quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Beatriz Sarlo, pensadora da modernidade periférica


Caroline Tresoldi
Outras Palavras

Renomada crítica literária argentina morreu nesta terça (17). No jornalismo cultural e na Academia, ela propôs novas leituras entre as letras e o tecido social latino-americano – e a importância do papel do intelectual na mediação de processos culturais e políticos

Beatriz Sarlo, um dos grandes nomes da crítica literária e cultural do nosso tempo, faleceu em Buenos Aires, aos 82 anos. Beatriz começou sua trajetória intelectual na filosofia, na Universidade de Buenos Aires, mas acabou migrando para as letras, formando-se em 1966. Ela trabalhava com Boris Spivacow no Editorial Universitário de Buenos Aires (EUDEBA) quando um golpe militar expulsou centenas de intelectuais das universidades argentinas. Formada e com pouca experiência profissional, Beatriz passou a atuar no Centro Editor de América Latina (CEAL), criado por Boris com o objetivo de organizar coleções de livros de diferentes áreas das ciências humanas e com preços acessíveis às camadas populares. Durante quase duas décadas, o CEAL reuniu intelectuais argentinos que estiveram à margem dos circuitos oficiais e, para os mais novos, como Beatriz Sarlo, serviu como um espaço simbólico de pós-graduação, como ela mesma gostava de dizer.

Foi lá que ela conheceu alguns dos seus companheiros de travessia pelas últimas ditaduras argentinas (1966-1973 / 1976-1983), como Carlos Altamirano, Ricardo Piglia, Josefina Ludmer, Susanna Zanetti, Maria Teresa Gramuglio e outros. No começo dos anos 1970, com Altamirano e Piglia, começou a colaborar com a revista Los Libros, que publicava textos sobre as novidades que saíam no mercado editorial. Nessa revista, Beatriz escreveu seus primeiros textos de crítica literária, já propondo um forte vínculo entre crítica, estética e política, que aperfeiçoaria, mais tarde, na Punto de Vista, revista fundada em 1978 por ela, Altamirano, Piglia, Gramuglio e Hugo Vezzetti. A emblemática revista argentina foi dirigida por Beatriz durante os 90 números publicados ao longo de 30 anos.

Com o fim da ditadura, em 1983, Beatriz começou a dar aulas na Universidade de Buenos Aires, onde atuou por duas décadas. Seus cursos ousaram propor novas leituras sobre as tarefas da crítica literária – considerando os vínculos com o tecido social – e negociaram um novo cânone para a literatura argentina do século XX.

Durante meu mestrado, quando estava estudando sua obra, tive a oportunidade de conversar com ela em algumas ocasiões. Numa entrevista um pouco mais longa, lembro-me de que, ao mencionar que não teve uma formação continuada, ela fez questão de ressaltar que seu primeiro livro solo, El imperio de los sentimientos (1985), era apresentado às agências financiadoras como uma espécie de tese de doutoramento. “É um currículo muito particular, e é necessário explicá-lo tendo em vista quase duas décadas de acúmulo de leituras em espaços não acadêmicos”, observou na ocasião, acrescentando ainda que era algo muito diferente dos seus contemporâneos brasileiros.

Para acentuar a diferença, contou-me sobre uma viagem que fez a Campinas, em 1980, para participar de um evento na Unicamp, que reuniria grandes nomes da crítica latino-americana, como Antonio Candido, Ángel Rama, Antonio Cornejo Polar, entre outros. Sobre essa viagem, Beatriz disse:

Foi uma das primeiras vezes que estive com grandes figuras intelectuais, pois eu e meus colegas de geração não tivemos grandes professores e tutores. No Brasil, ao olhar Antonio Candido caminhando com seus alunos na universidade, era como se fosse uma manifestação! Sem dúvida, uma das formas particulares da ditadura brasileira que, inclusive, tinha criado uma universidade em Campinas. Quando voltei a Buenos Aires, contei aos meus amigos da revista Punto de Vista que nossos contemporâneos brasileiros (como os críticos Roberto Schwarz, Davi Arrigucci etc.) eram pessoas que tinham carreiras relativamente normais, uma formação universitária completa, trabalhando com grandes professores e mestres. Esse encontro foi um choque, uma experiência única de conhecimento de outro campo intelectual e político, e de outro contexto universitário, que nos deu consciência das diferenças entre nós e eles.

