sábado, 18 de julho de 2015

As visões violentas de Slavoj Žižek

John Gray
The New York Review of Books

Poucos pensadores ilustram melhor as contradições do capitalismo contemporâneo do que o filósofo e teórico cultural esloveno Slavoj Žižek. A crise econômica e financeira demonstrou a fragilidade do sistema de livre mercado, cujos defensores acreditavam ter triunfado na Guerra Fria. No entanto, não há sinal de nada parecido com o projeto socialista que foi visto por muitos no passado como o sucessor do capitalismo. A obra de Žižek, que reflete essa situação paradoxal de várias maneiras, fez dele um dos intelectuais públicos mais conhecidos no mundo.

Nascido e educado na Liubliana, a capital da República Popular da Eslovênia – parte da antiga federação da Iugoslávia, até a sua fragmentação e declaração de independência, em 1990 -, Žižek ocupou cargos acadêmicos na Grã-Bretanha, Estados Unidos e Europa Ocidental, bem como na própria Eslovênia. Sua produção é prodigiosa, com mais de sessenta obras desde a publicação em 1989 de seu primeiro livro em inglês, O Sublime Objeto da Ideologia, seus livros, somados com inúmeros artigos e entrevistas, além de filmes como Žižek! (2005) e The Pervert’s Guide to Cinema (2006), lhe deram uma presença que vai muito além da academia.

Sintonizado com a cultura popular, em especial com o cinema, ele tem um número grande de seguidores entre os jovens de muitos países, incluindo os do pós-comunismo na Europa. Tem também uma revista dedicada a sua obra, o International Journal of Žižek Studies, fundado em 2007, cujos leitores se registram via Facebook. E em outubro de 2011, dirigiu-se aos membros do movimento “Occupy” em Zuccotti Park, Nova Iorque: evento amplamente divulgado que pode ser visto no YouTube.

A enorme influência de Žižek não significa que seu ponto de vista filosófico e político possa ser facilmente definido. Membro do Partido Comunista da Eslovênia até 1988, Žižek teve relações difíceis com as autoridades partidárias durante anos, em decorrência de seu interesse por ideias consideradas heterodoxas. Em 1990, candidatou-se à Presidência pelo Partido Liberal Democrata da Eslovênia, legenda de centro-esquerda que foi a principal força política do país na última década do século passado. Mas as ideias liberais, exceto por servirem como ponto de referência para posições que ele rejeita, nunca moldaram o seu pensamento.

Žižek foi demitido de seu primeiro posto de catedrático universitário no início da década de 1970. As autoridades eslovenas julgaram a tese que ele havia escrito sobre o estruturalismo francês – um movimento, na época, influente na antropologia, linguística, psicanálise e filosofia, afirmando que o pensamento e comportamento humano exemplificam-se em um sistema universal de princípios inter-relacionados – como sendo “não-marxista”. O episódio demonstrou como era limitada a liberalização intelectual promovida no país na época, mas os trabalhos posteriores de Žižek sugerem que as autoridades tinham razão ao julgar que sua orientação não era marxista.

Durante todo o enorme corpo de trabalho que tem sido acumulado, Marx é criticado por ser insuficientemente radical em sua rejeição dos modos existentes de pensamento, enquanto Hegel – uma influência muito maior sobre Žižek – é louvado por sua disposição para deixar de lado a lógica clássica a fim de desenvolver uma maneira de pensar mais dialética. No entanto, Hegel também é criticado por ter também um grande apego a modos tradicionais de raciocínio. Um tema central dos textos de Žižek é a necessidade de descartar o compromisso com a objetividade intelectual que orientou pensadores radicais no passado.

A obra de Žižek se estabelece em oposição a Marx em muitas questões. Apesar de tudo o que devia à metafísica hegeliana, Marx também foi um pensador empírico, que procurou enquadrar teorias que dessem conta do curso real dos acontecimentos históricos. Sua preocupação central não era a ideia abstrata da revolução, ele estava preocupado primordialmente, no projeto revolucionário envolvendo alterações concretas e radicais nas instituições econômicas e nas relações de poder.

