domingo, 5 de outubro de 2008

Benjamin Moignard: "O fosso entre a escola pública e a escola privada é um desafio para a democracia brasileira"


Sociólogo elogia proteção oferecida pela escola pública no Brasil, mas diz que falta de conteúdos prejudica a democracia. A entrevista é de Leneide Duarte-Plon para a Folha.

Mesmo que exista uma violência muito grande no meio em que a escola pública brasileira está inserida, a violência da instituição propriamente não é relevante. No Brasil a escola pública aparece como espaço de proteção contra a violência externa. "Por outro lado, ela não permite aos alunos mais em dificuldade -e por isso digo que a escola brasileira é também um fator de construção da delinqüência- depositar grandes esperanças na escola." A citação é do sociólogo francês Benjamin Moignard, em entrevista exclusiva dada em Paris à Folha para falar de seu livro "L'École et la Rue - Fabriques de Délinquance" (A Escola e a Rua - Fábricas de Delinqüência, ed. PUF, 232 págs., 26, R$ 62). Ganhador do Prêmio Le Monde de pesquisa universitária, o livro faz parte de uma coleção dirigida pelo sociólogo e filósofo Edgar Morin. Nele, Moignard estuda as relações de duas escolas, uma francesa e uma carioca, com a sociedade em geral e com as comunidades nas quais estão inseridas.

O sociólogo tomou como exemplos uma escola de uma "banlieue" (bairro pobre da periferia) de Paris e outra situada numa grande favela carioca, na qual se reconhece imediatamente a Rocinha. Os nomes dos personagens, das escolas e dos lugares foram mudados. "Nas pesquisas quantitativas, a França aparece, em nível europeu, como o último país na questão da violência na escola, isto é, onde há mais casos de tensão e violência", diz Moignard, que tinha apenas 27 anos quando viveu no Rio.

Na França, os jovens se sentem excluídos da sociedade e são vistos como estrangeiros. No Brasil, têm a percepção de si mesmos como pessoas pobres. "Na França, a escola é exterior ao bairro pobre. No Brasil tem-se uma escola do bairro, na França tem-se uma escola no bairro, o que faz toda a diferença. E acho que isso é uma das explicações, mas não a única, que diferencia a violência na escola na França e no Brasil.

Pesquisador do Observatório Internacional e Europeu de Violência Escolar e professor na Universidade de Bordeaux 2, Moignard concluiu, baseado em sua pesquisa, que a violência nas escolas francesas é bem maior do que nas brasileiras. Para ele, mesmo se na França a escola se posiciona como um meio de integração e de emancipação muito forte, o que é verdadeiro de maneira geral, ela participa da construção das desigualdades sociais ao não garantir a ascensão social de alguns grupos. "Esses alunos sabem que não basta estudar para ascender socialmente.Isso é um sentimento partilhado por alunos tanto brasileiros quanto franceses."

FOLHA: O sr. diz em seu livro que o clima de violência é bem menor nas escolas brasileiras que nas francesas. Por quê?

BENJAMIN MOIGNARD:
Posso apenas levantar hipóteses. Há níveis de violência diferentes na escola francesa e na brasileira, sobretudo no clima e na relação entre os professores e os alunos. Nos dois países existe uma relação muito diferente com a escola, seja da parte dos alunos, seja da parte dos professores. Na França, tem-se uma concepção republicana da escola, que rompe totalmente com o meio que a cerca. E a escola francesa tem exigências de aprendizado que são muito grandes.

FOLHA: Mesmo nos bairros pobres de periferia?

MOIGNARD:
Pode haver certa adaptação, mas o básico permanece, ao contrário do Brasil, onde a prioridade não é tanto ensinar, mas educar. A prioridade no Brasil é dada à escolarização dos alunos, principalmente na favela e nas escolas públicas situadas nesses bairros pobres. O discurso dos professores é: "O importante não é o que os alunos aprendam em termos de saber acadêmico, mas que venham à escola e sejam escolarizados e protegidos do meio". A escola brasileira faz parte da comunidade na qual está inserida.

