segunda-feira, 9 de março de 2015

Patrimonialismo renitente

José Antonio Segatto
Gramsci e o Brasil

Nos últimos meses, o problema do Estado patrimonialista voltou à baila após a presidente da República, em discurso no ato de sua diplomação, referir-se à confusão entre negócios públicos e interesses privados. A seguir o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, em seu discurso de posse, retomou a questão e assegurou que uma de suas prioridades seria o combate ao patrimonialismo.

Problema antigo, o patrimonialismo de há muito vem sendo objeto de estudos e apreciações. Por meio de adaptações criativas dessa categoria weberiana, diversos autores abordaram a relação entre Estado e sociedade na história brasileira. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, de 1936, escreveu que o patrimonialismo seria um prolongamento do patriarcalismo no Estado, daí derivando o desapreço pela impessoalidade na gestão da coisa pública.

Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, de 1958, foi além. Numa operação analítica sequencial de larga duração histórica — do século 14 ao 20, de dom João I a Getúlio Vargas, numa “viagem redonda” de seis séculos — procurou reconstituir a história do capitalismo politicamente orientado pelo estamento burocrático. Gestado em Portugal e transplantado para o Brasil, o Estado burocrático-patrimonial teria engendrado, no século 19, uma monarquia tuteladora da Nação, na qual o Estado é tudo e a sociedade civil, nada. Controlado e dirigido pelo patronato político, o “governo tudo sabe, administra e provê. Ele faz a opinião, distribui a riqueza e qualifica os opulentos”. No pós-1930, o patrimonialismo teria sido revigorado, particularmente durante o Estado Novo.

Nessa compreensão, a herança ibérica e estatista ou patrimonial seria a chave para o entendimento da história do Brasil. Tal maldição, proveniente do “pecado original”, determinaria, inevitável e invariavelmente, o País ao atraso, condenando-o ao autoritarismo e ao infortúnio. Não obstante o caráter trans-histórico e fatalista da interpretação de Faoro, não se pode compreender a formação do Estado nacional prescindindo de sua análise.

Mas se o patrimonialismo é uma realidade inquestionável que impregna todas as relações sociais, a cultura política e os liames entre a sociedade civil e a política — ou está entranhado nelas —, ele não pode ser considerado como a chave determinante e a-histórica do Estado brasileiro. Tem de ser analisado como construção histórico-política da organização do Estado nacional, tendo em vista as configurações que assumiu nos diversos períodos e regimes, com todas as mediações possíveis. Ele não pode ser compreendido por si só — por exemplo, sempre esteve intimamente amalgamado às relações de favor e clientelistas e, no pós-1930, ao corporativismo.

Além dos intelectuais referidos, o conceito de patrimonialismo está também presente, direta ou indiretamente, nas análises de muitos outros estudiosos, permeando-as, embora com entendimentos diversos, como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Simon Schwartzman e outros. Nos anos 1970 — na crítica e no combate ao regime ditatorial — converteu-se em moeda corrente e tornou-se mesmo ideia-força. Os fundamentos basilares das análises, derivados do conceito de patrimonialismo, na luta pela democracia confundiram-se com o combate ao Estado — que deveria ser reduzido e enfraquecido — e com o robustecimento da sociedade civil. Ou seja, a condição sine qua non para a democratização estaria no cerceamento do poder de intervenção do Estado e na depuração de suas anomalias, entraves para a economia de mercado e para a efetivação de direitos.

Não é exagero afirmar que essas concepções estiveram mesmo na gênese do PT e do PSDB, partidos tornados os novos donos do poder nas duas últimas décadas. Todavia, se foram concebidos contra o Estado patrimonial, como explicar que, em 20 anos no governo do País, não conseguiram expurgar do Estado os elementos e as relações que facultam a privatização de bens públicos e a apropriação indébita do Estado como algo exclusivo de indivíduos e grupos, corporações e confrarias para garantir e perpetuar privilégios e negócios?

No governo, o PSDB, que prometia desmantelar o “Estado varguista”, realizou algumas reformas, privatizando parte do aparato e do patrimônio estatal, mas sem publicizá-lo. Já os governos petistas não só se acomodaram às vantagens do patrimonialismo e do clientelismo — desfrutados pragmática e utilitariamente —, como potencializaram sua práxis e cultura política.

Por mais paradoxal que possa parecer, as declarações de intenção da presidente e do ministro de combate ao patrimonialismo no Estado não são incompatíveis com a política que tem guiado os governos petistas desde 2003. As concepções e orientações liberais ortodoxas de Joaquim Levy deverão ser conformadas ao condomínio de poder, segundo os desígnios do “presidencialismo de coalizão” — o papel (antipático) que lhe foi atribuído é, única e exclusivamente, o de realizar os ajustes econômicos necessários à governabilidade, à rentabilidade dos negócios e à estabilidade funcional do mercado. Como se fosse possível apartar economia e política. De resto, tudo deve continuar como dantes, com uma simples diferença: as práticas e/ou políticas patrimonialistas e clientelistas poderão ter algumas regras de contenção e regulação. O atual arranjo de forças políticas no poder não sobrevive sem tais práticas, dado que lhe são congênitas.

Nesse sentido, os dirigentes e representantes do PT, PMDB e demais partidos da base aliada podem dormir tranquilos — seus interesses e práxis serão muito pouco afetados. Pode-se dizer que a política do ministro Joaquim Levy de combate ao patrimonialismo não intenta, nem está autorizado a isso, publicizar o Estado. E sem Estado público a democracia continuará aviltada.

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