segunda-feira, 18 de junho de 2018

Símbolos e imaginários na vida coletiva

Cândido Grzybowski
Ibase

Há muito tempo venho pensando no poder dos símbolos e nos imaginários que eles evocam. Evidentemente, não se trata de uma qualidade do objeto em si, de sua forma, tamanho ou cor. Trata-se de uma qualidade social, de uma função simbólica atribuída ao objeto carregador do símbolo, uma construção sociocultural e política aceita ou implícita, tornada e vivida como uma espécie de convenção social. Claro, existem símbolos muito diversos, desde aqueles identitários, de pequenos grupos lutando pelo reconhecimento de sua existência e direito a uma identidade social, passando por movimentos e organizações sociais, partidos, religiões, povos e países, até símbolos com mensagens mais de caráter planetário como a cor branca e a pomba da paz, o vermelho e o X de proibido, o raio alaranjado como indicação de alto risco e muitos outros. Há uma permanente invenção de símbolos, uns emplacam, outros não. Num certo sentido, nos movemos cotidianamente guiados por eles. Todos são constructos socioculturais elaborados no dia a dia e ao longo da história, que viram força real quando reconhecidos e entendidos nas mensagens que carregam para os humanos a que se destinam. A força dos símbolos, em nossa sociedade capitalista, totalmente mercantilizada e de consumo de massa, está sendo privatizada e fortemente utilizada como marca e como marketing, como forma de vender algo, seja um produto, seja uma ideia ou apenas um símbolo de “status”.

O fato é que símbolos estão entranhados na gente de algum modo e sempre evocam algo. Eles sintetizam e condensam em si aquilo que foi construído, imposto ou aceito amplamente em alguma coletividade humana, maior ou menor, como sendo o que diz que é. Sua função é exatamente nos fazer dispensar de pensar e vivê-los como uma espécie de regra e ser parte de uma coletividade, como um senso comum. Entendemos os símbolos, aquela bandeira, imagem, logo, marca ou cor, e a mensagem que carregam. Podemos conviver com eles como “assim é porque é” ou ser indiferentes e até ser contra, mas sabemos o que significam e, sobretudo, as motivações que provocam em nós ao entrar em contato com eles de alguma forma.

Sei que nesta crônica estou entrando em uma seara que não é exatamente a minha prática cotidiana de intelectual e de ativista cidadão em prol de sociedades justas e radicalmente democráticas. Reconheço, porém, e afirmo que ela é mais importante do que parece num primeiro momento. Por isto, senti que não tenho outro caminho a trilhar neste clima de Copa do Mundo do Futebol. O futebol, em particular, mexe com a nossa identidade de povo brasileiro naquilo que temos de melhor, nossa fabulosa, vibrante e criativa diversidade nos esportes coletivos. Talvez, além da cultura e da língua, seja no futebol e na seleção da Copa quando melhor expressamos, dependemos, vivemos e torcemos pela genialidade da diversidade do que nos faz ser uma enorme coletividade, ocupando enorme território do Planeta Terra. Apesar de todas as contradições históricas em que fomos gerados e daquelas que vivemos dramaticamente no cotidiano, com muitas desigualdades e injustiças, exclusões sociais, racismo, machismo, violência e ódio até hoje, temos algo que nos une. Nada da esfera política, mas muito na esfera da sociedade civil onde se gestam e crescem os imaginários e os projetos de sociedade, de um povo entre muitos e diversos povos, todos importantes e tendo o direito a compartir o mesmo Planeta: a Copa do Mundo é, ao seu modo, parte da universidade para aprender a conviver planetariamente… pela disputa de iguais em um campeonato mundial de futebol.

As conjunturas em que acontecem as Copas do Mundo variam. E isto cria o “ambiente”, o momento histórico. As disputas geopolíticas mundiais de hoje não influenciam tão diretamente os jogos, pois os mastodontes governamentais têm um papel secundário no que os jovens e entusiastas jogadores fazem em campo. Mas, claro, influenciam de algum modo na escolha do país onde os jogos se realizam e, sobretudo, na apropriação política que fazem os governos anfitriões dos dividendos em termos de abertura, tolerância e imagem para o mundo.

