quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Brasil quer levar a ONU sua experiência de combate à fome


Nádia Pontes
Deutsche Welle


José Graziano da Silva pode ser o próximo diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. Na bagagem, experiência como ex-ministro de Segurança Alimentar e o combate à fome no Brasil. "O que aprendemos no governo Lula é que ninguém sai da miséria sozinho. É preciso um grande esforço de organização e de participação social. O Fome Zero não foi um programa de governo, mas de uma sociedade que tinha decidido acabar com a fome", diz Graziano em entrevista a Deutsche Welle.

A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, FAO, lidera as ações internacionais voltadas à erradicação da fome. José Graziano pode ser o primeiro brasileiro a assumir a direção da entidade. Indicado ao posto pelo ex-presidente Lula, Graziano ajudou a implementar o programa Fome Zero, que levou ao Bolsa Família.

Desde 2006, o brasileiro ocupa o cargo de subdiretor-geral da FAO e representante regional para a América Latina e Caribe. Antes da escolha oficial, que acontecerá em junho, José Graziano conversou com a Deutsche Welle sobre suas propostas e vivências na missão de acabar com a fome.

O Brasil se tornou, nos últimos anos, uma referência no combate à fome e o senhor, no governo Lula, fez parte dessa transformação. Como essa experiência pode ser aplicada à frente da FAO?

A primeira coisa que a gente precisa ter em mente é que a fome tem muitas caras e a gente precisa descobrir a cara da fome em cada país, ou em cada região dentro do mesmo país. No Brasil, por exemplo, encontramos gente passando fome na Amazônia, à beira de rio, porque não conseguia pescar, e no Nordeste encontramos gente passando fome porque não tinha acesso à água.

Não há uma fórmula única, ao contrário de alguns organismos internacionais que querem acabar com a fome com uma única receita. O que eu gostaria é que a FAO chegasse mais perto dos países, descentralizasse mais suas atividades e tivesse uma proximidade maior com o que os países já fazem.

O sucesso do Fome Zero se explica porque ele não reinventou a roda. Não estamos falando de uma coisa que exige muita tecnologia, mas de acabar com a fome. Isso as nossas mães e avós sabiam fazer, mas depois, com a urbanização acelerada, perdemos muito dessas noções.

Estou falando de aproveitar melhor os produtos disponíveis, de fazer hortas escolares, de cisternas de captação de água da chuva, de apoiar a agricultura familiar – que é a grande produtora de alimentos. A segurança alimentar se conquista no lugar onde as pessoas vivem e moram. E esses são os conceitos básicos do Fome Zero.

O que aprendemos no governo Lula é que ninguém sai da miséria sozinho. É preciso um grande esforço de organização e de participação social. O Fome Zero não foi um programa de governo, mas de uma sociedade que tinha decidido acabar com a fome: ele juntou a sociedade civil, as organizações sociais, as igrejas, os clubes de futebol e o setor privado, que é muito importante.

Aprendemos também que a coordenação governamental é muito importante em seus diversos níveis. Fazer essa articulação entre os diferentes níveis de governo é parte do segredo.

O senhor está à frente da FAO na América Latina desde 2006. As causas da fome na região são as mesmas em outros lugares do mundo?

Não. Nós, na América Latina, estamos próximos de gerar vida em laboratório e não conseguimos erradicar ainda aquele que foi o primeiro desafio da humanidade, que foi comer, garantir a alimentação todos os dias.

O que nós encontramos na América Latina há cinco anos foram três razões fundamentais que causam a fome. A primeira é a falta completa de institucionalidade para o tema da segurança alimentar. Os governos estavam preparados para muitas coisas, para atuar em situações de emergência, mas não para enfrentar esse tema.

Um exemplo: como ministro, certa vez precisei comprar água para uma tribo indígena que tinha tido o poço envenenado. Descobri então que, para comprar água potável, era preciso fazer uma licitação pública, publicar em três jornais de circulação nacional, esperar 30 dias e apurar o resultado.

Obviamente que, a essas alturas, a água não seria mais necessária porque as pessoas lá já teriam morrido. E isso mudou, os governos têm mais poder para combater esse problema. Já são dez países com leis implantadas e outros dez estão discutindo a questão nos parlamentos.

O segundo ponto que identificamos, e que na crise de 2008 levou a um grande retrocesso, foi a falta de recursos. Os países da região, principalmente os mais pobres, têm uma debilidade fiscal muito grande. Precisamos de mais recursos para os temas sociais. Está provado que o Estado preciso gastar. E gastar em educação é um investimento social, gastar em erradicar a fome é um investimento altamente lucrativo.

