domingo, 2 de outubro de 2011

O genocídio silencioso das meninas no mundo



Fernando Eichenberg
O Globo


O nascimento de uma filha, que ele conceda em outro lugar, aqui que ele conceda um filho", diz o texto sagrado Atarvaveda, referindo-se a um dos deuses do hinduísmo. A escritura divina do segundo milênio a.C. ilustra um desafio permanente e atual enfrentado pela Índia: o pouco valor concedido à mulher na sociedade. O país asiático é um dos principais, ao lado da China, a afrontar os problemas de bebês do sexo feminino "ausentes" no nascimento e do alto índice de mortalidade de meninas entre 0 e 5 anos de idade.

Segundo o último relatório do Banco Mundial (Bird) sobre "Igualdade de Gênero e Desenvolvimento", anualmente no mundo 1,427 milhão de bebês do sexo feminino não chegam a nascer por causa do aborto seletivo, e 617 mil meninas morrem até alcançar os 5 anos por negligência de gênero - quando pais aprisionados pela pobreza preferem dedicar seus parcos recursos aos filhos homens.

O estudo do Banco Mundial mostra um aumento do número de abortos seletivos por preferência de sexo na China de 890 mil, em 1990, para 1,092 milhão, em 2008. Na Índia, no mesmo período, embora tenha registrado uma pequena redução de 265 mil para 257 mil, o número ainda é considerado elevado.

"Eles estavam furiosos. Não queriam meninas na família. Queriam meninos, assim poderiam receber fartos dotes" - disse à BBC, referindo-se à prática de o homem receber um dote da família da noiva, proibida por lei mas ainda em prática na Índia.

O relatório do Bird aponta ainda a duplicação do número de abortos seletivos em países do Leste da Europa e no Cáucaso - principalmente na Sérvia, no Azerbaijão e na Geórgia - de 7 mil (1990) para 14 mil (2008). Para todos os casos, as explicações de autoridades, pesquisadores e ONGs são similares, com diferentes intensidades segundo as especificidades de cada país: nas sociedades em que a mulher é pouco valorizada, o problema foi agravado pelo declínio da fertilidade, provocado pela melhora do nível de vida da população, e por um fácil acesso a exames que possibilitam saber o sexo do bebê nas primeiras semanas de gravidez.

"Sei que minha mulher sofre por causa disso, mas uma família armênia não fica completa sem um herdeiro masculino para levar o nome adiante" - justifica-se o armênio Suren Nahapetyan, que obrigou a mulher a abortar a segunda filha por ter condições de criar apenas dois filhos e já ter uma menina em casa. Com problemas semelhantes, Armênia, Azerbaijão e Geórgia estão na mira do Conselho da Europa, prestes a analisar um relatório sobre abortos seletivos no Cáucaso.

Desequilíbrio populacional

Shidur Shetty, codiretor do relatório do Bird, explica que a ascensão social alterou o padrão de famílias numerosas em países mais pobres. Em partes da Índia, o costume era ter até seis filhos. Mas quando melhoram de vida e se tornam mais organizadas, as famílias só querem ter duas crianças, e a preferência é por meninos. Na China, com a política de "um só filho", os pais fazem de tudo para ter um menino.

Uma das razões para isso é a tradição chinesa de caber ao filho homem mais velho tomar conta dos pais na velhice - uma garantia de sobrevivência num país ainda majoritariamente agrário e sem um sistema de previdência social eficaz.

Em relação à mortalidade infantil de meninas, embora credite parte da responsabilidade à discriminação de gênero, o economista do Banco Mundial ressalta a influência das questões de saúde. "Se os dois filhos, um menino e uma menina, estão doentes com diarreia, pode ocorrer que a menina leve mais tempo para ser levada a um hospital. Mas o principal fator ainda é o fato de ela ter ficado doente por escassez de água potável e de saneamento."

As estatísticas de mortalidade de meninas nesta faixa etária mostram que, de 1990 a 2008, o número de mortes caiu na China, de 259 mil para 71 mil, e na Índia, de 428 mil para 251 mil, mas aumentou na África Subsaariana, de 183 mil para 203 mil.

Coreia do Sul reverteu problema

A coordenadora do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, na sigla em inglês) no estado indiano de Maharashtra, Anuja Gulati, revelou dados ainda mais alarmantes do que os divulgados pelo Banco Mundial num seminário local na semana passada: ocorrem cerca de 1.600 abortos seletivos por dia na Índia. "Se continuarmos na mesma velocidade, chegaremos a apenas 900 meninas para cada mil meninos em 2012" - alertou Anuja.

Shireen Miller, diretora da ONG Save the Children na Índia, destaca a ampla acessibilidade aos exames de ultrassonografia e ecografia, mesmo que de uso proibido pelo governo para fins de seleção de sexo, como uma das pontas do problema. "A tecnologia piorou o problema. Mas o fato é que se não houvesse uma desvalorização tão profunda da mulher na sociedade, essa tecnologia não seria usada para isso. É uma questão cultural, só leis não adiantam. São necessárias mais campanhas, mais discussões. Mas é um processo de mudança muito longo."

Entre más notícias, os especialistas comemoram a melhora da situação na Coreia do Sul, país em que, por meio de uma intensa campanha do governo de valorização da mulher na sociedade e inserção de mão de obra feminina no mercado de trabalho, a proporção do número de homens em relação ao de mulheres caiu de 118 para cada 100, em 1990, para 106,7 em 2010. Em uma geração, a Coreia, que tinha as mesmas questões de China e Índia, conseguiu diminuir o problema - assinala Shidur.

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