Revista Pittacos
Nelson foi como a professora da escola primária decidiu chamá-lo, aos sete anos de idade. Crianças negras que tinham o privilégio de ir à escola recebiam nomes de brancos, mais civilizados. Antes do novo batismo, chamava-se Rolihlahla. Numa tradução aproximada: “criador de problemas” [trouble maker].
Este é o relato que inicia Long Way to Freedom, a autobiografia de Mandela. Ali o leitor é conduzido da sua infância no campo, num povoado em Transkei, à eleição presidencial de 1994, a primeira que levou os negros às urnas e um negro ao poder na África do Sul. Não é surpresa que o fio condutor desta vida farta de eventos seja a política, mas ela vem delicadamente embalada na memória dos amores, da família, da solidão no cárcere, dos medos e das fraquezas. Mandela não hesita em revelar a outra face da força que o consagrou como líder mundial. O protagonismo do relato biográfico não se confunde com narrativa heroica de si. Diluídas na vontade comum do povo que resiste à opressão, suas ações são narradas como peças de um contexto de luta política e social.
Em nota dirigida ao leitor, Mandela esclarece: a história em questão “não é apenas a minha história”, mas a “história de todos nós e da nossa luta para ser livre”. Seu texto é um exercício intelectual do fazer histórico imaginado por Antônio Cândido no memorável prefácio a Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque: “A certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço no passado sem cair na autocomplacência, pois o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos, de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a princípio diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas características gerais da sua época. Então, registrar o passado não é falar de si; é falar dos que participaram de uma certa ordem de interesses e de visão do mundo, no momento particular do tempo que se deseja evocar”.
A narrativa de Mandela sobre si tem uma coisa qualquer de Michael K, o personagem de A Vida e o Tempo de Michael K de J.M. Coetzee que persiste na existência, a despeito das experiências reiteradas de subjugação. K é um jardineiro simplório em torno dos trinta anos de idade que decide deixar o emprego em Cape Town para levar a mãe, muito doente, de volta para sua cidade natal, Prince Albert. O pano de fundo é uma África do Sul convulsionada por uma guerra civil imaginária, na altura dos anos 80. O percurso é tortuoso e o retorno a Prince Albert ressignificado: depositar as cinzas da mãe, que sucumbiu à doença durante a viagem. Sem documentos de viagem, K se esquiva da polícia, vive em fazendas abandonadas, cavernas e, quando capturado, em campos de trabalho forçado. Arredio a toda dominação, foge, se esconde, come raízes, insetos e, excepcionalmente, um cabrito que mata afogado no açude. Animaliza-se para não renunciar à humanidade. Há nele, K, uma teimosia essencial cujo objeto é o desejo de liberdade. Mesmo quando submetido, persevera: a condição de dominado não esmorece seu sentido de dignidade pessoal.
Na biografia de Mandela, que pode inspirar tantos ângulos de observação, a obstinação por uma vida digna, sua e do seu povo, é justamente a pulsão que dá sentido ao todo. Quando cumpria pena de cinco anos por viagem ilegal ao exterior e organização de stayaway, em maio de 1961, Mandela foi transferido da Pretoria Prison para Robben Island. Na travessia para a ilha, acorrentado com outros presos políticos no porão da embarcação, recebia a luz do dia por pequenas janelas, de onde também chovia urina dos guardas de plantão. Encharcados e expostos ao frio do inverno sul-africano, em shorts e camiseta, chegaram à nova prisão. Na entrada, guardas brancos davam ordens para que corressem. Não havia razão aparente para isso, além do gozo de exercer autoridade sobre quem não está em condições de resistir a ela. Confrontado por seus novos algozes, Mandela sussurrou para Tefu, colega de infortúnio: “precisamos estabelecer um exemplo. Se desistirmos agora, estaremos sempre submetidos aos seus caprichos”. Tefu concordou e os dois seguiram o percurso a passos lentos. Provocaram a fúria dos guardas. Um deles bradou: “nós vamos matar vocês e ninguém nunca saberá o que aconteceu”. Ainda assim, resistiram e mantiveram o ritmo da caminhada. Foram conduzidos a um quarto preenchido com alguns centímetros de água e obrigados a despir-se.
Antes que fosse atingido por um soco de Gericke, o capitão a cargo da situação, Mandela disse da maneira mais firme que pôde: “se você encostar a mão em mim, eu vou te levar para a maior corte na terra e vou acabar com você. Você vai ser tão pobre quanto um rato de igreja.” Surpreso, o capitão indagou: “você sabe o que significa servir cinco anos?” Mandela retrucou: “estou pronto para servir cinco anos, mas não para ser intimidado. Você deve agir dentro da lei”. Gericke deixou o quarto alagado sem consumar a agressão.
Tal como K, Mandela afirma sua condição de sujeito, mesmo sob domínio. À diferença de K, não se isola na sua individualidade. Seu sentido de dignidade, rígido e alheio às circunstâncias, extrapola o indivíduo e abrange a espécie humana. Como se sabe, foram os negros, violentamente segregados pelo regime do apartheid, a inspiração da luta de Mandela antes e durante os anos de cárcere. Extintas as condições formais de reprodução do infortúnio negro (e também indiano e mulato), as fronteiras da sua práxis política dilataram-se para incluir os sul-africanos em geral, independente das suas origens. Vinte e seis anos de prisão e maus tratos não deixaram lastro de ressentimento no seu fazer político. Sua história pessoal de sacrifício não inibiu nele o sentimento da empatia, que é o fundamento moral dos direitos humanos na época moderna. Muito pelo contrário: Mandela não experimentou a empatia apenas como afeto individual, mas buscou formas de tradução política e institucional para ela – com acertos e equívocos, é certo.
A Comissão de Verdade e Reconciliação sul-africana foi a expressão síntese deste experimento da empatia como prática política. Na época da transição política no país, Mandela compreendeu que a natureza rígida e impessoal do aparelho burocrático de Estado seria impotente para lidar com o tipo de demanda social dirigida a ele. O desafio assumido por seu governo foi o de contornar os marcos da política formalista e instituir uma dimensão pública de diálogo e reconhecimento. Chamadas a sessões públicas em todo país, transmitidas em rede nacional de rádio e televisão, as vítimas do regime narravam suas histórias e contribuíam para o esclarecimento público sobre os métodos e o cotidiano de opressão no regime segregacionista.
O objetivo fundamental da comissão era expor todos os sul-africanos ao desafio de colocar-se no lugar do outro, sofrer o sofrimento alheio, gozar o gozo alheio e, enfim, reconhecer o outro como igual. Esta seria a condição de um novo tempo da política no país. Há inúmeras razões que fazem de Mandela um dos personagens mais notáveis do século XX. Uma delas foi a teimosa com que afirmou a dignidade de si e do seu povo.
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