Le Monde Diplomatique
É preciso aproveitar a força das ruas, a brecha que ela cria para a negociação com as forças políticas. Há muito tempo que o Parlamento e o governo não estavam tão preocupados com as vozes das ruas. O grito de protesto é com a vida insuportável nas cidades, o que dá força à sociedade para disputar a gestão e o sentido das políticas públicas. Dois são os pleitos que vêm das ruas: queremos participar e controlar, e queremos equipamentos e serviços públicos gratuitos para todos e de qualidade.
É uma reação à mercantilização da vida, à exploração dos trabalhadores. Tudo que você precisa tem de ser pago. Isso chegou a um limite. Esse modelo tornou-se insuportável. A falta de dinheiro para viver dignamente impulsiona a revolta.
A luta pelo direito à cidade se orienta para a defesa dos bens públicos comuns. Água, luz, coleta de lixo, transportes poderiam ser oferecidos a todos sem cobrança de taxas. Não seria de graça. É que isso mudaria a base tributária, isto é, a cobrança desses serviços não seria mais feita ao usuário; ela seria paga pelos impostos de todos, o que abre outra questão, dessa vez sobre a justiça tributária. Quem pagaria essa conta adicional, agora dirigida ao tesouro municipal?
Mas há outra característica importante de um bem público comum. Ele passa a ser de todos, ele não é de ninguém, ele deixa de ser propriedade privada. E nessa condição cabe ao Estado geri-lo sob uma nova lógica: a do interesse público.
A conversão dos serviços públicos em bens públicos comuns e a municipalização e democratização da sua gestão são aspirações compartilhadas com povos de outras nações, que também saíram às ruas mobilizados em defesa do direito à cidade. Há casos como a “guerra da água”, em Cochabamba, na Bolívia, que expulsou uma multinacional que era prestadora privada do abastecimento de água e reconduziu esse serviço à condição de bem público comum. Também aí foi a mobilização dos cidadãos que impôs a mudança.
A democratização da gestão tornou-se um imperativo para legitimar e revigorar nossas instituições ainda chamadas de democráticas. Ou essas velhas instituições se abrem para uma reforma política, ou as mobilizações não vão parar. Também está em xeque toda a “arquitetura da participação”, dos conselhos de políticas públicas e de direitos, assim como das conferências sobre políticas públicas. Consideradas por muitos um avanço na democratização da gestão, se elas não ouvirem as vozes das ruas, se abrirem para receber novos atores, renovarem as representações e as agendas, criarem novas regras de funcionamento, podem estar chegando ao seu fim como canal de diálogo e negociação com a sociedade.
O Conselho Nacional das Cidades é, por definição, o espaço de participação cidadã na discussão e proposição de políticas urbanas. São essas políticas que levam a população ao grau de insatisfação que as faz ir às ruas e atacar as sedes de governo. Já que o Ministério das Cidades sequer se manifestou sobre a explosão da crise urbana, o Conselho das Cidades e a Conferência das Cidades podem assumir de fato o espaço de negociações, formulação de propostas de mudança e de controle de sua aplicação.
Para que isso ocorra, o governo federal terá de se abrir a uma negociação de fato, reconhecer uma nova correlação de forças, apresentar propostas de mudanças e submetê-las à legitimação da Conferência. Como caberá ao Ministério das Cidades operar essas novas políticas, recuperá-lo para a defesa do Estatuto da Cidade torna-se um imperativo.
As questões urbanas são parte e expressão de como a economia capitalista se organiza, num modelo de concentração, expulsão e predação da natureza. Não há soluções pontuais, mas as transformações sempre partem de territórios, de iniciativas que irrompem localmente.
Não há sinais na conjuntura de que essas proposições acima possam se tornar realidade. Elas são uma leitura de possibilidades trazidas pelos movimentos sociais. Elas buscam participar do debate sobre o futuro, a sociedade que queremos e como chegar lá. Compreendendo que esse é um longo processo, com muitos reveses à frente, é preciso reconhecer que a sociedade está em movimento.
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