Žižek mostra pouco interesse nestes aspectos do pensamento de Marx. Visando “repetir a ‘crítica marxista da economia política’ sem a noção utópico-ideológica do comunismo como seu quadro de referência obrigatório”, ele acredita que “o projeto comunista do século XX era utópico precisamente na medida em que não era suficientemente radical”. Segundo Žižek, a maneira como Marx compreendia o comunismo foi parcialmente responsável por esse fracasso: “a noção de Marx da sociedade comunista é, a própria fantasia capitalista inerente; isto é, uma projeção fantasmagórica para resolver os antagonismos capitalistas que ele descreveu tão bem”.

Embora rejeite a concepção de Marx do comunismo, Žižek não dedica nenhuma única página das mais de mil de seu livro Less Than Nothing para especificar qual sistema econômico, ou quais instituições do governo, deveriam figurar em uma sociedade comunista do tipo que a favorece. Com efeito à síntese do trabalho de Žižek , Less Than Nothing é dedicado a um tipo de reinterpretação de Marx por meio de Hegel – uma das partes do livro se chama “Marx como leitor de Hegel, Hegel como leitor de Marx” – reformulando assim a filosofia hegeliana fazendo referência ao pensamento do psicanalista francês Jacques Lacan.

Um “pós-estruturalista” que rejeita a crença de que a realidade pode ser capturada pela linguagem, Lacan também rejeita a interpretação padrão da idéia hegeliana da “astúcia da razão”, segundo a qual a história mundial é a concretização, por meios oblíquos e indiretos, da razão humana. Para Lacan, tal como Žižek o resume: A Astúcia da Razão […] não implica, de modo algum, a fé numa mão invisível que, de alguma forma, conduziria todas as contingências aparentemente irracionais à harmonia da Totalidade da Razão: de fato, a Astúcia da Razão implica confiar na irracionalidade. Nessa leitura lacaniana, a mensagem da filosofia de Hegel não é o desdobramento progressivo da racionalidade na história, mas sim a impotência da razão.

O Hegel que emergiu nas leituras de Žižek tem pouca semelhança com o filósofo idealista que figura nas histórias convencionais do pensamento. Hegel é geralmente associado com a ideia de que a história tem uma lógica intrínseca, na qual as ideias são concretizadas na prática e depois deixadas para trás, em um processo dialético no qual são superadas por outras ideias que representam o seu oposto. Inspirando-se no filósofo francês contemporâneo Alain Badiou, Žižek radicaliza a noção da dialética, propondo que ela signifique a rejeição do princípio lógico da não contradição, segundo o qual uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Desse modo, em vez de enxergar a racionalidade em ação na história, Hegel rejeita a própria razão, tal como ela foi entendida no passado.

Segundo Žižek, está implícito em Hegel um novo tipo de “lógica paraconsistente”, na qual uma proposição “não é realmente suprimida pela sua negação”. Essa lógica, sugere Žižek, é bem adequada para se compreender o capitalismo hoje. “Pois não é o capitalismo ‘pós-moderno’ um sistema cada vez mais paraconsistente”, pergunta ele retoricamente, “no qual, de várias maneiras, P não é P: a ordem é a sua própria transgressão, de tal forma que o capitalismo pode prosperar sob um governo comunista, e assim por diante?”

Living in the End Times é apresentado por Žižek como uma obra preocupada com essa situação. Resumindo o tema central do livro, ele escreve: O ponto de partida do presente livro é simples: o sistema capitalista global aproxima-se de um ponto zero apocalíptico. Seus “quatro cavaleiros do Apocalipse” são a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta iminente por matéria-prima, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais.

