terça-feira, 1 de abril de 2014

Sobre o Golpe e outros demônios

Theresa Hilcar
Correio do Estado

O jornalista Luiz Carlos Azedo tinha apenas 12 anos de idade quando aconteceu o Golpe de 64. No entanto, pode dar detalhes minuciosos e fazer análise imparcial sobre a história do Brasil, antes e depois do Golpe Militar, que completa 50 anos. Filho de pais comunistas, participou desde a juventude dos movimentos políticos. Como filiado ao PCB, dirigiu o semanário da entidade e, mais tarde, entrou para a cúpula da Executiva Nacional do partido exercendo o cargo de secretário. No jornalismo tornou-se profissional reconhecido nacionalmente, e um dos principais analistas políticos de Brasília. Atualmente escreve no jornal Correio Brasiliense e faz comentários políticos no Blog do Azedo. Nesta entrevista exclusiva, durante sua passagem por Campo Grande a convite da Fundação Astrojildo Pereira, Azedo fala sobre os motivos do Golpe de 64 e sobre os movimentos de rua da atualidade. Segundo ele, o golpismo impregnava tanto nas forças mais conservadores quanto nas forças de esquerda. E chama a atenção para clamores equivocados. “As coisas não se resolvem no embate entre o velho e o novo. Elas se resolvem dentro de cada geração”.

Na sua opinião, quais são os principais fatores que levaram ao golpe de 1964?

Primeiro havia um acirramento da guerra fria. Desde a crise dos mísseis em Cuba que o então presidente dos EUA, Kennedy, estava preocupado com o Brasil. Hoje a gente sabe que ele havia discutido com o embaixador e a cúpula norte-americana a possibilidade de uma intervenção no País caso o Jango avançasse na direção de uma aliança com a esquerda: China, Cuba, União Soviética. Com o bloco socialista. E este acirramento no plano internacional também se dava no Brasil na disputa da política interna. De certa forma determinado por três ou quatro fatores: primeiro na economia, onde a inflação era galopante, na casa dos 45 por cento.

Segundo, havia uma situação de impasse do ponto de vista da estratégia de desenvolvimento, o processo de exportações tinha entrado numa espécie de encruzilhada; para se manter no processo a economia precisava modernizar sua agricultura, enquanto a esquerda propunha reforma agrária; também havia questões para resolver quanto ao desenvolvimento do setor energético, a discussão sobre estatização do petróleo, problemas sobre concessão da light, do gás (que a esquerda queria estatizar). Ou seja, o país precisa de investimento, mas as opiniões quanto à natureza deste investimento não eram consenso. A esquerda discordava dos setores privados e conservadores que queriam minimizar a interferência do Estado e deixar na mão dos mercados.

A terceira questão, de grande peso, foram as eleições de 1965. Havia dois candidatos: Carlos Lacerda – UDN (com 27 % de intenção de votos) e o Juscelino Kubistchek– PSD (com 38% de intenção de votos). A esquerda não aceitava a volta do Juscelino, e forçava para lançar o Brizola, com o apoio do João Goulart. Isto ajudou a isolar o governo Goulart, que já era fraco, porque, além de não ter sido eleito (Jango tomou posse com a renúncia do Jânio Quadros), havia tentado decretar estado de sítio em São Paulo e Rio de Janeiro na tentativa de destituir os dois governadores. Isto acirrou o quadro político.

E o quarto fator, e mais importante, foi o golpismo que impregnava tanto nas forças mais conservadores quanto nas forças de esquerda. O golpismo vem da concepção do positivismo, uma ideologia que se baseia no estado centralizado, vertical e que predomina na política brasileira desde Floriano Peixoto, passando por Getúlio Vargas e Geisel. O golpismo existia nos dois lados. A ideia de resolver as coisas via ação militar impregnou a política brasileira desde a década de 1920.

No documentário “O dia que durou 21 anos”, o embaixador norte-americano Lincoln Gordon aparece como principal articulador do golpe. Até que ponto os EUA tiveram influência no que aconteceu?