Terceiro, mas não menos importante, é que os países haviam abandonado a agricultura. Como muitos países do mundo, as nações mais pobres preferiram importar os alimentos numa época de preços baixos. Quando o disco virou, os países descobriram que aquele grande supermercado cheio de produtos não existia na verdade. Que os países mais poderosos retinham os produtos e evitavam exportar naquele momento de crise. O lado bom foi que as nações mais pobres começaram a valorizar seus produtos tradicionais. O Peru, por exemplo, que havia deixado de comer o tradicional pão de batata para comer pão de trigo, voltou às raízes.

Erradicar a fome é uma questão de dinheiro, de recursos?

O Brasil gasta hoje, com o Fome Zero, 0,4% do seu Produto Interno Bruto. E isso permitiu tirar mais de 30 milhões de pessoas da pobreza extrema e garantir três refeições por dia em seis anos, praticamente.

Esses números atestam que é muito barato. Alimentação é algo muito barato se for comprada localmente. O que encarece muito os alimentos é o custo com o transporte e com o processamento agroindustrial, para manter a preservação do alimento por longos períodos.

E a alimentação adequada reduz muito o gasto com saúde e com educação porque as crianças têm um aprendizado melhor. Eu diria que o principal num programa de combate à fome é a decisão da sociedade, é o respaldo político.

E também é preciso manter a continuidade dos programas, que são de médio e longo prazo. Não podemos tratar a fome como algo emergencial, ela precisa de estrutura, é algo permanente, assim como a pobreza extrema.

E como fica a ação da FAO nesse panorama atual de alta do preço dos alimentos, das commodities. Fica ainda mais difícil combater a fome?

A FAO não é uma instituição financeira, não é um espaço de negociação. Nós somos uma instituição de conhecimento, fazemos estudos, recomendações de política, damos assistência técnica a países que demandam apoio na área de agricultura e alimentação.

Somos um clube de países, o maior das Nações Unidas, com 191 membros. Só dois países do mundo não participam da FAO: Brunei e Cingapura. Nós provemos informações, juntamos estatísticas de todos os países, comparamos e publicamos para ajudar a dar transparência ao mercado. Todo mundo sabe quais são os estoques, onde eles estão, quanto e onde os preços subiram.

Também fazemos estudos das tendências desses preços, e das razões. Nossas projeções mostram que até 2020 teremos preços altos e voláteis. Por três razões básicas: temos uma demanda crescente dos países em desenvolvimento, os pobres estão comendo mais.

Segunda razão: os estoques estão baixos. Costumávamos operar com estoque de 20% a 25%, nível considerado confortável. Hoje temos produtos muito importantes, como o milho, com estoques abaixo de 20%. E, toda vez que o estoque baixa, facilita a especulação. Os americanos estão reduzindo seus estoques em função da produção do etanol com milho, o que facilita a especulação e a alta do preço. O milho é como petróleo, entra em quase todo produto agrícola.

Temos uma terceira atividade que é muito importante nesse momento: a FAO dá assistência. Se um país quer saber o que tem que fazer para enfrentar a volatilidade dos preços, nós vamos lá e vemos o que tem que ser feito.

O que está muito claro para todo o mundo é que a alta dos preços não é um problema de um país, mas um problema global. Vai do Haiti ao Egito. Vimos o que aconteceu: por trás dessas revoltas está um descontentamento com a carestia, sabemos que esse é um fator importante para as explosões sociais. Não é só a falta de democracia, mas a falta de comida, falta de acesso aos alimentos.

A segurança alimentar virou um tema tão importante quanto o combate ao terrorismo, a segurança da soberania nacional, parte das preocupações centrais dos governos.

2015 já está aí e a erradicação da fome é uma questão principal dentro das Metas do Milênio das Nações Unidas. O quão próximos, ou distantes, estamos dessa meta?

Muito próximos no tempo e muito distantes nos objetivos. E o meu mandato, se for eleito, vai terminar justamente em 2015. Já sabemos que muitos países, principalmente os mais pobres, não conseguirão cumprir a meta. O primeiro ponto da minha plataforma é que a FAO se envolva com esses países que estão atrasados no cronograma para ajudá-los a montar um plano não apenas para reduzir a fome pela metade.

Estamos perfeitamente conscientes de que essa proposta de erradicar a fome também é uma questão política. Acabar com a fome não é questão técnica, mas de participação. Tem que envolver quem sabe onde estão os pobres. É muito difícil achar os pobres, eles às vezes são invisíveis, não têm documentos. A maioria dos países acha que combater a fome é uma coisa intuitiva, de distribuir dinheiro e alimentos. Mas não é.

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