quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O feitiço do camarote

Ruy Braga
Boitempo

Em sua teoria da acumulação do capital, Marx recorreu a um “conflito fáustico” para ilustrar a posição do capitalista no interior da estrutura social. Apesar da posse do dinheiro assegurar-lhe vasto poder e prestígio, este não poderia dispor livremente de seu capital como renda:

“Enquanto o capitalista clássico estigmatizava o consumo individual como pecado contra sua função e como uma ‘abstinência’ da acumulação, o capitalista moderno está em condições de conceber a acumulação como ‘renúncia’ ao seu impulso de fruição. ‘Vivem-lhe duas almas, ah! No seio,/Querem trilhar em tudo opostas sendas’ (Goethe)” (Marx, O capital, p. 668-9).

As leis coercitivas da concorrência simplesmente o obrigavam a transformar parte do valor não pago à classe trabalhadora em meios de produção e salários. Entre o desejo de consumir e a necessidade de reinvestir, o velho mestre do socialismo científico argumentou que a sociedade moderna transformava todos, sem exceção, em servos de um poder alheio e irracional, isto é, a pulsão da acumulação.

Mesmo descontando a simplificação do argumento, ou seja, todos os proprietários são considerados capitalistas industriais, o mais-valor é sempre realizado em sua globalidade e o crédito e o comércio exterior não existem, Marx argumentou que a capitalização seria impossível sem que a burguesia sacrificasse parte de sua liberdade em benefício do reinvestimento. Em termos sociológicos, foi Max Weber quem mais longe chegou nesta vereda ao afirmar que a ascese protestante teria representado um fator-chave na formação do fundo originário de investimento. Em suma, conforme o argumento clássico, a sociedade moderna, ao menos em suas origens remotas, dependeu de certa moderação dos gastos improdutivos.

É bem sabido que Weber e Marx deixaram de identificar resíduos deste comportamento racional entre os burgueses de sua própria época. Este associou, por exemplo, o circuito D-D’, isto é, a valorização do dinheiro pelo movimento do próprio dinheiro, ao coroamento do fetichismo do capital. Uma sociedade balizada por esta irracionalidade fatalmente degradaria seu padrão civilizacional em benefício da universalização da barbárie. A história do século XX em seu interminável calvário de crises, de guerras e de holocaustos, deu-lhe total razão.

Como a crise econômica mundial não nos deixa esquecer, o ciclo da globalização financeira livrou o capitalista até mesmo da memória daquele dilema “fáustico”. Afinal, a acumulação é hoje em dia predominantemente orientada para a compra e a venda de… dinheiro! Porque se preocupar com a longa desaceleração econômica que insiste em deprimir a economia mundial se é possível seguir lucrando por meio do financiamento da dívida dos Estados, da privatização do patrimônio público, da especulação financeira ou da imposição de pacotes fiscais de “austeridade” aos trabalhadores?

Se a ascese capitalista não é mais necessária à acumulação e os Estados garantirão os lucros e as rendas financeiras dos dominantes, o que resta à burguesia fazer? A resposta é simples: cair na farra enquanto o resto da sociedade vive da mão para a boca. Aliás, uma reportagem recente publicada pela revista Veja São Paulo sobre os “reis do camarote” da noite paulistana ilustrou à perfeição a natureza parasitária, perdulária, iletrada e patética da burguesia tupiniquim.

O personagem principal da matéria, Alexander de Almeida, é retratado como um incorrigível bon vivant sempre disposto a gastar 50 mil reais em uma única noitada. Quando ficamos sabendo que este senhor é proprietário de um escritório de recuperação de carros cujos clientes são bancos, percebemos a condição de acólito do capital financeiro cuja fortuna acumula-se em razão da desgraça dos devedores.

Evidentemente, o comportamento deste pateta não teria tido maiores consequências não fosse a desfaçatez pornográfica de sua impostura: um vídeo com os “dez mandamentos do rei do camarote” produzido pela “Vejinha” tornou-se viral na internet, escancarando a arrogância cínica e oca dos proprietários de capital:

“Eu gosto mais de tomar vodca, mas a champanhe ‘são’ ‘stats’. (…). Quando a pessoa tá na pista ela é mais um. Agora quando fica no camarote, ela acaba em evidência. O camarote é uma questão de ‘stats’. (…). A conta você sabe como é, né? Ela pode variar de R$ 5 mil até o infinito” (Alexander de Almeida).

Levando-se em conta o atual recorde de 45% de famílias trabalhadoras endividadas com os bancos, não é de se espantar que tantos tenham se sentido afrontados pelos “mandamentos” deste presbítero da igreja do rentismo. Além disso, não deixa de ser trágico que, em um país onde as lideranças petistas batalham diuturnamente pela conciliação de classes em benefício de super-lucros financeiros, a tarefa histórica de despertar e estimular o ódio contra os capitalistas e seus capachos tenha sido reservada à revista Veja.

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