Essa história da viagem de Beatriz a Campinas ilustra um pouco de sua ousadia e de seu temperamento. Sem conhecer ninguém, apenas avisada por um amigo de que haveria um “grande encontro” no interior de São Paulo, ela pegou um ônibus de Buenos Aires e foi até Campinas para fazer matérias para a Punto de Vista sobre literatura e sociedade na América Latina. Apresentou-se aos pesquisadores do evento e conseguiu realizar algumas entrevistas para publicar em sua revista, que ainda era desconhecida na Argentina.

Se Beatriz já conhecia o Brasil de uma viagem feita nos anos 1960, como relata no livro Viagens: da Amazônia às Malvinas (2015), foi a partir do encontro de 1980 na Unicamp que ela estabeleceu uma longa relação com intelectuais brasileiros. Ela participou de inúmeros eventos acadêmicos no Brasil, esteve em encontros da Abralic, na Flip e chegou até mesmo a ser entrevistada no programa Roda Viva.

Com coragem e sempre muito afiada, Beatriz colaborou com frequência com a imprensa argentina, sobretudo a partir dos anos 2000, tendo assinado colunas em jornais de diferentes espectros ideológicos, como Clarín, Página 12, La Nación, etc. Ela assumiu na imprensa posições políticas controversas ao longo dos anos, aproximando-se e distanciando-se de diferentes governos argentinos. Para alguns, era uma raivosa intelectual de esquerda; para outros, assumia posturas conservadoras. Nas discussões políticas, certamente estava longe de ser uma unanimidade.

Mas sua contribuição intelectual é inestimável. Desde o já mencionado El imperio de los sentimientos, passando por Una modernidad periférica (1988), Borges, un escritor en las orillas (1993), Escenas de la vida posmoderna (1994), Tiempo presente (2001), La pasión y la excepción (2003), Tiempo pasado (2005) e tantos outros, Beatriz interpretou diferentes aspectos da cultura argentina. Escreveu sobre a literatura dos séculos XIX ao XXI, sobre vanguardas estéticas, cultura popular, meios de comunicação de massa, cultura urbana, arte contemporânea, consumo audiovisual etc. Refletiu como poucos sobre o que chamava de “diferença rio-platense”, pensando, a partir de seu país periférico, a heterogeneidade dos processos de modernização e seus impactos na vida cultural.

Seu último livro, Las dos torres: ¿Puede la cultura contemporánea pensar algo nuevo?, publicado no início deste ano, pode até ser lido como um retrato intelectual da ensaísta portenha. Com textos escritos entre 1992 e 2018, muitos deles inéditos, Beatriz transita, com seu olhar afiado e sua escrita pública provocadora, entre a crítica literária e a crítica cultural, passando por reflexões sobre intelectuais, política, cinema, teatro alternativo, música de vanguarda, marketing nos museus, direitos humanos etc.

Considerando as grandes transformações sociais, políticas e tecnológicas das últimas décadas, ela se pergunta qual é o espaço crítico disponível para seguir formulando questões relevantes para pensar o contemporâneo. Apesar de reconhecer que a figura do intelectual mudou, e muito, Beatriz continuou defendendo até o fim a crítica como espaço de mediação dos processos culturais e de avaliação da literatura, da arte e do consumo cultural. Uma crítica comprometida com os desafios intelectuais e políticos do seu tempo.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Irene Vallejo: "Todos venimos de la migración y del mestizaje"

Sergio Alzate
Ethic

Irene Vallejo (Zaragoza, 1979) es doctora en Filología Clásica, Premio de las Letras Aragonesas en 2023 y Premio Nacional de Ensayo en 2020. Su libro ‘El infinito en un junco’ (Siruela) ha vendido más de un millón de ejemplares y ha sido traducido a más de treinta idiomas. En esta entrevista, la autora habla sobre la democratización de la lectura, el acoso escolar, los cuidados y la migración como base de la historia.

Antes de El infinito en un junco, ¿para usted qué era el éxito? ¿Y qué es después del gran recibimiento que ha tenido con ese libro?

Para mí el éxito absoluto y lo máximo a lo que podía aspirar era vivir de la literatura, aun sabiendo que sería una vida precaria, con dificultades, con meses mejores y peores. Soñaba con una vida así y con las cosas que rodean a la literatura: escribir críticas, colaborar con revistas culturales, dar conferencias y talleres para personas mayores. Ese era mi concepto del éxito. Lo que ha pasado con El infinito en un junco no me lo podía imaginar ni remotamente ni entraba en mis planes. Después de este libro sigo pensando que el éxito es poder vivir de la literatura, es decir, no tener otro trabajo que te ocupe la mayor parte del tiempo y te asfixie y te quite las energías para escribir. Después de las sucesivas crisis económicas, lo que ha desaparecido es la clase media de la escritura. Están los grandes bestsellers y los que para subsistir tienen que tener tres trabajos o incluso más si te descuidas.