FOLHA: A escola é vista de forma positiva mesmo quando situada numa favela onde existem traficantes?

MOIGNARD:
Sim, mesmo se há tráfico, para as pessoas da comunidade e para os alunos a escola faz parte da comunidade.

FOLHA: Há muita violência nas escolas da periferia de Paris?

MOIGNARD:
Em nível internacional, a França está muito mal colocada nesse quesito. Há mais violência na escola na França que no Brasil.

FOLHA: A violência na escola existe ou não no Brasil?

MOIGNARD:
Ela é relativa quando comparada com a violência do meio que a cerca, mas, por outro lado, não permite aos alunos depositar grandes esperanças na escola. É por isso que digo que a escola brasileira é também um fator de construção da delinqüência. Os alunos que acompanhei e que trabalhavam para o tráfico diziam claramente: "De qualquer forma, mesmo com boas notas na escola, não terei um bom salário no futuro nem um bom emprego. Por isso, é melhor viver pouco, mas intensamente, indo à escola porque para meus pais é importante".

FOLHA: Consideram que não podem esperar ascensão social por meio da escola?

MOIGNARD:
Exatamente. A escola não é vista como fator de ascensão social. E vejo nisso um desafio à democracia muito forte. Mesmo se pode educar, a escola pública deve poder dar um saber acadêmico que esteja à altura da ambição brasileira. No Brasil a desigualdade de acesso à universidade entre os alunos da escola pública e da privada é enorme. Os alunos sabem que, sendo escolarizados na rede pública, têm poucas chances de acesso às universidades públicas para alcançar posições sociais melhores. Na França, o que ocorre é a construção escolar da delinqüência, ligada a um modo de controle do que chamo "núcleos duros delinqüentes". Esse controle acaba por construir esses núcleos duros, alimentando a estruturação de quadrilhas de adolescentes, condutas anti-escolares etc. No Brasil [esse controle] é mais insidioso: a escola protege do ambiente externo, consegue não ser violenta, com algumas exceções, mas acho que ela favorece a delinqüência, pois os alunos entram para o tráfico dizendo que "a escola não dá alternativa melhor".

FOLHA: O que o sr. quer dizer com: "A escola participa da construção das situações sociais que ela teme"?

MOIGNARD:
Isso é de certa forma uma provocação, pois a escola não é o único elemento. Mesmo participando da construção da delinqüência, ela não o faz de maneira deliberada. No caso francês, a escola tenta limitar a ação de alguns alunos mais difíceis em turmas especiais, promovendo uma segregação interna. Ela os coloca juntos para preservar os outros alunos, menos difíceis, que vêm de meios sociais mais favorecidos. Para tentar manter a mistura de classes sociais no estabelecimento, os professores concentram os alunos mais difíceis. Em nenhum momento os diretores pensam que, fazendo isso, estão ajudando a construir as gangues juvenis.

FOLHA: O sr. pode explicar a lógica repressiva da escola francesa e como ela participa na formação das gangues?

MOIGNARD:
A lógica repressiva existe porque os alunos vêm de um meio visto como um perigo permanente, e a escola pensa que é preciso se proteger. Para isso, a idéia de tolerância zero é muito difundida. Não se pode deixar passar nada, para que não transborde. A sanção só faz sentido se for compreendida, mas, quando os alunos ficam retidos todo dia depois da aula, essa punição perde o efeito. Os alunos vivem isso como uma opressão da escola e da sociedade. Chega-se, então, a um nível de desconfiança recíproca. A concepção republicana francesa faz com que a escola seja cortada de seu ambiente. Essa postura de ruptura alimenta as condutas anti-escolares, que alimentam, por sua vez, os processos delinqüentes que fazem que a escola se torne uma fábrica de delinqüência.

FOLHA: E quanto ao Brasil?