Estou particularmente tentando entender como a Copa do Mundo e a nossa seleção de futebol estão sendo sentidas e vividas neste momento aqui no Brasil. Como sempre, podemos ganhar ou perder, pois isto só sabermos no decorrer dos jogos e como eles serão disputados. Falo das emoções e imagens que a Seleção evoca na gente como povo em geral, vitoriosa ou não. Não tenho dados, mas estimo em 70 a 80% a parcela da população ligada nos jogos, especialmente os do Brasil. Aí é que entram os símbolos e o título deste minha crônica. Ouso dizer que, de uma forma massiva, visível nas ruas, desta vez estamos ignorando nossos símbolos, como a cor verde amarela, a bandeira, a camiseta canarinho, para expressar nosso sentimento de adesão coletiva à emblemática seleção de futebol. Não acho que deixamos de torcer emocionalmente como sabemos expressar o quanto a Seleção é nossa. Deixamos de usar os símbolos. Podemos voltar a usá-los – até acho que isto vai acontecer – com o Brasil crescendo na Copa. Mas o fato é que a vibração com a seleção não está nas ruas, no modo de vestir das pessoas, na algazarra normal em épocas de Copa do Mundo, apesar de toda a publicidade na grande mídia e na inundação de produtos verdes e amarelos nas barracas de vendedores ambulantes. O que se passa?

Minha hipótese de analista político é que tivemos os símbolos apropriados e adulterados, não para expressar o que mal ou bem eram até recentemente, nossos símbolos de unidade nacional possível. Na radicalização política que estamos passando desde 2015, e que levaram ao golpe do impeachment, a bandeira brasileira, o verde e o amarelo e a camiseta da seleção se tornaram símbolos de uma parte de brasileiros apenas. Com isto, perderam a força de serem símbolos do coletivo nacional, com já foram em movimentos de cidadania como o “Diretas Já”. Isto poderia ser passageiro, forma de expressão de quem era, poderia ser ou aderiu a um projeto de nação identificado pelos golpistas, que perderam na eleição cidadã de 2014. O Governo Temer até adotou o lema “ordem e progresso” da bandeira nacional, que em pouco tempo se revelou desordem e retrocesso, desconstrução de direitos e até ameaças à frágil democracia conquistada 30 anos atrás. Como num “ambiente” nacional assim você pode usar a bandeira, as cores verde e amarelo e a camisa da seleção para torcer por aqui por algo que ainda nos une, dado o clima de ódio e intolerância presente no ar? Posso estar errado, mas acho que desta vez, mais do que no tempo da ditadura, nossos símbolos foram maculados, usurpados até. Afinal, ganhamos a Copa do Mundo de Futebol de 1970 e o regime não conseguiu emplacar como sua vitória, pois mesmo aqueles e aquelas a que ele se opunham vibraram e muito, até nas prisões de tortura e morte.

Como brasileiro de mais de 70 anos, de um modo o outro, vivi e vibrei as vitórias de 58, 62, 70, 94 e 2002. Sofri e muito com as derrotas, como a mais recente, de 2014, mas nunca culpei jogadores. Até no esporte temos estruturas autoritárias a atrapalhar e, às vezes, vencem a genialidade criativa dos jogadores. Sempre gostei do futebol e sempre achei que aí reside uma das fortalezas enraizadas no modo de ser brasileiro, que podem servir de cimento da nossa unidade na diversidade. Afinal, é de cultura que se trata, algo do mais nobre que inventamos como humanos. Sem dúvida, não é suficiente e também está permeada de racismos e exclusões. Mas por aí avançamos muito mais nesta nossa dramática história de epopeia grega, num mundo que teima em se globalizar cada vez mais. E, acredito, temos muito a dar para o mundo para uma civilização cidadã verdadeiramente planetária.

Bem, precisamos de símbolos e que anunciem mensagem não só de pertencimento, mas também de projetos de futuro. Uma urgente tarefa é resgatar nossos símbolos da captura feita na conjuntura política. A tarefa pode ser vista como fácil, dada a total perda de legitimidade e da total desaprovação do atual governo, o do “Brasil voltou 20 anos em dois”. Mas pode ser mais penosa do que parece. A tarefa é resgatar transformando. Afinal, precisamos de símbolos para um Brasil de soberania popular, não submisso às grandes corporações e aos donos do mundo de hoje. Como? Não sei! Nem tenho dicas por onde começamos. O certo é que ajuda muito se a seleção de futebol ganhar.

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