¿En qué ha cambiado su vida este éxito?

Mi sensación es la de aprovecharlo bien y estar a la altura de esa oportunidad que me han brindado los lectores. No solo en el sentido de escribir, sino el altavoz que me da el fenómeno de El infinito en un junco para ayudar a editoriales independientes y para promover en mis redes un interés por otras literaturas. Me interesa mucho que llegue más literatura latinoamericana a España, porque creo que no nos estamos leyendo lo suficiente: tiene más presencia lo anglosajón, por todo el prestigio que tiene. Me interesan mucho las literaturas del sur: Portugal, Italia, Grecia, España y Latinoamérica. Somos un sur concebido como periferia, como secundario. Por eso, cuando viajo a los países pregunto qué se está haciendo, qué se está publicando, quiénes son los autores por descubrir.

A pesar de todo lo que rodeó a la escritura de El infinito en un junco, es un texto luminoso y esperanzador. Quizá otro escritor hubiera seguido una ruta oscura, pesimista, pero usted eligió la luz y la esperanza. ¿Por qué?

Porque no me podía permitir la oscuridad. En ese momento tenía una obsesión en mi cabeza: «No puedo tener una depresión posparto». Si tenía una y me tenían que cuidar a mí también, la familia se desmoronaba. Tenía tanta necesidad de estar en contacto con ideas esperanzadoras que lo construí de esa manera. No podía escribir en otro tono ni mucho menos acercarme como autora a lo que estaba viviendo con mi hijo en ese momento. Lo que necesitaba era colocar la mente en otro lugar y escapar a esa obsesión. Pensé: «Si va a ser el último libro que escribo, quiero que sea un homenaje a lo que ha significado la literatura para mí y cómo me ha ayudado en las diferentes etapas de mi vida». Así que me embarqué en estas historias, en estos viajes, en estas aventuras. Por eso mismo es un libro con tantos escenarios, porque yo no me podía permitir viajar. Mi vida era de la casa al hospital y viceversa.

Usted habla mucho del cuidado, lo que me lleva a pensar en el ensayo Frágiles, de Remedios Zafra: el mundo cultural parece olvidarse del cuidado y quienes lo ejercemos somos personas precarizadas, frágiles y sintientes. ¿Cómo es escribir desde el cuidar del otro y de sí mismo?

Para mí este es un tema muy importante, de hecho ahora estoy investigando en esa dirección. Creo que las sociedades contemporáneas dejan muy solas a las personas en la labor de cuidarse y de cuidar a otros. Cuando cuidas a alguien (un padre, un hijo, un hermano, un ser querido enfermo), lo haces a costa de tu trabajo, de tu situación económica. Con una penalización enorme. No estamos atendiendo a eso y no estamos pensando que el cuidado es también una dimensión colectiva, porque construye comunidades. Desde la cultura es importante que hablemos de este tema y que le demos un cauce artístico, también para colocarlo en el centro del debate y de las conversaciones.

El infinito en un junco es una genealogía de afectos lectores que va milenios atrás. Afectos que la ayudaron a enfrentar situaciones como el acoso escolar…

Sí, para poder enfrentar la etapa del acoso escolar me refugié en los libros. Muchos autores eran mi pandilla en el instituto. Yo sentía que mis compañeros de clase no me entendían, no me aceptaban y no les gustaba como yo era, pero que las personas que habían escrito los libros que yo amaba sí lo hacían. Es imposible explicar hasta qué punto esa idea me ayudó y me salvó de intentar cambiar mi personalidad para ser quien no era con tal de encajar. Se puede leer en soledad, sí, pero creo firmemente que esos relatos que compartimos los unos con los otros construyen y cimentan las sociedades. Leer no es algo que nos afecte individualmente. Los libros son una base sobre la que construir algo comunitario.

