domingo, 8 de novembro de 2009

Capitalismo e modernidade no Brasil


William Vella Nozaki
Carta Maior

Na melhor tradição do pensamento social brasileiro, o livro "Capitalismo tardio e sociabilidade moderna", de João Manuel Cardoso e Fernando Novais, destaca como ao mesmo tempo em que criávamos condições para o nascimento e o desenvolvimento do capitalismo, impúnhamos obstáculos para o florescimento e a consolidação da modernidade no país. Esse pequeno ensaio sobre a modernidade brasileira reúne o método crítico de um historiador reconhecido por sua habilidade em clarificar a nossa herança mercantil e a perspectiva analítica de um economista conhecido por sua destreza em esclarecer o nosso fado industrial.

O Brasil ontem e hoje

O que se tornou o capitalismo brasileiro? Essa questão elementar não cessa de ser formulada. Muitos a perguntam na discrição das reflexões solitárias ou na distração das conversas informais; alguns a respondem de forma excessivamente retórica ou de maneira demasiadamente abstrata. Tratada de maneira indireta e oblíqua essa indagação soa mais como demonstração de estilo do que como manifestação de perplexidade. Talvez isso ocorra porque de tão natural, direta e ingênua, tal questão só possa mesmo ser feita por um pensamento maduro, cansado de tergiversar e pronto para a hora de falar concretamente. É precisamente esse o exercício proposto em Capitalismo tardio e sociabilidade moderna.

O texto foi escrito no bojo dos ataques contra o neoliberalismo e veio a lume pela primeira vez como parte da coleção História da Vida Privada no Brasil, em 1998. Trata-se de obra com espírito crítico e com ímpeto de balanço, que, publicada agora como livro, não deixa de revelar sua atualidade. Esse pequeno ensaio sobre a modernidade brasileira reúne o método crítico de um historiador reconhecido por sua habilidade em clarificar a nossa herança mercantil e a perspectiva analítica de um economista conhecido por sua destreza em esclarecer o nosso fado industrial. Ao atarem essas duas pontas, Fernando Novais e João Manuel Cardoso de Mello, produzem um curto-circuito revelando como a industrialização brasileira criou e foi tragada por uma sociedade mercantil nos trópicos.

A interpretação dos dois autores aborda meia dúzia de décadas fundamentais para a compreensão do Brasil. Parte-se do otimismo da década de 1930, período em que o progresso industrial colore a nação, e caminha-se em direção à desilusão da década de 1990, momento em que o regresso monetário descaracteriza qualquer nacionalismo. O livro se divide em sete pequenos capítulos, neles se analisam: (1) a indústria e o consumo; (2) o campo e a cidade; (3) a estrutura de classes e a mobilidade social; (4) os valores capitalistas e os princípios modernos; (5) a concentração de riqueza e a distribuição de renda; (6) o autoritarismo político-econômico e a massificação sócio-cultural; (7) a globalização e o neoliberalismo no Brasil.

Capitalismo

Nos três primeiros capítulos do livro abordam-se as principais transformações responsáveis pela modernização do país, trata-se de enfatizar a aura de otimismo que tomou conta do país apesar da manutenção de algumas distorções. Retomando interpretações consagradas, os autores relembram como nas décadas entre 1930 e 1950 acelera-se o processo brasileiro de industrialização, modernizam-se os setores industriais mais tradicionais (alimentos, têxteis, calçados, móveis) e formam-se os setores industriais mais complexos (aço, petróleo, alumínio, químicos e farmacêuticos). Além disso, ensaiando interpretações inéditas, enfatiza-se como nesse período emergem mudanças significativas no processo de comercialização dos produtos, com o surgimento dos supermercados, shopping centers, cadeias de lojas de eletrodomésticos, revendedora de automóveis e lojas de departamento.

O objetivo é demonstrar como as relações entre a alteração na oferta de produtos e na circulação de mercadorias implicaram novos hábitos de vestuário, de alimentação, de higiene pessoal, de limpeza da casa etc. ensejando um novo padrão de consumo.Para tanto, os exemplos mobilizados são muitos e diversos, trata-se de ilustrar a relação entre as mudanças na estrutura produtiva e as transformações na dinâmica do consumo. Como, por vezes, a profusão de casos listados pode ofuscar a interpretação sugerida pelos autores, aos deslumbrados com os exemplos recomenda-se cautela, aos ansiosos pela análise pede-se paciência. A leitura ponderada será recompensada ao final.

Durante esse período, notam ainda os autores, a industrialização acelerada não poderia deixar de significar também uma urbanização desenfreada. Assim é que a estrutura rígida do campo cede lugar à estrutura competitiva da cidade; a extrema pobreza e a miséria são sobrepujadas pela esperança e pelo desejo da migração; a família conjugal, dos compadres e vizinhos, é substituída pela família unicelular, de pais e filhos; e a educação pelo trabalho é trocada pela educação escolar.

Nesse processo o imigrante estrangeiro pôde usufruir de sua pequena vitória na luta por melhores posições sociais, dada sua melhor posição financeira de saída, muitos passaram de mascates a empresários, de trabalhadores especializados converteram-se em profissionais liberais. A mesma sorte não se deu com os migrantes rurais, ainda que sua situação tenha melhorado, a pobreza do campo foi substituída por não mais do que algumas tarefas de pouca qualificação e de baixa remuneração. Os negros urbanos, em sua grande maioria, permaneceram confinados ao trabalho subalterno, rotineiro e mecânico.

