Caroline Tresoldi
Outras Palavras
Renomada crítica literária argentina morreu nesta terça (17). No jornalismo cultural e na Academia, ela propôs novas leituras entre as letras e o tecido social latino-americano – e a importância do papel do intelectual na mediação de processos culturais e políticos
Beatriz Sarlo, um dos grandes nomes da crítica literária e cultural do nosso tempo, faleceu em Buenos Aires, aos 82 anos.
Beatriz começou sua trajetória intelectual na filosofia, na Universidade de Buenos Aires, mas acabou migrando para as letras, formando-se em 1966. Ela trabalhava com Boris Spivacow no Editorial Universitário de Buenos Aires (EUDEBA) quando um golpe militar expulsou centenas de intelectuais das universidades argentinas. Formada e com pouca experiência profissional, Beatriz passou a atuar no Centro Editor de América Latina (CEAL), criado por Boris com o objetivo de organizar coleções de livros de diferentes áreas das ciências humanas e com preços acessíveis às camadas populares. Durante quase duas décadas, o CEAL reuniu intelectuais argentinos que estiveram à margem dos circuitos oficiais e, para os mais novos, como Beatriz Sarlo, serviu como um espaço simbólico de pós-graduação, como ela mesma gostava de dizer.
Foi lá que ela conheceu alguns dos seus companheiros de travessia pelas últimas ditaduras argentinas (1966-1973 / 1976-1983), como Carlos Altamirano, Ricardo Piglia, Josefina Ludmer, Susanna Zanetti, Maria Teresa Gramuglio e outros. No começo dos anos 1970, com Altamirano e Piglia, começou a colaborar com a revista Los Libros, que publicava textos sobre as novidades que saíam no mercado editorial. Nessa revista, Beatriz escreveu seus primeiros textos de crítica literária, já propondo um forte vínculo entre crítica, estética e política, que aperfeiçoaria, mais tarde, na Punto de Vista, revista fundada em 1978 por ela, Altamirano, Piglia, Gramuglio e Hugo Vezzetti. A emblemática revista argentina foi dirigida por Beatriz durante os 90 números publicados ao longo de 30 anos.
Com o fim da ditadura, em 1983, Beatriz começou a dar aulas na Universidade de Buenos Aires, onde atuou por duas décadas. Seus cursos ousaram propor novas leituras sobre as tarefas da crítica literária – considerando os vínculos com o tecido social – e negociaram um novo cânone para a literatura argentina do século XX.
Durante meu mestrado, quando estava estudando sua obra, tive a oportunidade de conversar com ela em algumas ocasiões. Numa entrevista um pouco mais longa, lembro-me de que, ao mencionar que não teve uma formação continuada, ela fez questão de ressaltar que seu primeiro livro solo, El imperio de los sentimientos (1985), era apresentado às agências financiadoras como uma espécie de tese de doutoramento. “É um currículo muito particular, e é necessário explicá-lo tendo em vista quase duas décadas de acúmulo de leituras em espaços não acadêmicos”, observou na ocasião, acrescentando ainda que era algo muito diferente dos seus contemporâneos brasileiros.
Para acentuar a diferença, contou-me sobre uma viagem que fez a Campinas, em 1980, para participar de um evento na Unicamp, que reuniria grandes nomes da crítica latino-americana, como Antonio Candido, Ángel Rama, Antonio Cornejo Polar, entre outros. Sobre essa viagem, Beatriz disse:
Foi uma das primeiras vezes que estive com grandes figuras intelectuais, pois eu e meus colegas de geração não tivemos grandes professores e tutores. No Brasil, ao olhar Antonio Candido caminhando com seus alunos na universidade, era como se fosse uma manifestação! Sem dúvida, uma das formas particulares da ditadura brasileira que, inclusive, tinha criado uma universidade em Campinas. Quando voltei a Buenos Aires, contei aos meus amigos da revista Punto de Vista que nossos contemporâneos brasileiros (como os críticos Roberto Schwarz, Davi Arrigucci etc.) eram pessoas que tinham carreiras relativamente normais, uma formação universitária completa, trabalhando com grandes professores e mestres. Esse encontro foi um choque, uma experiência única de conhecimento de outro campo intelectual e político, e de outro contexto universitário, que nos deu consciência das diferenças entre nós e eles.
Essa história da viagem de Beatriz a Campinas ilustra um pouco de sua ousadia e de seu temperamento. Sem conhecer ninguém, apenas avisada por um amigo de que haveria um “grande encontro” no interior de São Paulo, ela pegou um ônibus de Buenos Aires e foi até Campinas para fazer matérias para a Punto de Vista sobre literatura e sociedade na América Latina. Apresentou-se aos pesquisadores do evento e conseguiu realizar algumas entrevistas para publicar em sua revista, que ainda era desconhecida na Argentina.
Se Beatriz já conhecia o Brasil de uma viagem feita nos anos 1960, como relata no livro Viagens: da Amazônia às Malvinas (2015), foi a partir do encontro de 1980 na Unicamp que ela estabeleceu uma longa relação com intelectuais brasileiros. Ela participou de inúmeros eventos acadêmicos no Brasil, esteve em encontros da Abralic, na Flip e chegou até mesmo a ser entrevistada no programa Roda Viva.
Com coragem e sempre muito afiada, Beatriz colaborou com frequência com a imprensa argentina, sobretudo a partir dos anos 2000, tendo assinado colunas em jornais de diferentes espectros ideológicos, como Clarín, Página 12, La Nación, etc. Ela assumiu na imprensa posições políticas controversas ao longo dos anos, aproximando-se e distanciando-se de diferentes governos argentinos. Para alguns, era uma raivosa intelectual de esquerda; para outros, assumia posturas conservadoras. Nas discussões políticas, certamente estava longe de ser uma unanimidade.
Mas sua contribuição intelectual é inestimável. Desde o já mencionado El imperio de los sentimientos, passando por Una modernidad periférica (1988), Borges, un escritor en las orillas (1993), Escenas de la vida posmoderna (1994), Tiempo presente (2001), La pasión y la excepción (2003), Tiempo pasado (2005) e tantos outros, Beatriz interpretou diferentes aspectos da cultura argentina. Escreveu sobre a literatura dos séculos XIX ao XXI, sobre vanguardas estéticas, cultura popular, meios de comunicação de massa, cultura urbana, arte contemporânea, consumo audiovisual etc. Refletiu como poucos sobre o que chamava de “diferença rio-platense”, pensando, a partir de seu país periférico, a heterogeneidade dos processos de modernização e seus impactos na vida cultural.
Seu último livro, Las dos torres: ¿Puede la cultura contemporánea pensar algo nuevo?, publicado no início deste ano, pode até ser lido como um retrato intelectual da ensaísta portenha. Com textos escritos entre 1992 e 2018, muitos deles inéditos, Beatriz transita, com seu olhar afiado e sua escrita pública provocadora, entre a crítica literária e a crítica cultural, passando por reflexões sobre intelectuais, política, cinema, teatro alternativo, música de vanguarda, marketing nos museus, direitos humanos etc.
Considerando as grandes transformações sociais, políticas e tecnológicas das últimas décadas, ela se pergunta qual é o espaço crítico disponível para seguir formulando questões relevantes para pensar o contemporâneo. Apesar de reconhecer que a figura do intelectual mudou, e muito, Beatriz continuou defendendo até o fim a crítica como espaço de mediação dos processos culturais e de avaliação da literatura, da arte e do consumo cultural. Uma crítica comprometida com os desafios intelectuais e políticos do seu tempo.
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