quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Um sonho incompleto para os negros americanos 50 anos depois

Flávia Barbosa
O Globo

Meio século após a Marcha a Washington, evento decisivo da luta contra a discriminação racial nos Estados Unidos, a comunidade negra americana ainda vive à espera de ver realizado o sonho de uma sociedade justa e igualitária delineado das escadarias do Lincoln Memorial pelo reverendo Martin Luther King Jr, em 28 de agosto de 1963. A absolvição do assassino branco do menino negro Trayvon Martin, caso no qual o componente racial foi apontado como gatilho do desfecho trágico, e a decisão da Suprema Corte de derrubar artigo fundamental da Lei de Direito ao Voto, uma conquista histórica - ambas neste ano simbólico -, deixaram um rastro de indignação, a sensação de retrocesso e a certeza de que direitos civis são um assunto inacabado nos EUA. Amargando ainda indicadores socioeconômicos piores do que a média dos compatriotas, a população afro-americana dá sinais de fadiga com a trégua das últimas décadas, especialmente desde a eleição de Barack Obama - que discursará nesta quarta-feira nas mesmas escadarias.

Foi com a indignação estampada no peito - “Esta é uma questão importante”, dizia sua camiseta - que Gwen Harris, aos 74 anos, decidiu mais uma vez deixar o Alabama rumo à capital americana para marchar por seus direitos. Então uma jovem administradora de empresas, em 1963 ela tomou um dos ônibus que saíram da conflagrada Birmigham, palco das violentas repressões policiais a manifestantes que acordaram o Norte dos EUA para a brutalidade da segregação, para se juntar a 200 mil americanos naquele dia inesquecível. No último sábado, Gwen estava no mesmo lugar, acompanhada da filha Dru, 39 anos, e do neto Maxwell, de 5. Emocionadíssima, dividia-se entre a alegria de ver passados os tempos de perseguição e o pesar de ainda ter quase todas as mesmas demandas, resumidas em um lema: oportunidades iguais.

“Não estamos aqui só para celebrar, estamos aqui para um novo começo. Precisamos trazer os assuntos e a ação de 1963 de volta porque as pessoas ainda estão lutando para ter as mesmas oportunidades. Assim como eu, com mestrado, não alcancei o mesmo que meus pares brancos, e vejo as dificuldades da minha filha, que é enfermeira desempregada, temo que a história se perpetue com o meu neto. É hora realmente de um basta”, disse Gwen, cujo pavor é que Maxwell seja um dia alvo, como Trayvon, de perseguição só por ser negro.

De mãos dadas com a filha, em regozijo típico das missas de domingo, Gwen ouviu as palavras do deputado John Lewis, 73 anos, único dos seis grandes líderes negros a discursar 50 anos atrás ainda vivo. E, com a multidão, reagiu com gritos e aplausos ao chamado por mobilização imediata

“Muito ficou para trás 50 anos depois, mas ainda temos brigas. Há pessoas que querem nosso retrocesso. Mas não andaremos para trás. Se passaram 50 anos e não podemos mais esperar, não podemos mais ser pacientes. Não podemos assistir sentados à Suprema Corte tentar roubar nossos direitos. Queremos nossa liberdade e a queremos agora. Façamos barulho!” - bradou Lewis.

Racismo mais sutil

Os avanços da comunidade negra são evidentes. A segregação acabou, os direitos de cidadania foram equiparados, houve mobilidade social e o poder político foi ampliado. A Câmara que passou as leis de Direitos Civis e Direito ao Voto nos anos 1960 tinha seis parlamentares negros. Hoje são 43, há dez vezes mais políticos negros eleitos para todos os cargos e a Casa Branca é ocupada por um afro-americano. Mas permanecem desequilíbrios fundamentais.

Apenas 85% dos negros têm o segundo grau completo, a taxa de desemprego de 12,6% entre os negros é muito superior aos 7,4% gerais, a renda familiar das famílias negras é dois terços da média nacional, apenas 43% delas têm casa própria e 28% dos afro-americanos vivem abaixo da linha de pobreza (quase o dobro da média da população). Os negros têm também os piores empregos e ocupam menos o topo da pirâmide do mundo corporativo.

“O racismo é mais sutil, mas os obstáculos permanecem. Cheguei à universidade egressa de uma comunidade pobre na Geórgia, onde todas as dificuldades são evidentes. Nos faltam subsídios para acessar educação de qualidade, nos faltam os equipamentos e estímulos quando jovens, nos falta emprego. E nos falta o Estado, desde iluminação pública até segurança, as autoridades não vão às comunidades como vão aos bairros brancos. Isso não pode mais se perpetuar” - afirmou Tiffany Hallback, de 22 anos, aluna da Savannah State e militante do Conselho Nacional das Mulheres Negras.

A violência é outro reflexo da permanência da desigualdade. Um em cada 15 homens negros americanos está encarcerado nos EUA, com sentenças 10% mais longas. Afro-americanos têm três vezes mais chances de passar por revistas ao dirigir um veículo do que brancos. Mulheres negras encarceradas já são 200 mil e têm três vezes mais chances de parar na cadeia do que as brancas.

Para o reverendo Herbert Daughtry, ativista no Brooklyn, Nova York, os números escancaram o uso da raça como seletor da ação policial: “Raça ainda é uma questão na nossa sociedade, e séria. Existe um encarceramento em massa em vez de uma ação para matrícula em massa de negros em universidades. E não é só. A falta de trabalho e de moradia decentes persegue a comunidade e revela descaso histórico. Há progresso, mas ainda são poucos aqueles que o experimentaram plenamente. Ter um presidente negro é simbólico, mas as políticas públicas têm que acompanhar. Do contrário, permanece a sociedade hipócrita e desigual”.

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