En sus libros hay un interés por nombres pequeños, olvidados, que quizá históricamente han quedado relegados…

Quizá en El silbido del arquero es todo lo contrario, aunque sin perder esa idea que dice: tomar a Eneas, que siempre nos lo han contado como el gran guerrero, el fundador de Roma, para verlo como el migrante y el hombre que lo ha perdido todo. Una persona que, cuando su ciudad cae (Troya), en vez de inmolarse en nombre de la gloria decide huir con su padre y con su hijo. Este es un homenaje desde un mito fundacional al migrante y a la figura del hombre cuidador. Muchas veces los textos son secuestrados por la grandilocuencia y el heroísmo. Es como lo que pasa con los Evangelios: cómo los pueden leer y esgrimir tantas personas sin darse cuenta de lo que realmente están leyendo. Son textos que una vez que se han puesto en lo más alto del canon literario, parecieran no tener nada más revolucionario que decirnos. A mí me interesa mucho esa parte: cómo nuestros mitos a veces son más rebeldes y audaces de lo que nosotros podemos llegar a ser.

A veces pienso que los «antiguos» somos nosotros y que los modernos fueron quienes nos precedieron siglos atrás…

Por eso a mí en El silbido del arquero me interesaba esa historia del hombre migrante que lo ha perdido todo. Esta novela la escribí cuando empezó la guerra de Siria, cuando el Mediterráneo estaba lleno de migrantes huyendo o naufragando en esas aguas. En las mismas en que naufragó Eneas. Y era en el presente cuando en Europa se cerraban las fronteras y cundía el miedo al recién llegado o al refugiado. Yo solo podía pensar «cómo es posible si esta es nuestra historia, si es que Eneas, el primer europeo en términos simbólicos, fue eso: un turco que venía a Europa». Cómo es posible que consideren la Eneida un clásico de la literatura, que lo lean por ese motivo, pero no sean capaces de captar su verdadero mensaje: todos somos migrantes.

Sus libros parecen hablar de los clásicos, de la lectura, de los griegos, de los romanos; sin embargo, creo que detrás de todo esto hay un tema más importante: el poder y las formas en que se ha ejercido a lo largo de los siglos. ¿Qué le interesa del poder como tema?

Desde niña me han interesado mucho los relatos épicos, pero jamás he sentido simpatía por esa idea de que la épica es únicamente la historia de la conquista, de la guerra, del control, de la apropiación y de la victoria. Para mí, El infinito en un junco es un relato de una épica alternativa: la democratización del acceso a los libros. Eso es algo muy vital, porque yo vengo de una genealogía en la que mis dos abuelas no pudieron estudiar por ser mujeres y pobres. Ellas siempre me apoyaron y me sostuvieron y sintieron la importancia de que yo pudiera estudiar. Es un ejemplo que tengo así de cerca, solo dos generaciones atrás. Hay toda una estructura de poder que condiciona tus condiciones vitales.

¿Qué es para usted el canon literario?

Cuando lo estudiaba en la universidad y lo analizaba, lo que buscaba era la confluencia entre el poder y la literatura, porque el canon es evidentemente una forma de poder. Históricamente, el rol de la mujer ha sido el de ser inspiración, mas no creadora. Ella es la que inspira al genio, nada más. Por eso, en El infinito en un junco yo le doy mucha importancia a que el primer texto firmado del que se tiene registro es de una mujer: Enheduanna, una poeta y sacerdotisa, dejó constancia de su nombre 1.500 años antes que Homero. El nombre de ella está fuera de los libros de texto. Nunca nuestras historias literarias empiezan por Enheduanna, sino por Homero, que no es nadie, que es un misterio, una incógnita, un fantasma: no sabemos si fue una persona o si fue muchas. No tenemos la más remota idea de si existió alguien llamado Homero y aun así le hemos hecho el inicio de la literatura, pero sí sabemos que existió mucho antes que él alguien llamado, a quien hemos querido ofrendar el olvido.

Sea que usted escriba ficción o no ficción, hay otro tema muy presente: las fronteras y cómo todos estamos hechos de ellas. ¿Por qué le interesa tanto este tema en una época en que se construyen muros?

La frontera me interesa porque creo que es un tema muy literario, es una convención absoluta. No existe nada en la naturaleza que configure las fronteras. De hecho, los animales las atraviesan constantemente. Sin embargo, por esa arbitrariedad se han construido toda una serie de ideologías y de miradas sobre el mundo. Esto habla de la fuerza que pueden tener los símbolos y del patente olvido de que toda la humanidad es migrante. Para mí la migración es uno de los grandes temas del mundo contemporáneo y me asombra que no reconozcamos que todos venimos de la migración y del mestizaje y de muchas historias y violencias.

