O Globo
A descoberta de que o governo americano opera, sob a bandeira da luta ao terror, uma enorme rede de vigilância das comunicações por telefone e na internet deixou o mundo estupefato, e abriu um amplo debate sobre os riscos inerentes a tal poder concentrado nas mãos do Estado. Ou de um único país. Como uma reedição moderna e real do livro “1984”, de George Orwell — que seis décadas atrás já alertava para os riscos que um governo todo-poderoso pressupõe às sociedades livres — o mega-aparato de espionagem é visto por analistas ouvidos em diferentes países como uma possível ameaça à democracia. E como um fator estratégico que pode deixar em posição ainda mais vantajosa os EUA no cenário internacional diante de um mundo cada vez mais competitivo.
O programa de espionagem telefônica e cibernética da Agência de Segurança Nacional (NSA) não é sinal de que acabou a privacidade, mas de que a privacidade é um grande aspecto da nossa era. Pesquisas já mostraram que 59% dos americanos não aprovam a vigilância. Sempre foi muito difícil trazer o debate sobre privacidade às claras, porque como tudo é escondido, secreto, a maioria não sabe o que realmente está acontecendo. Há rumores de que esse programa existe há muito tempo. Mas só agora tivemos a confirmação.
O que esse escândalo fez, portanto, foi botar o assunto na mesa. Precisamos ter uma discussão franca e honesta sobre o que o governo está de fato fazendo e o tipo de sociedade que queremos ser. Se você sabe que o governo pode estar vigiando o que está fazendo, ou ouvindo seus telefonemas, isso provavelmente tem um impacto no seu desejo de se engajar como integrante de uma sociedade democrática.
A longo prazo, essa deveria ser nossa maior preocupação: se esse escândalo pode mudar a natureza da democracia. Um dos maiores riscos é a possibilidade de o governo abusar da informação coletada para alvejar grupos impopulares — sejam eles opositores políticos ou minorias. Não podemos esquecer que a História da segurança nacional é recheada de exemplos de leis aprovadas para conter uma ameaça particular e acabam usadas para outras razões, como a Carta de Segurança Nacional, depois do 11 de Setembro. A NSA diz que sim, está coletando toda essa informação, mas só vai investigar quando tiver motivos. A questão é o que pode ser considerada legítima razão para a NSA entrar no banco de dados.
Esse limite pode ser bastante amplo. Houve protestos dos europeus, que têm leis de privacidades mais fortes que as nossas. Precisamos ficar de olho no impacto nas relações com alguns dos nossos aliados. Mas o fato é que não sabemos o que outros países estão fazendo em termos de vigilância. Os EUA têm capacidades extraordinárias, mas estou certa de que muitas outras nações estão tentando executar programas de monitoramento. Países sempre espiam outros países. Se tem uma coisa que não vai mudar, ao meu ver, é o comportamento dos terroristas.
Quem está planejando ataques desse tipo, se tem algum nível de sofisticação, supõe que haja monitoramento. Quanto a Edward Snowden, uma rápida observação: ele obviamente infringiu a lei. Ao mesmo tempo, prestou um serviço público. Precisamos ser um pouco mais sofisticados no entendimento desse sujeito, em vez de tentar rotulá-lo como herói ou traidor.
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