sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Os fenômenos mórbidos da crise

Luiz Sérgio Henriques
Gramsci e o Brasil

A metáfora é muito boa, teve origem num clássico da política do século XX e, definitivamente, tornou-se um bordão repetido por gente de todos os quadrantes: vivemos num tempo de crise sistêmica da economia mundial, em que o velho insiste em não morrer e o novo ainda não nasceu, de modo que o cenário por vezes é ocupado por fenômenos mais ou menos mórbidos.

De fato, deparamos com uma inédita mistura de sofisticação e barbárie para onde quer que olhemos: democracia e capitalismo convivem com dificuldade nos países do Ocidente desenvolvido, com um preocupante esvaziamento das formas políticas que vigoraram durante o compromisso social-democrata. Além disso, inexiste alternativa de sistema, e restos dramáticos daquilo que um dia, mais ou menos plausivelmente, se arvorou em tal alternativa desabam inapelavelmente.

Refiro-me, em primeiro lugar, à dantesca sequência de cenas orwellianas que dominaram o processo sucessório na Coreia do Norte e continuarão disponíveis por tempo indefinido na rede de computadores, para espanto renovado de quem se puser a revê-las. Fácil demais desqualificar aquele país como desimportante no mundo, não combinasse ele, de modo paradoxal, um universo concentracionário à moda dos gulags, uma população rural faminta e a posse de artefatos nucleares a serviço de um nacionalismo agressivo. A morte de Kim Jong-il representa uma peça de arqueologia ideológica, a repetir, e não como comédia, o abatimento moral dos comunistas dogmáticos por ocasião da morte de Stalin, no distante 1953.

Assim, o que veio depois e aconteceu nos nossos dias ilumina o que veio antes e aconteceu há muitas décadas. A anatomia do homem, dizem, é a chave para entender a do macaco, e realidades históricas que marcaram toda uma geração de comunistas, como o culto à personalidade, subitamente ganharam carne e osso nas ruas desoladas de Piongyang. Esta arqueologia contribui para explicar, ainda, a subalternidade cultural do comunismo histórico e sua incapacidade estrutural de gerar modos diversos de exercer o poder e organizar a vida social.

As imagens foram fortíssimas e, num certo sentido, devastadoras, mas talvez não as evocasse, mais de um mês depois, se uma tradicional força da esquerda brasileira não tivesse considerado todo o episódio segundo a chave do anti-imperialismo e não se reportasse ao grupo dirigente coreano na qualidade de “partido irmão”, para usar uma expressão de outro tempo. Haveria nisso o risco de tornar o Brasil uma imensa Coreia do Norte? Nenhum risco, evidentemente. Mais preocupante é o sinal de atraso político e cultural — um imenso atraso que interfere nas possibilidades de compreender e mudar democraticamente o nosso país.

Muito mais próxima de nós, geográfica e sentimentalmente, é a outra figura do velho “socialismo real” que se desfaz a olhos vistos. Em Cuba, a poesia da revolução e seus heróis há muito se dissolveu na prosa de um burocratizado regime de partido único, com a inevitável gerontocracia daí decorrente, sua rigidez e seus espasmos autoritários.

É saudável, quando se procede a este tipo de crítica, repudiar previamente o embargo imposto pelos Estados Unidos há décadas, ineficiente do próprio ponto de vista dos seus objetivos declarados: Fidel e Raúl Castro dominam autocraticamente a ilha a despeito deste embargo e, antes, usam-no como instrumento de controle: quem não se alinha automaticamente é visto como “agente do imperialismo”, o que parece incluir absurdamente, na perspectiva da direção cubana, mesmo os prisioneiros de consciência que levam o protesto até o sacrifício da própria vida.

Guantânamo, por seu turno, é uma evidente aberração: uma terra de ninguém para onde foram sequestradas e meticulosamente torturadas as vítimas da guerra americana ao terror. Nenhuma complacência com esta prisão, da mesma forma como não é possível desculpar os que, infamando a ideia de socialismo, deixaram morrer Orlando Zapata e Wilmar Willar.

Neste ponto, a tragédia também nos toca de perto, com as terríveis declarações do ex-presidente Lula por ocasião da morte de Zapata e as reiteradas manifestações de apreço ao regime por parte de autoridades brasileiras democraticamente constituídas. Isto sem falar na veloz repatriação dos boxeadores Erislandy Lara e Guillermo Rigondeaux pelo então ministro da Justiça, num contexto em que é bizarro alegar desconhecimento do precário estado das liberdades civis e políticas na ilha.

Risco de nos transformamos numa Cuba de dimensões continentais? Nenhum. Como no caso da Coreia, o sintoma é “só” de horizonte político limitado: uma crônica incapacidade de conceber a mudança social fora dos velhos parâmetros e de perceber que, longe de ser o caminho para o socialismo, a democracia é o próprio caminho do socialismo. A supressão da democracia política, em todo caso, é indício certeiro do surgimento de fenômenos mais ou menos mórbidos e não pode ser justificada pela invocação ritual do paradigma revolucionário.

Os reais amigos de Cuba sabem que a hipótese de autorreforma do regime — combinando estrutura política autoritária com mercados liberalizados, sem autonomia de organização sindical e demais direitos de associação — terá vida curta. Contudo, haverá na ilha vastos setores que aspiram a liberdades e, ao mesmo tempo, intuem que as conquistas do seu peculiar Welfare, em grande medida afetado pelo colapso da URSS, correrão um risco fatal se o país enveredar por uma saída “chinesa” ou se entregar aos desmandos de um mercado sem regras. Aí, entre tais setores, as raízes de uma futura esquerda socialista e democrática, programaticamente distante das concepções de controle monopolista do poder político e econômico.

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