Por ejemplo, la misma España es profundamente mestiza. ¿Qué sería del idioma español si nunca hubiera existido al-Ándalus? ¿Qué sería de la tortilla de patatas sin la importación de la papa andina?

Exactamente. Solo hay que pensar en nuestra gastronomía, en la que las cosas más típicas parecen ser el gazpacho, que no podría existir sin el tomate; la tortilla de patatas, que su mismo nombre lo dice todo; las naranjas, que su origen es asiático. Todo lo que como españoles consideramos nuestro ha venido de afuera. Ese es el caso de las palabras, que han sido desde siempre viajeras. En nuestro idioma seguimos diciendo «ojalá», lo cual es nombrar a Alá. Pero preferimos ignorar esta realidad para construir un discurso de sospecha. Los españoles hemos olvidado que somos mestizos.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Em defesa da família tentacular

Maria Rita Kehl
Blog da Boitempo

Uma das queixas que os psicanalistas mais escutam em seus consultórios é esta: “Eu queria tanto ter uma família normal!”. Adolescentes filhos de pais separados ressentem-se da ausência do pai (ou da mãe) no lar. Mulheres sozinhas queixam-se de que não conseguiram constituir famílias, e mulheres separadas acusam a si próprias de não terem sido capazes de conservar as suas. Homens divorciados perseguem uma segunda chance de formar uma família. Mães solteiras morrem de culpa porque não deram aos filhos uma “verdadeira família”. E os jovens solteiros depositam grandes esperanças na possibilidade de constituir famílias diferentes — isto é, melhores — daquelas de onde vieram. Acima de toda essa falação, paira um discurso institucional que responsabiliza a dissolução da família pelo quadro de degradação social em que vivemos.

Os enunciadores desse discurso podem ser juristas, pedagogos, religiosos, psicólogos. A imprensa é seu veículo privilegiado: a cada ano, muitas vezes por ano, jornais e revistas entrevistam “profissionais da área” para enfatizar a relação entre a dissolução da família tal como a conhecíamos até a primeira metade do século XX e a delinquência juvenil, a violência, as drogadições, a desorientação dos jovens etc. Como se acreditassem que a família é o núcleo de transmissão de poder que pode e deve arcar, sozinha, com todo o edifício da moralidade e da ordem nacionais. Como se a crise social que afeta todo o país não tivesse nenhuma relação com a degradação dos espaços públicos que vem ocorrendo sistematicamente no Brasil, atingindo particularmente as camadas mais pobres há quase quarenta anos. E sobretudo como se ignorassem o que nós, psicanalistas, não podemos jamais esquecer: a família nuclear “normal”, monogâmica, patriarcal e endogâmica, que predominou entre o início do século XIX até meados do XX no Ocidente (tão pouco tempo? pois é…), foi o grande laboratório das neuroses tal como a psicanálise, justamente naquele período, veio a conhecer.

A cada novo censo demográfico realizado no Brasil, renova-se a evidência de que a família não é mais a mesma. Mas “a mesma” em relação a quê? Onde se situa o marco zero em relação ao qual medimos o grau de “dissolução” da família contemporânea? A frase “a família não é mais a mesma” já indica a crença de que em algum momento a família brasileira teria correspondido a um padrão fora da história. Indica que avaliamos nossa vida familiar em comparação a um modelo de família idealizado, modelo que correspondeu às necessidades da sociedade burguesa emergente em meados do século XIX. De fato, estudos demográficos recentes indicam tendências de afastamento em relação a esse padrão, que as classes médias brasileiras adotaram como ideal.

Nesse cenário de extrema mobilidade das configurações familiares, novas formas de convívio vêm sendo improvisadas em torno da necessidade — que não se alterou — de criar os filhos, frutos de uniões amorosas temporárias que nenhuma lei, de Deus ou dos homens, consegue mais obrigar a que se eternizem. A sociedade contemporânea, regida acima de tudo por leis de mercado que disseminam imperativos de bem-estar, prazer e satisfação imediata de todos os desejos, só reconhece o amor e a realização sexual como fundamentos legítimos das uniões conjugais. A liberdade de escolha que essa mudança moral proporciona, a possibilidade (real) de tentar corrigir um sem-número de vezes o próprio destino, cobra seu preço em desamparo e mal-estar. O desamparo se faz sentir porque a família deixou de ser uma sólida instituição para se transformar num agrupamento circunstancial e precário, regido pela lei menos confiável entre os humanos: a lei dos afetos e dos impulsos sexuais. O mal-estar vem da dívida que cobramos ao comparar a família que conseguimos improvisar com a família que nos ofereceram nossos pais. Ou com a família que nossos avós ofereceram a seus filhos. Ou com o ideal de família que nossos avós herdaram das gerações anteriores, que não necessariamente o realizaram. Até onde teremos de recuar no tempo para encontrar a família ideal com a qual comparamos as nossas?