Com suas generalizações e sua grandiloquência retórica, a passagem é típica do trabalho de Žižek. O que ele chama de premissa do livro é simples só porque passa por cima de fatos históricos. Ao lê-la, ninguém iria suspeitar que, além da matança de milhões por motivos ideológicos, alguns dos piores desastres ecológicos do século passado – tais como a destruição da natureza na antiga União Soviética ou a devastação do campo durante a Revolução Cultural de Mao – ocorreram em economias planificadas. A devastação ecológica não resulta apenas do sistema econômico vigente hoje em grande parte do mundo. Embora possa ser verdade que a versão predominante do capitalismo é insustentável em termos ambientais, nada na história do século passado sugere que o meio ambiente estará mais protegido se for implantado um sistema socialista.

Mas criticar Žižek por ignorar esses fatos é não compreender sua intenção. Ao contrário de Marx, ele não pretende fundamentar suas teorias em uma leitura da história baseada em fatos. “A conjuntura histórica atual não nos obriga a abandonar a noção de proletariado, ou da posição proletária – ao contrário, ela nos obriga a radicalizá-la até um nível existencial, para além até mesmo da imaginação de Marx”, escreve ele. “Precisamos de uma noção mais radical do sujeito proletário [ou seja, o ser humano que pensa e age], um sujeito reduzido ao ponto evanescente do ‘Penso, logo existo’ cartesiano, esvaziado do seu conteúdo substancial.” Nas mãos de Žižek, as ideias marxistas – as quais, na visão materialista de Marx, se destinavam a designar fatos sociais objetivos – se tornam expressões subjetivas de compromisso revolucionário. Saber se essas ideias correspondem a alguma coisa que existe no mundo é irrelevante.

Há um problema neste ponto: por que alguém haveria de adotar as ideias de Žižek, e não quaisquer outras? A resposta não pode ser “porque as ideias do filósofo são verdadeiras”, em qualquer sentido tradicional da palavra. “A verdade de que estamos tratando aqui não é a verdade ‘objetiva’”, escreve Žižek, “mas sim a verdade autorreferente a partir da posição subjetiva de alguém; como tal, é uma verdade engajada, medida não pela sua precisão factual, mas sim pela forma como ela afeta a posição subjetiva da enunciação.”

Se isso significar alguma coisa, quer dizer que a verdade é determinada pela forma como se encaixa nos projetos com que o orador está comprometido – no caso de Žižek, o projeto da revolução. Mas isso só nos leva a colocar o problema em outro nível: por que alguém deveria adotar o projeto de Žižek? A pergunta não pode ter uma resposta simples, uma vez que está longe de ser claro no que consiste o seu projeto revolucionário.

Ele não dá sinais de duvidar que uma sociedade em que o comunismo fosse posto em prática seria melhor do que qualquer outra que já existiu. Por outro lado, ele é incapaz de imaginar quaisquer circunstâncias em que o comunismo pudesse ser concretizado: “O capitalismo não é apenas uma época histórica entre outras. […] Francis Fukuyama tinha razão: o capitalismo global é o fim da história.” O comunismo não é para Žižek – como era para Marx – uma condição realizável, mas sim o que o filósofo Alain Badiou descreve como uma “hipótese”, um conceito com pouco conteúdo, mas que permite a resistência radical contra as instituições vigentes. Žižek insiste que essa resistência deve incluir o uso do terror:

A ideia provocante de Badiou de que se deve reinventar hoje o terror emancipatório é um dos seus insights mais profundos. […] Lembrem-se da defesa exaltada do Terror na Revolução Francesa feita por Badiou, na qual ele cita a justificativa da guilhotina para Lavoisier: “A República não precisa de cientistas.”