Eu tenho opinião preliminar sobre este assunto. Assim como durante todo o período da ditadura a história era contada a partir da perspectiva dos militares - Intentona comunista, terrorismos e tal -, depois da democratização, na literatura com as biografias e no cinema, as cinematografias, a revisão da história tem sido feita com sinal trocado. Na minha opinião, há um certo desequilíbrio na maneira de ver as coisas. Na maioria dos casos, esta maneira de contar a história é uma forma artística de apreensão da realidade. E como toda forma artística de apreensão da realidade, aborda-se sobretudo a emoção. E a emoção de certa forma às vezes se sobrepõe à razão. Isto dá o caráter de arte. Eu acho que nós temos que romper este maniqueísmo na hora de ver as coisas. Houve um peso decisivo dos EUA no golpe, o embaixador foi um personagem do golpe, ele tinha relações com militares brasileiros, era um homem de inteligência militar numa guerra fria e não pode ser subestimado como personagem. Mas há um duplo engano em a absolutizar a participação dele, porque de um lado vai glamourizar a imagem do Kennedy, como um grande presidente, bonzinho, quando a gente sabe que ele também estava por detrás de tudo isto. Por outro lado se dá aos EUA um peso exagerado, quando o fator determinante no golpe não foi a correlação de forças internacionais, mas a correlação de forças internas.

Jango foi um político fraco?

Há controvérsias. Ele não foi o político mais brilhante da sua geração. Ele não foi mais brilhante que Tancredo, que Santiago Dantas ou Carlos Lacerda. Ele era pragmático, com carreira construída junto aos sindicatos, herdeiro da tradição castilhista, dos políticos gaúchos - de Borges de Medeiros e Getúlio Vargas. E foi eleito vice-presidente por causa de uma manobra de sindicalistas de São Paulo. Sem querer desmerecer o papel de Jango na história -nem o fato de que ele sempre ficou do lado dos trabalhadores e do povo-, mas ele não era político com talento suficiente para enfrentar aquela situação. Ele se deixou seduzir pelo golpismo, o mesmo que tentou impedir a posse dele. O fato de Jango não ter resistido não foi algo negativo. Do contrário, o Brasil teria mergulhado num banho de sangue. Maior do que aconteceu na Argentina e no Chile. E de qualquer forma eles seriam vitoriosos.

A sensação é que não houve reação ao golpe.

Na verdade, boa parte da classe política apoiou o golpe. Porque nós vivíamos um processo de radicalização política, de bagunça mesmo. O presidente estava num processo de desmoralização de sua autoridade. Havia uma divisão clara, mesmo entre as forças liberais. A esquerda se opunha à candidatura do Brizola (cunhado de Jango) e achava que a candidatura de Juscelino seria retroceder na história. E não era. Retrocedemos com os 21 anos de ditadura. Depois do golpe os militares deixaram claro que eles não estavam ali apenas para tirar o presidente e garantir as eleições, mas para ficar mais tempo e dominar a situação. Foi aí que todo mundo se juntou, a esquerda se juntou. A primeira força política que detectou que aquilo não era apenas um golpe, mas uma ditadura de característica fascista, foi o comunismo.

Você disse em sua palestra na UFMS que houve certa glamourização da luta armada. Como é isto?

Eu acho que a luta armada não teve o peso que atribuem a ela. Além disto, na minha opinião, ignora-se solenemente o papel de milhares de militantes e dirigentes políticos que sacrificaram a vida pela volta da democracia e não pegaram em armas. No caso do PCB, além dos milhares que foram presos, 12 membros do Comitê Central foram assassinados na tortura. Eles não foram mortos porque eram terroristas ou tinham sequestrado embaixador. Eles foram mortos porque estavam na resistência ao regime, fazendo trabalho de formiguinha nos diretórios acadêmicos, nas comunidades, vivendo na clandestinidade e em situações adversas.

Em algum momento a presidente Dilma se beneficiou politicamente do fato de ter participado da luta armada?

A presidente assumiu apenas a condição de vítima da tortura. O resto está apenas na biografia dela. Ela nunca defendeu o assalto à casa da amante do Ademar de Barros, as ações que ela participou com o grupo nunca foram postas. O que acontece é que o pessoal da luta armada se sente como sendo vitorioso. E com a Dilma na presidência fica a sensação de que “alguém deles chegou lá”. Eu destaco isto porque existe uma injustiça histórica. Há uma tentativa de apagar a história como se tudo tivesse começado com a formação do PT. E como se entre o Araguaia e o PT não tivesse acontecido nada. A formação do PT já é fruto de muita luta e muita resistência. É óbvio que as greves do ABC deram a Lula um protagonismo muito grande. Mesmo assim, isto não foi decisivo na história democrática. Os liberais, pessoas como Ulisses Guimarães, tiveram maior importância que a esquerda. Há uma dupla injustiça neste sentido, que se faz com personalidades que lutaram para que o País voltasse a ser democrático, cujas memórias tentaram apagar.

