quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Zigmunt Bauman: “Os demônios que nos perseguem não irão evaporar”

Davide Casati
Corriere della Sera

Estamos assistindo, com força expressiva nas últimas semanas, ao desenrolar de uma época marcada pelo medo e pela incerteza. A tese, que tem sido sistematicamente reiterada pelo sociólogo polonês Zigmunt Bauman, faz com que ele não alimente fáceis ilusões: “os demônios que nos perseguem não irão evaporar”, pois eles nascem e se alimentam dos próprios elementos que constituem nosso modo de vida e nossas sociedades.

Nessa entrevista, o pensador polonês explora sua visão do mundo e suas teses. Ele fala pensando sobretudo na Europa, mas as considerações que faz abarcam o conjunto do mundo contemporâneo.

Diante da cadeia de ataques que atingiram a Europa nas últimas semanas, o continente está tentando fazer as contas com um abismo de medo e insegurança. Que respostas podem ser alcançadas?

As raízes da insegurança são muito profundas. São existenciais: penetram fundo em nosso modo de viver, nascem e renascem diariamente da substituição em curso da solidariedade humana pela desconfiança mútua e pela concorrência desenfreada, são impulsionadas pelo enfraquecimento dos laços interpessoais, da dissolução das comunidades, da tendência de confiar a indivíduos providenciais a resolução de problemas de relevância mais ampla, social. O medo gerado por essa situação, em um mundo submetido aos caprichos de poderes econômicos desregulamentados e fora de controles políticos, aumenta e se difunde sobre todos os aspectos de nossas vidas. E faz com que se passe a buscar em vão um alvo, um objetivo sobre o qual se concentrar – um alvo palpável, visível e ao alcance das mãos.

Um objetivo que muitos visualizam no fluxo de refugiados e migrantes.

Muitos desses provêm de uma situação em que estavam seguros da própria posição na sociedade, do seu trabalho, da sua educação. De repente, tornam-se refugiados, perderam tudo. No momento da chegada, entram em contato com a parte mais precária das nossas sociedades, que neles veem as realizações de seus pesadelos mais profundos.

Diante desse desafio, crescem os pedidos de certas forças políticas para que se construam novos muros. Trata-se de uma resposta sensata?

Creio que se deve estudar, memorizar e aplicar a análise que papa Francisco, em seu discurso de agradecimento pelo prêmio Carlos Magno, dedicou aos perigos mortais do “aparecimento de novos muros na Europa”. Muros erguidos – de modo paradoxal e com má-fé – com a intenção e a esperança de que se possa ficar ao abrigo do tumulto de um mundo pleno de riscos, armadilhas e ameaças. O Pontífice observa, com profunda preocupação, que se os pais fundadores da Europa, “mensageiros de paz e profetas do futuro”, nos inspiraram “a criar pontes e a derrubar muros”, agora a família de nações que foram por eles impulsionadas parecem estar “sempre menos à vontade na casa comum. O desejo novo e celebrado de criar unidade parece esvaziar; nós, herdeiros daquele sonho, estamos tentando nos basear somente em nossos interesses egoístas, criando barreiras”.

Em seus estudos, o senhor indicou como valores fundadores das nossas sociedades a liberdade e a segurança: depois de uma época em que, para fazer com que a primeira crescesse, renunciamos gradativamente à segunda, agora o pêndulo se inverteu. Que reflexos políticos derivam disso?

Temos diante de nós desafios de uma complexidade que parece insuportável. E por isso aumenta o desejo de que se consiga reduzir essa complexidade a medidas simples, instantâneas. Com isso, expandiu-se o fascínio de “homens fortes”, que prometem – de modo irresponsável, enganoso e bombástico – encontrar aquelas medidas e resolver a complexidade. “Deixem comigo, confiem em mim”, dizem, e “resolverei tudo”. Em troca, pedem uma obediência incondicional.

Isso parece ser o que está propondo o candidato republicano às eleições norte-americanas, Donald Trump, cujas posições sobre segurança e imigração foram recentemente indicadas pelo presidente húngaro Viktor Orban como modelos até mesmo para a Europa…

Estamos assistindo a uma tendência preocupante: instâncias de tipo social, como precisamente a integração e o acolhimento, são apontadas como problemas a serem transferidos para órgãos de polícia e segurança. Isso significa que o espírito fundador da União Europeia não está em boas condições de saúde, porque a característica decisiva da inspiração que está na base da EU é a visão de uma Europa em que as medidas militares e de segurança deveriam ir se convertendo – gradual, mas constantemente – em coisas supérfluas.

O Islã é apontado por algumas forças políticas – por exemplo, a alemã Pegida (Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente) – como uma fé intrinsecamente violenta, incompatível com os valores ocidentais. O que o senhor pensa a respeito?

É preciso evitar categoricamente o erro, perigoso, de tirar conclusões para o longo curso a partir da fixação de algumas coisas. Como disse o grande sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015), no fundo da nossa atual confusão está o fato de já estarmos vivendo em uma situação “cosmopolita”, que nos obrigará a coabitar de modo permanente com culturas, modos de vida e fés diversas, sem que tenhamos desenvolvido de forma plena a capacidade de compreender suas lógicas e seus requisitos: sem termos, portanto, uma “consciência cosmopolita”. E é verdade que o preenchimento da distância entre a realidade em que vivemos e as nossas capacidades de compreensão não é um objetivo que se possa alcançar rapidamente. O choque está somente no início.

Estamos portanto destinados a viver em sociedades na quais o sentimento dominante será o do medo?

Trata-se de uma perspectiva sombria e perturbadora, mas atenção: a situação de sociedades dominadas pelo medo não é de modo algum um destino predeterminado, nem inevitável. As promessas dos demagogos podem se afirmar, mas também têm, por sorte, vida breve. Uma vez que novos muros vierem a ser erguidos e mais forças armadas forem dispostas nos aeroportos e nos espaços públicos; uma vez que se recusem os pedidos de asilo de quem procura fugir de guerras e destruições e que mais migrantes sejam repatriados, ficará evidente que tudo isso é irrelevante para resolver as causas reais da incerteza. Os demônios que nos perseguem – o medo de perder nossa posição na sociedade, a fragilidade das metas que definimos – não irão evaporar, não desaparecerão. Nesse ponto, poderemos despertar e desenvolver os anticorpos contra as sereias dos demagogos e dos bufões agitadores que tentam conquistar capital político com o medo, jogando-nos fora da estrada. O temor é que, antes que esses anticorpos sejam desenvolvidos, muitos vejam as próprias vidas serem destruídas.

O senhor tem defendido que as possibilidades de hospitalidade não são ilimitadas, mas que também não o é nem sequer a capacidade humana de suportar sofrimento e rejeição. Diálogo, integração e empatia, porém, exigem tempos longos…

Respondo citando mais uma vez papa Francisco: “sonho com uma Europa em que ser um migrante não seja um crime, uma Europa que promova e proteja os direitos de todos sem esquecer os deveres perante todos. O que se passou com você, Europa, local destacado de direitos humanos, democracia, liberdade, terra mãe de homens e mulheres que arriscaram e perderam a própria vida para defender a dignidade dos próprios irmãos?”. Tais perguntas se dirigem a todos nós; a nós que, enquanto seres humanos, somos plasmados pela história que contribuímos a plasmar, conscientemente ou não. Cabe a nós encontrarmos respostas a essas perguntas e as exprimirmos em fatos e palavras. O maior obstáculo para que encontremos essas respostas é a nossa lentidão em procurá-las.

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