade, poderíamos chamar de “pensamento peruano”, que nasceu e viveu mergulhado no esforço de formular os termos e modos em torno dos quais se daria a construção de uma nação integrada que conseguisse, a um só tempo, albergar e superar tanto os traços da herança ibérica quanto a tradição incaica que marcam a formação e a história deste país.

Seguindo a mesma trilha dos estudos históricos latino-americanos que há mais de 20 anos se realiza no Brasil, o livro Utopia Andina: socialismo e historiografia em Alberto Flores Galindo (1970-1990), resultado de uma tese de doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em História do campus de Franca da Unesp, assumiu e cumpriu o desafio de dar uma resposta à demanda por um maior conhecimento sobre a realidade peruana, estabelecendo um diálogo fecundo tanto com a historiografia daquele país quanto com as elaborações teóricas mais inovadoras da história intelectual. Isto porque a estratégia escolhida por Marcos Sorrilha Pinheiro foi a de construir uma interpretação daquela sociedade a partir da trajetória de um dos seus intelectuais mais reconhecidos, o historiador Alberto Flores Galindo, autor do clássico Buscando un Inca (1986), considerado um dos cinquenta livros que todo peruano culto deveria ler para conhecer seu país.

Alberto Flores Galindo tornou-se efetivamente um ícone entre os intelectuais peruanos da geração que se notabilizou entre as décadas de 1970 e 1980. Lamentavelmente, a morte o apanhou muito jovem, em 1990, pouco antes de completar 41 anos. Uma vida breve, mas intensa, dedicada aos estudos da história e da política peruanas, à inquietação e à polêmica intelectual diante da necessidade de apurar a compreensão de uma realidade difícil e rebelde à lógicas simplistas e miméticas que influenciavam muitos setores da intelectualidade de esquerda no Peru. Flores Galindo foi um exímio polemista e, como nos revela Marcos Sorrilha, é dele a máxima de que “divergir é um meio de se aproximar”.

Pesquisador atento ao mandamento de que as ideias somente podem ser compreendidas a partir de seus contextos históricos, Marcos Sorrilha Pinheiro consegue nos mostrar neste livro, por meio da construção de uma trajetória intelectual imersa nas transformações que se processaram na sociedade e na política peruana das décadas de 1960 a 1980, toda a riqueza e profundidade da obra e do “pensamento politico” de Alberto Flores Galindo. Um pensamento construído em assimilação, diálogo e contraste com as formulações de tudo aquilo que se julgava “novo” na conjuntura dos anos 60 e 70: a “nova esquerda”, no plano político, e a “nova história”, no campo historiográfico. Mas é na releitura da obra de José Carlos Mariátegui empreendida por Flores Galindo que Sorrilha vai nos mostrar o paulatino processo de construção do pensamento político de Flores Galindo.

Num insight muito criativo do ponto de vista historiográfico, Sorrilha analisa Buscando un Inca como se fora o “oitavo ensaio” de interpretação da realidade peruana, sugerindo que Flores Galindo escrevia e polemizava visando dar completude à obra clássica de Mariátegui (Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana, 1928), numa alusão à identificação e à mesma perspectiva estratégica de construção do socialismo que havia animado o Amauta 60 anos antes. Nessa interpretação, Flores Galindo iria compartilhar a mesma agonia que ele havia apontado na releitura que ele havia feito de Mariátegui. O fulcro dessa agonia residia essencialmente nos dilemas que se antepunham às opções inevitáveis que pesavam sobre os projetos de construção do socialismo em sociedades “atrasadas” e “dependentes”. Seria a perspectiva de superação desses dilemas, isto é, a busca das diversas soluções para o conflito entre modernização e mundo tradicional que iria marcar tanto Mariátegui quanto Flores Galindo. Sujeito e objeto estariam aqui semantizados pela epistemologia da agonia, uma “palavra-chave” que necessitava por sua vez de um repertório próprio a indicar o enfrentamento daquele dilema essencial que demarcava as circunstâncias peruanas.

Uma espécie de “constelação imaginária” ganharia em Flores Galindo a conotação de uma nova utopia para a sociedade peruana, isto é, um projeto de construção da nação, pensado a partir de uma interpretação “esperançosa” da história daquela sociedade, assumida como plural em suas raízes, e que teria que superar concretamente a dicotomia serra-costa, característica do desenvolvimento histórico do país, bem como a visão mítica do retorno ao Peru incaico, sem desprezar, contudo, os aspectos identitários agora sincretizados no que Flores Galindo identificava como cultura andina. Mais do que um historiador, Flores Galindo foi, em suma, um intelectual que escreveu pensando o futuro e de sua obra não se pode subtrair a dimensão utópica que a ele se apresentava como inelutável.

Sorrilha demonstra cabalmente que a questão essencial da política peruana ao final da década de 1980 colocava para todos os atores políticos a necessidade de superação da imagem de “país sem saída” que os próprios peruanos haviam construído sobre si mesmos. A radicalização na busca de resolução dessa trágica pendência marcou os anos de maturidade intelectual de Flores Galindo. Politicamente ele contestou e rejeitou tanto o rupturismo de corte neoliberal propugnado pela direita quanto a escalada de violência revolucionária levada a cabo pelo Sendero Luminoso. Inquieto e insatisfeito, foi também um crítico da política empreendida pela esquerda legalista de perfil socialdemocrata por seu pragmatismo e pelo distanciamento em relação ao projeto de socialismo utópico que almejava.

Pode-se dizer que Flores Galindo acalentava a emergência de um ator imaginário que poderia reconstruir novamente um marco de “peruanização” a partir da síntese de referências míticas do mundo andino, traduzidas num novo repertório utópico que mesclasse práticas do mundo popular católico com um difuso socialismo mariateguista. Mas esse ator não se materializou e o processo seguiu outro curso.

Em síntese, é a história intelectual deste capítulo brilhante e “agônico” do pensamento latino-americano que esse livro nos traz. Por meio dele compreendemos mais o Peru contemporâneo. É difícil dizer que historicamente não tenhamos vivido dilemas e impasses similares em diversas conjunturas da história brasileira. Mas devemos também reconhecer que, de alguma forma, temos raízes distintas e seguimos trajetórias político-culturais diferentes. Compreender mais profundamente essas semelhanças e diferenças nos torna, enfim, companheiros de uma viagem que a cada momento se renova!

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