O PT tem projeto totalitário?

Existem no PT várias correntes. Se você ler o “18 Brumário”, a restauração de Napoleão, você vai ver que as forças revolucionárias foram sendo progressivamente domadas pelas classes dominantes, de uma tal forma, que num determinado momento elas tentaram restabelecer a monarquia, como foi o caso da França. Por isto que Marx cunha aquela frase: “a história se repete primeiro como farsa, depois como tragédia”. Neste livro, Marx cunha outra expressão muito interessante: o “cretinismo parlamentar”, que é o deslocamento do parlamentar para servir ao poder, um tipo de cooptação pelo poder, forças acomodadas ao status quo, ativas ou passivamente. Ao fazer isto, resultam no transformismo do partido político. Então o que aconteceu no Brasil é que a ascensão do PT ao poder, de certa maneira, contaminou o partido, que antes era uma força de contestação, com um certo cretinismo parlamentar e um certo transformismo político. Por exemplo: no mundo inteiro a esquerda foi antimonopolista, defendia a pequena e média empresa (França, Itália principalmente), mas no Brasil, o PT, quando chega ao poder, começa a defender a formação de grandes monopólios financiados pelo partido dos trabalhadores. Há uma estratégia de fortalecimento do capitalismo de Estado, que é uma fusão do governo e grandes lucros econômicos de caráter financeiro que se beneficiam entre si. Há casos escandalosos, inclusive de fracassos, como foi o caso do Eike Batista. Num determinado momento ele era o modelo do capitalismo bem sucedido, que lutava de igual pra igual com as grandes multinacionais.

Isto não é transformismo para um Partido Operário? Porque o PT é um partido de base operária. Quer dizer, são questões que um dia terão que ser discutidas. Agora todo partido no poder quer continuar. Quem vai impedir que ele continue é a vontade popular e a existência de um sistema eleitoral que garanta a alternância de poder. Nós temos a democracia das massas. Não há país com eleições mais limpas no mundo que o Brasil. No mesmo dia você sabe quem é o presidente. Então não acho que o PT é vocacionado para se perpetuar no poder impondo uma ditadura. Eles provaram, no caso do mensalão, que a questão da legitimidade dos meios não é uma coisa bem resolvida entre eles. Além disto, a forma como eles travam a luta política, em determinada circunstância, é pouco democrática. Esse hegemonismo petista pode, sim, resultar num processo autoritário. Mas isto não está no DNA do PT. Até porque eles estão copiando métodos políticos das forças conservadoras do País. Não estão inventando nada.

Nos últimos tempos, temos visto diversos tipos de movimentos, nas ruas e nas redes sociais. Há inclusive radicais que pedem a volta dos militares ao poder. O que você acha que estas manifestações populares querem dizer?

Eu acho que o povo - pra usar uma expressão de que gosto muito - astucia as coisas. O povo está cada vez mais experiente. Inclusive do ponto de vista político eleitoral, por incrível que pareça. Porque, desde a redemocratização do País, com as eleições e as regras do jogo mais ou menos equilibradas, ele sabe o quanto o voto dele vale. O peso da boca de urna vem diminuindo cada vez menos nas últimas eleições. Seja porque a repressão da Justiça eleitoral mudou, mas também porque as pessoas já chegam sabendo em quem vão votar. Principalmente em eleições majoritárias. Ganha quem o povo quer que ganhe. A Dilma é presidente porque o povo escolheu. Isto quer dizer que o povo tem razão, que o povo não erra? Não. O povo erra. Mas o processo é que o povo escolha. É muito melhor que o povo erre escolhendo por ele mesmo. Foi por não entender coisas desta natureza que aconteceu o golpe de 64. O que levou as forças a se radicalizarem naquele momento pré 64 foi o fato de elas não estarem interessadas nas eleições. Elas não queriam que o povo escolhesse o candidato em 1965. E a esquerda embarcou nisto, na medida em que ela via o Juscelino como ameaça. E quis mudar a constituição, fazer um choque na marra achando que ia ganhar. E perdeu. Então esta questão tem que estar clara. Não é porque eu acho que o PT não é o melhor que eu vou questionar a legitimidade do exercício do poder pelo PT. O povo elegeu. Agora, eu só vou respeitar esta legitimidade até o momento em que eles respeitarem as regras do jogo. Na hora em que eles começaram a usar o poder para mudar o jogo, aí eu me retiro. Porque a democracia pressupõe alternância de poder.

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