Junto com Badiou, Žižek celebra a Revolução Cultural de Mao como “a última grande explosão realmente revolucionária do século XX”. Mas ele também a considera como sendo um fracasso, citando a conclusão de Badiou de que “a Revolução Cultural comprova, em seu próprio impasse, a impossibilidade de libertar, verdadeiramente e globalmente, a política do arcabouço do Estado de partido único”. Mao, ao incentivar a Revolução Cultural, evidentemente deveria ter encontrado uma maneira de quebrar o poder do partido-Estado. Mais uma vez, Žižek elogia o Khmer Vermelho por ter tentado romper totalmente com o passado. Essa tentativa incluiu matanças em massa e tortura numa escala colossal. Mas, na visão de Žižek, não é por isso que fracassou: “De certa forma, o Khmer Vermelho não foi suficientemente radical: embora levasse a negação abstrata dos limites do passado, não foi inventado qualquer forma nova de coletividade.” Uma revolução genuína pode ser impossível nas atuais circunstâncias, ou em qualquer uma que possa ser imaginada na atualidade. Mesmo assim, a violência revolucionária deve ser comemorada como “redentora”, até mesmo “divina”.

Embora Žižek defina-se como leninista, não há nenhuma dúvida de que essa posição seria um anátema para o líder bolchevique. Lênin não tinha escrúpulos em usar o terror para promover a causa do comunismo (para ele, um objetivo plenamente alcançável). Constantemente utilizada como parte de uma estratégia política, a violência era de natureza instrumental. Em contrapartida, apesar de Žižek aceitar que a violência não conseguiu atingir os objetivos comunistas e que não há perspectiva de que venha a fazê-lo, ele insiste em que a violência revolucionária tem um valor intrínseco como uma expressão simbólica de rebelião – uma posição que não tem paralelos com Marx ou Lênin. Pode-se encontrar um precedente no trabalho do psiquiatra francês Frantz Fanon, que defendeu o uso da violência contra o colonialismo como uma afirmação de identidade das populações submetidas ao poder colonial; mas Fanon observou essa violência como parte de uma luta pela independência nacional, um objetivo que foi, de fato, alcançado.

Um precedente ainda mais claro, pode ser encontrada na obra do teórico e sindicalista francês Georges Sorel no início do século XX. Em “Réflexions sur la violence” (1908), Sorel argumenta que o comunismo foi um mito utópico- mas um mito que tinha valor, ao inspirar uma revolta moral regeneradora contra a corrupção da sociedade burguesa. Os paralelos entre essa visão e a ideia de Žižek sobre a “violência redentora” inspirada pela “hipótese comunista” são reveladores.

A celebração da violência é uma das principais vertentes na obra de Žižek. Ele encontra defeitos em Marx por ele pensar que a violência pode ser justificada como sendo parte do conflito entre as definição objetivas das classes sociais. A luta de classes não deve ser entendida como “um conflito entre agentes particulares dentro da realidade social: não é uma diferença entre agentes (que pode ser descrita por meio de uma análise social detalhada), mas sim um antagonismo (‘luta’) que constitui esses agentes”. Aplicando essa visão ao discutir os massacres de Stalin ao campesinato, Žižek descreve como a distinção entre os kulaks (camponeses ricos) e os demais tornou–se “turva e inviável: numa situação de pobreza generalizada é evidente que os critérios deixaram de ser aplicáveis, e as outras duas classes de camponeses muitas vezes se uniam aos kulaks em sua resistência à coletivização forçada”. Em resposta a essa situação, as autoridades soviéticas introduziram uma nova categoria, o sub-kulak, um camponês pobre demais para ser classificado como kulak, mas que partilha os valores dos kulaks: A arte de identificar um kulak deixou de ser uma questão de análise social objetiva; tornou-se uma espécie de complexa “hermenêutica de suspeita”, de identificar “as verdadeiras atitudes políticas” de um indivíduo escondidas debaixo das suas enganosas afirmações públicas.

Descrever assassinatos em massa dessa forma, como um exercício de hermenêutica, é repugnante e grotesco; é também característico da obra de Žižek. Ele critica a política de coletivização de Stalin, mas não por causa dos milhões de vidas que foram violentamente interrompidas ou destruídas em seu curso. O que Žižek critica é o apego persistente de Stalin (por mais incoerente ou hipócrita) aos “termos marxistas ‘científicos’”. Confiar na “análise social objetiva” como orientação em situações revolucionárias é um erro: “Em algum momento, o processo tem que ser interrompido com uma intervenção maciça e brutal de subjetividade: o pertencimento de classe nunca é um fato social puramente objetivo, mas também é o resultado da luta e do compromisso social.” O que Žižek condena em Stalin não é o uso implacável da tortura e de sua força letal, mas sim, o fato de ter tentado usar tais artifícios para justificar o recurso sistemático à violência em referências à teoria marxista.

