quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Democracia e socialismo

Carlos Nelson Coutinho
O Globo

Ali Kamel publicou um interessante artigo, no qual comenta o livro "Memórias de um intelectual comunista", de meu querido amigo Leandro Konder. Ao evocar a trajetória intelectual e política de Leandro, Kamel se refere também à minha trajetória, detendo-se em particular num velho ensaio que publiquei há trinta anos, "A democracia como valor universal".

Kamel resume corretamente o contexto político-ideológico em que aquele ensaio veio à luz. Embora dirigido também a um público "externo", ele foi parte da luta travada então no seio do PCB, depois que a anistia permitiu o regresso de seus principais dirigentes e de alguns de seus intelectuais. Kamel recorda que nosso grupo, depreciativamente chamado de "eurocomunista" por nossos adversários, defendia uma tradição que provinha de Gramsci e, em particular, do saudoso Partido Comunista Italiano - tradição fortemente diversa daquela que inspirava o chamado "socialismo real" de matriz soviética.

Mas me surpreendeu a afirmação de Kamel de que meu velho ensaio "foi fundamental para que eu me afastasse da esquerda". Recordo apenas a passagem em que busco resumir os dois objetivos do ensaio: "Indicar como o vínculo entre socialismo e democracia é parte integrante do patrimônio categorial do marxismo; e como a renovação democrática do conjunto da vida nacional [é] elemento indispensável para a construção dos pressupostos do socialismo." Democracia, sim, mas no quadro da reivindicação do marxismo e da afirmação de que a democracia é parte integrante da luta pelo socialismo. Portanto, não foi a leitura do meu ensaio que levou Kamel a abandonar a esquerda e a adotar as posições conservadoras que hoje defende.

Kamel também não informa adequadamente o leitor sobre minha decisão de não republicar A democracia como valor universal em sua velha forma: ao contrário do que ele insinua, esta decisão não resulta de minha suposta passagem da "direita" para a "esquerda". Em meu livro "Contra a corrente", reeditado em 2008 e citado por Kamel, deixo claras as razões desta decisão: "Conservo minha convicção de que, no essencial, eu estava no caminho certo. Porém, relendo hoje o velho ensaio, percebo que ele era ainda tímido diante da revisão radical de alguns paradigmas analíticos que provêm dos bolcheviques e, sobretudo, da Terceira Internacional. Além disso, ele apresenta as marcas do contexto concreto em que foi escrito: estão "datados" não só muitos elementos da análise de conjuntura nele presente, mas também alguns dos alvos polêmicos contra os quais era dirigido. Foi por isso que decidi não republicá-lo em sua forma original." De resto, neste livro, num tópico intitulado precisamente "A democracia como valor universal", reproduzo quase literalmente a parte teórica do velho ensaio.

Kamel manifesta perplexidade diante do fato de que "a maior parte daquele grupo [de "eurocomunistas"] da "direita" do Partidão foi se deslocando para o extremo oposto: entraram no PSB, no PT e, hoje, estão no ortodoxo PSOL". Estou convencido de que permaneço, na topografia das opções políticas, no mesmo lugar onde estava na época em que escrevi "A democracia": o fato é que muitos dos que se supunham à minha esquerda (seja no velho PCB, seja no PT) foram paulatinamente se deslocando para o centro e até mesmo para a direita. Emblemático me parecem os casos do PPS e de muitas correntes hoje majoritárias do PT.

E não foi porque me "desloquei à esquerda" que decidi ingressar no PT. Quando tomei essa decisão, em 1989, o PT iniciava a saída do gueto político que marcara suas origens e começava a adotar uma estratégia de luta pelo socialismo baseada na conquista da hegemonia e no aprofundamento da democracia. Não hesito em dizer que, durante um certo tempo, a estratégia desenvolvida pelo PT foi a que mais se aproximava no Brasil das velhas propostas do eurocomunismo e do PCI.

Também não foi por um irresponsável "deslocamento à esquerda" que decidi participar da fundação do PSOL. Quando o PT, já antes de se tornar governo, abandonou a luta pelo socialismo, a política brasileira tornou-se "pequena política", ou seja, a mera disputa pelo poder entre dois blocos (agrupados respectivamente em torno do PT e do PSDB) que não diferem substantivamente em suas propostas programáticas e em suas práticas políticas. Diante disso, avaliamos - eu, Leandro Konder e Milton Temer, mas também intelectuais do porte de Chico de Oliveira, Paulo Arantes e Ricardo Antunes - que era preciso lutar pela manutenção na agenda política de uma alternativa de esquerda à mesmice imperante. Como continuo a crer na importância do partido político, aderi ao PSOL.

Esta adesão baseia-se numa aposta. Sei que nosso tempo não é favorável à esquerda. Ao contrário do PT, que nasceu num momento de ascensão dos movimentos sociais, o PSOL surge numa conjuntura de refluxo destes movimentos, muitos dos quais foram cooptados pelo governo Lula. Nada garante que o PSOL cumpra a função para a qual foi criado nem que venha a se tornar o herdeiro da política socialista e democrática que outrora foi encarnada pelo chamado "eurocomunismo". Isso vai depender não só do empenho de seus militantes, mas sobretudo das condições concretas em que irá se desenvolver a luta política em nosso país e no mundo.

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