Tais mudanças e permanências, denunciam os autores, revelam como o capitalismo cria a ilusão de que as oportunidades econômicas são iguais para todos, quando na realidade a mercantilização da sociedade é que se apresenta como o único denominador comum.

No topo dessa sociedade abriga-se um pequeno conjunto de capitalistas, banqueiros e industriais, menos interessados em liderar o desenvolvimento econômico do país e mais interessados em tirar proveito da ação do Estado e da atuação da grande empresa multinacional. Na faixa intermediária, acotovelam-se uma classe média alta de profissionais em busca da qualificação fundada no ensino superior e uma classe média baixa de operários à procura de especialização. Na base dessa pirâmide subsistem incontáveis famílias de trabalhadores comuns, de migrantes recém-chegados e de citadinos empobrecidos.

O que os separa é uma hierarquia rígida de trabalhos e remunerações, o que os une são certas necessidades e desejos de consumo. Sendo assim, ressaltam os autores, é importante notar como entre nós os processos de diferenciação do trabalho e de generalização do consumo se deram no mesmo compasso. Desse modo, entre nós a corrida pela ascensão social apresentou-se menos como um fruto do progresso industrial e tecnológico e mais como uma corrida de miseráveis, pobres, remediados e ricos pela atualização dos padrões de consumo.

Modernidade

Desse descompasso entre a produção industrial e a circulação mercantil é que emerge nossa modernidade interrompida. Esse tema encontra-se muito bem desenvolvido no quarto capítulo, que é uma espécie de ponto de viragem no livro, fazendo a passagem entre a formação da nossa economia capitalista e a deformação da nossa sociedade de mercado. Nos três últimos capítulos do livro, dessa vez, abordam-se as principais patologias e distorções responsáveis por interditar a modernização do país, trata-se de encarar o fantasma da desilusão que se generalizou pelo Brasil.

Isso porque entre as décadas de 1960 e 1980, os valores capitalistas foram reinventados entre nós sem grandes contestações. O privatismo patriarcalista da casa-grande se prolongou no familismo empresarial; a desvalorização do trabalho, herança da escravidão, se redefiniu na cisão entre funções intelectuais e tarefas manuais; a reverência pela hierarquia das ordens tradicionais se transfigurou na suposta concorrência que seleciona superiores e inferiores; e a idéia de país tomado como negócio, mas não como nação, ganhou fôlego redobrado. Isso tudo porque a aspiração à ascensão individual no Brasil não se lastreou no progresso técnico, mas na corrida pelo consumo.

Em contrapartida, os valores modernos foram obstruídos por grandes barreiras. A secularização, o racionalismo e a ilustração, capazes de inculcar as idéias de autonomia, igualdade e liberdade, trazem consigo conteúdos éticos e humanistas que não ecoam diante dos limites impostos pela lógica utilitarista e mercantil vigente no Brasil. Ou seja, sem os valores modernos capazes de refrear os valores capitalistas, imperou entre nós a exploração econômica e a dominação política que perpetuam as desigualdades sociais fundadas num capitalismo sem iluminismo. Em última instância, pode-se dizer que o industrialismo foi sobrepujado pelo consumismo como lógica de organização social.

Tal alteração ocorre, precisamente, por ocasião do Golpe de 1964, a política econômica capaz de combinar crescimento econômico e concentração de renda abria espaço para a acumulação de lucros e riqueza ao mesmo tempo em que patrocinava a diferenciação entre os salários e, por extensão, entre as capacidades de consumo.

O que se originava era uma sociedade deformada, fraturada em três dimensões: um mundo desfrutado por ricos e privilegiados, caracterizado pelo consumo de luxo, regado à ostentações e suntuosidades; um mundo permeado pelas várias classes médias e remediados, marcado por um tipo de consumo que é o simulacro e a imitação do primeiro; e, por fim, um mundo povoado por pobres e miseráveis, nesse ambiente os salários baixos permitem a reprodução daqueles padrões de consumo, mas impedem a difusão da capacidade de consumir.

Mas as agruras impostas ao país pela ditadura militar não se restringiram ao plano político e econômico, notam os autores, elas também se esprairam pela esfera social e cultural. Isso porque ao cerceamento do espaço público seguiu-se, imediatamente, o estabelecimento de uma opinião privada. Disfarçando-se em meio a entretenimentos ou revestindo-se de objetividades, as empresas televisivas e jornalísticas formavam uma pequena confraria que, com a anuência do governo militar, patrocinavam a instauração de uma indústria cultural americanizada no país.

A prioridade da TV e do entretenimento sobre a informação e a educação, e a preeminência de empresas privadas sobre a opinião pública, apontam os autores, promoveu, novamente, o triunfo de normas mercadológicas sobre princípios modernizantes. Desse modo, a sociedade brasileira passava diretamente da deseducação para a massificação, criavam-se consumidores sem que se houvesse formado cidadãos. Esse será o país lançado, nos anos 1990, sobre os estertores da globalização e do neoliberalismo.

Na melhor tradição do pensamento social brasileiro, o livro destaca como ao mesmo tempo em que criávamos condições para o nascimento e o desenvolvimento do capitalismo, impúnhamos obstáculos para o florescimento e a consolidação da modernidade no país. Tudo analisado à partir das justaposições entre a produção econômica e a reprodução social, entre a lógica da industrialização e os nexos do consumismo.

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