A rejeição de Žižek a qualquer coisa que possa ser descrita como um fato social vem junto com a sua admiração pela violência na interpretação que faz sobre o nazismo. Comentando o envolvimento do filósofo alemão Martin Heidegger com o regime nazista, Žižek escreve: “Seu envolvimento com os nazistas não foi um simples erro, mas sim ‘um passo certo na direção errada’.” Contrariamente a muitas interpretações, Heidegger não era um reacionário radical. “Lendo Heidegger, ao contrário da maioria, descobre-se que era um, que havia alguns pontos, estranhamente próximo ao comunismo” – realmente, em meados dos anos 30, Heidegger poderia ser considerado como sendo “um futuro comunista”. Se Heidegger escolheu, equivocadamente, apoiar Hitler, seu erro não foi subestimar a violência que Hitler iria desencadear:

O problema com Hitler era que ele “não foi suficientemente violento”, sua violência não foi suficientemente “essencial”. Hitler realmente não agia; e todas as suas ações eram, fundamentalmente, reações pois ele agia de modo que nada fosse mudar realmente, encenando um gigantesco espetáculo de pseudo-revolução para que a ordem capitalista sobrevivesse. […] O verdadeiro problema do nazismo não é que tenha ido “longe demais” em sua arrogância subjetivista-niilista de exercer o poder total, mas sim do fato que o nazismo não foi longe o suficiente; sua violência foi uma encenação impotente que, em última análise, manteve-se a serviço da própria ordem que desprezava.

O que havia de errado com o nazismo, ao que parece, é que – tal como a experiência mais tarde na revolução total do Khmer Vermelho – ambos não conseguiram criar qualquer novo tipo de vida coletiva. Žižek diz pouco sobre a natureza da forma de vida que poderia ter surgido caso a Alemanha tivesse sido governada por um regime menos reativo e com maior impotência do que ele julga Hitler ter sido. Mas Žižek deixa claro que não haveria espaço nessa nova vida para uma determinada forma da identidade humana:

O status fantasmático do antissemitismo é claramente revelado por uma declaração atribuída a Hitler: “Temos que matar o judeu dentro de nós.” […] Essa declaração de Hitler diz mais do que ela quer dizer: contra as suas intenções, confirma que os gentios precisam da figura antissemita do “judeu” a fim de manter sua identidade. A questão, portanto, não é apenas que “o judeu está dentro de nós” – o que Hitler fatalmente esqueceu de acrescentar é que ele, o antissemita, também está no judeu. O que esse entrelaço paradoxal significa para o destino do antissemitismo?

Žižek explicita ao censurar “certos elementos da esquerda radical” pelo “seu mau-estar quando se trata de condenar de forma inequívoca o antissemitismo”. Mas é difícil entender a afirmação de que a identidade dos antissemitas e a dos judeus reforçam-se mutuamente, de alguma forma – repete-se, palavra por palavra, em Less than Nothing –, exceto como sendo uma sugestão de que o único mundo em que o antissemitismo pode deixar de existir é aquele mundo em que não exista mais judeus.

Interpretar Žižek sobre esta ou qualquer outra questão, tem suas dificuldades. Primeiramente existe a sua prolixidade excessiva, o fluxo de textos que ninguém poderia ler em sua totalidade, mesmo porque sua torrente não cessa de jorrar. Depois, há o uso de um tipo de jargão acadêmico com alusões a outros pensadores, o que lhe permite usar a linguagem de uma forma astuta, hermética. Como ele próprio reconhece, Žižek toma emprestado o termo “violência divina” de “Para uma crítica da violência”, obra de Walter Benjamin (1921). É duvidoso que Benjamin, um pensador com afinidades importantes com o marxismo humanista da Escola de Frankfurt, tivesse descrito como sendo “divino” o Khmer Vermelho ou o frenesi destrutivo da Revolução Cultural maoista.