Não é necessário retroceder até as revoluções burguesas europeias para procurar o que se perdeu no Ocidente, e particularmente no Brasil, a partir dos anos 1950. Basta recordar o que foi a “tradicional família brasileira” para perguntar: o que estamos lamentando que tenha se perdido ou transformado? Será que a sociedade seria mais saudável se ainda se mantivesse organizada nos moldes das grandes famílias rurais, a um só tempo protegidas e oprimidas pelo patriarca da casa grande que controlava a sexualidade das mulheres e o destino dos varões? Temos saudade da família organizada em torno do patriarca fundiário, com sua contrapartida de filhos ilegítimos abandonados na senzala ou na colônia, a esposa oficial calada e suspirosa, os filhos obedientes e temerosos do pai, dentre os quais se destacariam um ou dois futuros aprendizes de tiranete doméstico? O sentimento retroativo de conforto e segurança que projetamos nostalgicamente sobre o patriarcado rural brasileiro não seria, como bem apontou Roberto Schwarz em “As ideias fora do lugar”, tributário da exploração do trabalho escravo, que o Brasil foi o último país a abolir já quase às portas do século XX?

Ou será que temos saudade da família emergente das classes médias urbanas, fechada sobre si mesma, incestuosa como em um drama de Nelson Rodrigues, temerosa de qualquer contágio com membros da camada imediatamente inferior, mantidos à distância às custas de preconceitos e restrições absurdas? Saudades das famílias “de bem” que viviam atemorizadas em relação aos próprios vizinhos, com medo de cada nova fase da vida, apavoradas com a sexualidade dos filhos e filhas adolescentes — maledicentes e invejosas da vida alheia, administrando a vida conjugal como se administra um pequeno negócio? Saudades dos casamentos induzidos a partir de namoros quase endogâmicos, rigorosamente restritos a gente do nosso nível e mantidos à custa da dependência econômica, da inexperiência sexual e da alienação das mulheres?

De certa forma, a família desprivatizou-se a partir da segunda metade do século XX, não porque o espaço público tenha voltado a ter a importância que teve na vida social até o século XVIII, mas porque o núcleo central da família contemporânea foi implodido, atravessado pelo contato íntimo com adultos, adolescentes e crianças vindas de outras famílias. Na confusa árvore genealógica da família tentacular, irmãos não consanguíneos convivem com “padrastos” ou “madrastas” (na falta de termos melhores), às vezes já de uma segunda ou terceira união de um de seus pais, acumulando vínculos profundos com pessoas que não fazem parte do núcleo original de suas vidas. Cada uma dessas árvores super ramificadas guarda o traçado das moções de desejo dos adultos ao longo das várias fases de suas vidas — desejo errático, tornado ainda mais complexo no quadro de uma cultura que possibilita e exige dos sujeitos que lutem incansavelmente para satisfazer suas fantasias.

É importante observar também o papel da mídia, particularmente da televisão, doméstica e onipresente, no rompimento do isolamento familiar e, consequentemente, na dificuldade crescente dos pais de controlar o que vai ser transmitido a seus filhos. A família tentacular contemporânea, menos endogâmica e mais arejada que a família estável no padrão oitocentista, traz em seu desenho irregular as marcas de sonhos frustrados, projetos abandonados e retomados, esperanças de felicidade das quais os filhos, se tiverem sorte, continuam a ser portadores. Pois cada filho de um casal separado é a memória viva do momento em que aquele amor fazia sentido, em que aquele par apostou, na falta de um padrão que corresponda às novas composições familiares, na construção de um futuro o mais parecido possível com os ideais da família do passado. Ideal que não deixará de orientar, desde o lugar das fantasias inconscientes, os projetos de felicidade conjugal das crianças e adolescentes de hoje. Ideal que, se não for superado, pode funcionar como impedimento à legitimação da experiência viva dessas famílias misturadas, engraçadas, esquisitas, improvisadas e mantidas com afeto, esperança e desilusão, na medida do possível.