segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Todorov e os inimigos íntimos da democracia

Fernando de la Cuadra
Gramsci e o Brasil

Há poucos dias o jogador Josy Altidore foi vitima de insultos racistas na Holanda. Cada vez que tocava na bola, os torcedores da equipe contrária começavam a imitar um macaco. A resposta do jogador a tais manifestações de racismo foi a seguinte:

O que você pode fazer? Apenas espero que esses torcedores encontrem um meio de melhorar (como pessoas). Você só pode rezar por elas. Eu sinto como se tivesse uma obrigação com o meu clube e minha família de não reagir a coisas como essa e mostrar que o clube é melhor do que isso e que eu fui muito bem criado para responder a tão ridículo comportamento. A gente devia esperar que a humanidade pudesse crescer, mas isso ainda está vivo, o racismo. Tudo o que podemos fazer agora é nos educar e educar as crianças para serem melhores do que isso. Eu não vou combatê-los (os torcedores racistas). Eles têm seus problemas e precisam de ajuda. Vamos rezar por eles e esperar que eles melhorem [1].

A declaração de Altidore nos coloca no centro de uma das questões levantadas por Tzvetan Todorov no livro Os inimigos íntimos da democracia: o racismo. No seu breve e incisivo ensaio, este filólogo, historiador das ideias e intelectual búlgaro radicado na França expõe com proverbial claridade os principais riscos que enfrentam as democracias no mundo contemporâneo, a saber, o messianismo, o ultraliberalismo e o populismo.

O mais assustador deste perigo é que ele nasce da própria esfera democrática, quando os valores e mecanismos mutuamente compartilhados adquirem um “descomedimento” (hubris), ou seja, um uso excessivo e distorcido. Isso ocorre quando os ideais da vida democrática, como progresso, liberdade ou povo, são absolutizados a tal ponto que se transformam em elementos de coerção das comunidades e dos indivíduos. Nas palavras de Todorov: “O povo, a liberdade, o progresso são elementos constitutivos da democracia; mas, se um deles se emancipa de suas relações com os outros, escapando assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em único e absoluto, eles transformam-se em ameaças: populismo, ultraliberalismo, messianismo, enfim, esses inimigos íntimos da democracia” (p. 18).

No inicio do livro, Todorov tenta demonstrar que, à diferença do que é difundido permanentemente pelos políticos, experts e mídia em geral, o islamismo integrista e os grupos terroristas jihadistas (como a Al-Qaeda) não representam ameaça significativa para as democracias ocidentais, se comparados com aquelas formas totalitárias ocorridas durante o século XX, tais como o comunismo ou o nazifascismo. Aquela é uma perspectiva errada, construída intencionalmente para ocultar os verdadeiros riscos que enfrentamos atualmente: o perigo realmente imperante consiste nas forças deletérias internas que a própria democracia produz, e, desta maneira, combatê-las e neutralizá-las é tanto mais difícil, pois elas invocam o espírito democrático quando na realidade corroem seus próprios pilares: o Mal surge do Bem.

Na história humana a procura do Bem frequentemente se fez a partir do convencimento de que os outros precisam de ajuda e “salvação”, razão pela qual me transformo na encarnação da missão de construir a redenção universal [1]. Este messianismo se expressou em diversos momentos históricos — nas guerras revolucionárias e coloniais, bem como no projeto comunista —, mas na forma contemporânea ele se veste com as roupagens dos valores democráticos universais, quando não são simplesmente desejos de poder e riqueza travestidos de humanismo.

Assim, surge em primeiro lugar o chamado “direito de ingerência”, quer dizer, se num determinado país se realizam violações aos direitos humanos, outros países podem decidir utilizar a força para evitar que ditas violações continuem se consumando (Kosovo). Outra modalidade deste novo messianismo tem sido cunhada com o nome de “guerra contra o terrorismo”, em que se torna válida e imprescindível a ocupação de um determinado país no caso de ele ser utilizado como base de operações de grupos terroristas (Afeganistão). Por sua vez, a “guerra preventiva” considera legitima a utilização da força para livrar ao conjunto da humanidade de algum perigo iminente. Finalmente, existe a fórmula da chamada “guerra humanitária”, em que também se produz a imposição pela força a outros países ou nações dos valores universais, utilizando para isso intervenções militares com ocupação territorial, como foi evidente nos casos do Iraque ou da Líbia.

De fato, o conceito de guerra humanitária representa uma contradição flagrante, dado que dificilmente se pode pensar que as ações decorrentes de uma guerra possam trazer algo de humanidade no seu seio. No entanto, o que é passível de apreciar por trás de todos estes conceitos é que a grande maioria das intervenções tem sido motivada por razões de orgulho e de poder e que sua justificação, mesmo aduzindo pretextos humanitários, representa um tipo de messianismo interessado que provoca mais danos do que benefícios para os povos que se pretende proteger. Efetivamente, o resultado desses empreendimentos somente conduziu a um aumento dos desastres da guerra, com sua enorme sequela de vitimas inocentes.

A outra forma que a democracia possui para converter-se em sua própria inimiga diz respeito à perda do equilíbrio que deveria existir entre o poder emanado do povo e a liberdade dos indivíduos. Portanto, o vínculo que se estabelece entre a soberania do povo e a autonomia da pessoa — adverte Todorov — precisa ter uma limitação mútua: “o individuo não deve impor sua vontade à comunidade, e esta não deve interferir nos assuntos privados de seus cidadãos” (p. 16).