Mas isso não vem ao caso, pois, ao utilizar a construção de Benjamin, Žižek é capaz de louvar a violência e, ao mesmo tempo, argumentar que está falando da violência em um sentido especial, recôndito – um sentido em que se pode descrever Gandhi como sendo mais violento do que Hitler. E há, ainda, o constante recurso de Žižek no jogo de palavras laborioso e em efeito “palhaço de circo”:

A […] virtualização do capitalismo é, em última análise, a mesma do elétron na física das partículas. A massa de cada partícula elementar é constituída por sua massa em repouso mais o excedente fornecido pela aceleração do seu movimento; no entanto, a massa de um elétron em repouso é zero, pois a sua massa consiste apenas no excedente gerado pela aceleração, como se estivéssemos lidando com um nada que adquire uma substância enganosa apenas por magicamente girar até tornar-se um excesso de si mesmo.

É impossível ler o trecho acima sem lembrar o caso Sokal, em que Alan Sokal, um professor de física, apresentou um artigo paródia – “Transgredindo as fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica” – a uma jornal de estudos culturais pós-modernos. Do mesmo modo, é difícil ler isso, e muitas passagens semelhantes de Žižek, sem suspeitar que ele esteja envolvido – intencionalmente ou não – em uma espécie de auto-paródia.

Pode existir aqueles que são tentados a condenar Žižek como um filósofo do irracionalismo, cujo louvor à violência é uma reminiscência da extrema-direita, mais do que da esquerda radical. Seus escritos com frequência são ofensivos e às vezes (como ao escrever que Hitler está presente “no judeu”), obscenos. Há uma frivolidade zombeteira na exaltação de Žižek ao terror que faz lembrar Gabriele D’Annunzio, um futurista italiano ultranacionalista, e seu companheiro de viagem, o fascista (e depois maoista) Curzio Malaparte, mais do que qualquer pensador na tradição marxista. Mas há uma outra leitura de Žižek, que pode ser mais plausível, em que ele não é um epígono da direita, assim como não é discípulo de Marx ou Lênin.

Seja ou não, uma visão marxista do comunismo “uma fantasia do próprio capitalismo”, o fato é que a visão de Žižek – além de rejeitar concepções anteriores, carece de qualquer conteúdo definitivo – está bem adaptado a uma economia baseada na produção contínua de novas experiências e novos produtos, cada um supostamente diferente de qualquer outro que tenha existido antes. Com a ordem capitalista vigente ciente de que está em apuros, mas incapaz de conceber alternativas viáveis, o radicalismo sem forma de Žižek é ideal para uma cultura paralisada pelo espetáculo da sua própria fragilidade. Não é de se surpreender que haja esse isomorfismo entre o pensamento de Žižek e o capitalismo contemporâneo. Afinal, apenas uma economia do tipo que existe hoje poderia produzir um pensador como Žižek. O papel de intelectual público mundial que Žižek desempenha surgiu juntamente com um aparato de mídia e uma cultura da celebridade que são parte integrante do atual modelo de expansão capitalista.

Em uma conquista estupenda de superprodução intelectual, Žižek criou uma crítica fantasmática da ordem presente, uma crítica que firma repudiar praticamente tudo o que existe atualmente, e em certo sentido realmente o faz; mas que, ao mesmo tempo, reproduz o dinamismo compulsivo, sem propósito, que ele enxerga nas atividades do capitalismo. Ao alcançar um conteúdo enganoso com a reiteração interminável de uma visão essencialmente vazia, a obra de Žižek – ilustra muito bem os princípios da lógica paraconsistente – consiste, no final, em menos que nada.

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