MOIGNARD:
No Brasil, o processo é mais insidioso. A escola fabrica delinqüência mais sutilmente. Quando eu trabalhava para o Observatório Europeu da Violência na Escola, concluímos: "A escola brasileira encontrou a solução para lutar contra a violência na escola". Tínhamos um paradoxo: um meio extremamente violento e uma escola extremamente preservada. Na favela que estudei, temos exatamente isso.Mas, mesmo se a escola preserva da violência, não é um meio de preservar de maneira mais ampla. E certo número de alunos escolhem deliberadamente entrar para o tráfico. Evidentemente há outros elementos, uma forte pressão do ambiente, sem a qual os alunos não cairiam no tráfico. Mas, como a escola não aparece como alternativa, ela favorece a construção das práticas delinqüentes.

FOLHA: O sr. compara a favela e a "banlieue" de Paris a guetos. Que características aproximam esses lugares da noção de gueto?

MOIGNARD:
Utilizei o termo no sentido em que são bairros que agrupam populações fortemente marginalizadas ou em situação de exclusão em relação ao resto da sociedade. Na França, nos bairros populares, há uma forte concentração de populações cada vez mais segregadas. Não são guetos étnicos, como nos EUA, onde há bairros de negros, de latinos, mas bairros nos quais há uma concentração muito grande de populações em dificuldade e onde há cada vez menos a intervenção do Estado.Na França, freqüentemente, o único representante do Estado nesses bairros é a escola. Isso explica na França uma espécie de etnização das relações, com um choque entre professores e alunos, que não vêm dos mesmos meios sociais nem dos mesmos ambientes.

FOLHA: Como comparar o incomparável: uma favela num país em desenvolvimento numa cidade como o Rio e um bairro pobre da periferia de Paris? Quais são as semelhanças e as diferenças?

MOIGNARD:
Comparei o incomparável também na representação de cada um nos dois países. Na França, pensa-se que uma favela brasileira vive uma violência diária e permanente. Não se imagina que também seja um espaço de vida social com comércio, festas etc. Por outro lado, quando dizia [no Brasil] que eu fazia um trabalho de pesquisa em um bairro pobre francês, as pessoas sorriam, imaginando problemas muito relativos. Essas reações colocam a questão de retrabalhar as representações e estereótipos. O que há em comum é que tanto no Brasil quanto na França essas populações ocupam o mesmo lugar na pirâmide social. A situação de exclusão é parecida, mesmo se a favela é vista no Brasil apenas como um bairro de pobres e eles mesmos se vêem como pobres. Na França, mesmo se a questão da pobreza é levantada, os jovens falam de "bairro de estrangeiros". Nos colégios, as concentrações étnicas são muito fortes. Por causa da exclusão, espera-se muito da escola, tanto na França quanto no Brasil. A escola é vista como a única alternativa possível, mesmo sem muita ilusão.

FOLHA: Com foi seu dia-a-dia em uma favela carioca? Sua vida chegou a ser ameaçada?

MOIGNARD:
Não, nunca fui ameaçado, mas o trabalho na favela foi longo. Fiquei quase dois anos no Rio. Não cheguei à favela do dia para a noite.Primeiramente, fui trabalhar na escola e, como estava próximo de alguns alunos entre os quais havia membros do tráfico, pude me integrar à comunidade.

FOLHA: O sr. foi de certa forma protegido por pessoas que o adotaram como amigo?

MOIGNARD:
Exatamente, nunca fui sozinho à favela, sempre estive acompanhado. Fui lá praticamente todos os dias, durante um ano.

FOLHA: No início ficaram desconfiados?

MOIGNARD:
Um francês já é para eles sinal exterior de riqueza; além do mais pesquisador. Era algo que não era visto de maneira muito positiva.

FOLHA: O sr. diz que, "no Brasil, os excessos dos policiais e dos militares fazem quase sempre mortos e feridos a bala". Na França, os jovens das "banlieues" raramente são mortos em intervenções da polícia. Por que os policiais são odiados tanto na favela quanto na "banlieue"?