O dilema entre populismo e ultraliberalismo nos remete, então, a pensar nos limites que é necessário estabelecer para que ambas as dimensões se mantenham equilibradas, ainda que, parafraseando Elias, isto se dê através de um “equilíbrio móvel de tensões”. Sempre existe o perigo de que a consagração do popular possa se tornar a encarnação do bem coletivo e, consequentemente, alimentar a ideia de que certos valores, como a pátria, a raça ou a comunidade, devem ser compartilhados pela totalidade dos seres humanos. Na verdade, se o equilíbrio é instável, isto implica que se pode transitar facilmente para expressões de autoritarismo, xenofobia, racismo e intolerância à diversidade, quando o diferente é rejeitado por constituir ameaça à essência de determinado povo.

Geralmente este populismo se apresenta sob a forma de demagogia, prometendo dar soluções fáceis a problemas complexos, sem existir nenhuma certeza de que as poderá cumprir. O populismo representa uma política de curto prazo que se limita a propor saídas tangíveis a uma audiência massiva ávida de respostas — geralmente através de contato direto em espaços públicos — e cujos medos são exacerbados. Na experiência recente, o populismo europeu tem atacado o multiculturalismo, argumentando que este encarna uma ameaça para a identidade nacional [2].

Desta maneira, o populismo hipertrofiado impede reconhecer a humanidade dos outros e dissemina a intolerância contra aquilo que é diferente. Por isso, a democracia corre grave risco quando é substituída pelo populismo, “que ignora a diversidade interior da sociedade e a exigência de visar, para além das satisfações imediatas, às necessidades do país em longo prazo” (p. 195).

Contrariamente, no conflito com o populismo e suas formas autoritárias, a hipervalorização dos indivíduos pode acarretar o desprezo por tudo aquilo que visa ao coletivo. Sendo assim, a liberdade e a vontade do indivíduo se superpõem a qualquer intento de construir o bem-estar geral, de modo que, finalmente, as pessoas são movidas por um repertório de preferências individuais, especialmente econômicas, veem-se isoladas umas das outras e rejeitam a tessitura social. Sabemos por toda a tradição sociológica que a sociedade não se resume à mera soma dos indivíduos que fazem parte dela: diferentemente disso, ela é um produto das interações precedentes e constantes que se estabelecem entre seus membros.

Sendo a liberdade individual um aspecto fundamental da democracia, esta pode também constituir uma ameaça quando se cinde do todo social, quando consagra a vontade dos indivíduos sobre o resto da coletividade, quando adquire um poder ilimitado acima da vontade geral. No intento de libertar as pessoas das ataduras e da subordinação do Estado, o ultraliberalismo deixa os indivíduos à mercê do mercado e das empresas. Opondo-se a toda medida de regulação por parte dos poderes públicos, o ultraliberalismo deixa a humanidade órfã de proteção, entregue ao livre jogo da oferta e da procura, dos mercadores, dos financistas e dos poderosos.

Estamos finalmente ante a presença de uma tríade (messianismo, populismo, ultraliberalismo) que vai corroendo os fundamentos da própria promessa democrática, de sorte que os princípios essenciais do discurso democrático se transformam em ameaças concretas: “a liberdade torna-se tirania, o povo se transforma em massa manipulável, o desejo de promover o progresso se converte em espírito de cruzada. A economia, o Estado e o direito deixam de ser meios destinados ao florescimento de todos e participam agora de um processo de desumanização” (p. 197).

Que podemos fazer para superar este cenário aparentemente irreversível? Acredito que Todorov concorde com o teor do discurso de Josy Altidore citado no começo. Quiçá uma resposta semelhante possa ser procurada nas palavras finais do autor, quando assinala que um remédio para nossos males contemporâneos deveria consistir na evolução das mentalidades que permita “recuperar o entusiasmo do projeto democrático” e tentar construir um melhor equilibro entre seus princípios fundamentais, progresso, povo e liberdade.

Nelson Mandela costumava dizer que, assim como a escravidão e o apartheid, a pobreza não é um acidente. É uma criação do homem e pode ser eliminada com ações dos seres humanos. Talvez as aspirações e esperanças de Todorov passem longe dos desafios que temos pela frente, mas seu diagnóstico das sociedades modernas e seu apelo incontestável à força da vontade humana são um primeiro intento válido de avançar no esforço coletivo para fazer do mundo um espaço de convivência mais plural, afetuoso e fraterno.

NOTAS

[1] Allan Caldas, “Racismo interrompe jogo na Copa da Holanda”, O Globo, 29/01/2013.
[2] As referências teológicas se devem precisamente ao caráter missionário da empresa, que, como todo ato religioso, se carrega de profundo voluntarismo e espírito de fé derivado da Graça Divina, aspectos que o autor recupera no debate entre Pelágio e Santo Agostinho a respeito da dualidade entre a vontade humana e a predestinação divina.
[3] A consequência mais dramática desta ideologia são os assassinatos em série cometidos na Noruega, em que um nacionalista fanático matou 84 pessoas em nome de uma suposta proteção ou resguardo da identidade cultural tradicional.

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