MOIGNARD:
Há um comportamento policial e militar muito próximo dos traficantes, inclusive no controle imposto aos habitantes. Nas favelas, os habitantes se protegem da polícia. Fui abordado várias vezes na favela para mostrar documentos, e esses controles são particularmente violentos.

FOLHA: E na França?

MOIGNARD:
Não se deve pôr todos os policiais no mesmo saco, mas, em alguns "quartiers" em que trabalhei, o sentimento antipolícia é alimentado por comportamentos intrusivos fortes, ligados à idéia de que não pode haver territórios onde a República esteja ausente. Há formas de controle de identidade, e os jovens podem ser abordados cinco vezes numa mesma noite. Isso não é uma espécie de reapropriação de territórios para afastar os jovens de seus próprios bairros? Não digo que os jovens devam ser os únicos donos de seus territórios, mas na França e no Brasil a polícia tende a se posicionar de maneira a criar um confronto com os jovens que se organizam em gangues.

FOLHA: Com uma diferença: na França a polícia não mata os jovens das "banlieues".

MOIGNARD:
Na França, existem excessos, atiram com balas de borracha. A Brigada Anticriminalidade que trabalha nas "banlieues" usa cada vez mais "flash-ball" [arma que permite à polícia dominar insurreições sem fazer mortos]. Da mesma forma, a intervenção das forças da CRS [Companhia Republicana de Segurança, unidade de controle de tumultos] nos bairros populares é constante, ficam permanentemente em alguns locais. E, mesmo que a imprensa não fale disso, as insurreições continuam. O confronto entre jovens e policiais aumentou muito nos últimos cinco anos.

FOLHA: Sobre o Brasil o sr. escreve: "Se a escola evita a violência e em certa medida a delinqüência, não somente ela não é um meio de prevenir a violência, mas reforça as desigualdades sociais". Como isso acontece?

MOIGNARD:
Claro que é importante educar e a escola pública brasileira é formidável no trabalho que faz com o meio no qual se insere. Mas, na minha opinião e de outros sociólogos, ela não pode abandonar suas exigências em termos acadêmicos se quiser se tornar um fator de emancipação. Nas pesquisas internacionais sobre aprendizagem, a escola pública brasileira é muito mal posicionada, não corresponde ao nível econômico do país. O fosso entre a escola pública e a escola privada é um desafio para a democracia brasileira. O desafio é este: a escola pública vai poder assumir seu papel emancipador?

FOLHA: Como se manifesta a violência nas escolas francesas?

MOIGNARD:
Essa violência não é apenas feita de tiros e facadas. Manifesta-se também em microviolências, uma acumulação de pequenos fatos repetidos que são vividos pelos professores como violência. Por exemplo, alunos que se empurram nos corredores e chegam a se altercar muitas vezes com violência. Ou então gritos e discussões em sala. Isso pode ser vivido pelos professores como um impedimento para dar prosseguimento à aula.

FOLHA: Como a escola trabalha para dissolver a tensão e resolver o problema?

MOIGNARD:
A dificuldade é que não há uma única maneira de ver a questão. Na França, as escolas das zonas violentas não combatem a questão da violência porque os educadores pensam que ela não é ligada à escola. As pessoas pensam que é culpa do meio, que é violento. Acham que não há nada a fazer. Mas sabemos que há um número de fatores decisivos na construção da violência escolar. Por exemplo, a estabilidade das equipes, que é um fator determinante para lutar contra a violência na escola. Mas sabe-se também que na França a nomeação dos professores é feita de tal forma que, para as zonas mais pobres, são enviados os professores mais jovens, que procuram sair logo que podem das escolas consideradas "difíceis". Logo, estamos dentro de mecanismos que alimentam a construção da violência, com equipes pouco estáveis, atitudes muito repressivas, gestão da ordem escolar vista pelos alunos como uma forma de violência simbólica da parte da instituição e com formas de segregação interna aos estabelecimentos, que fazem com que se concentrem numa mesma sala os alunos com dificuldade.

FOLHA: O sr. acredita que na França os alunos vêem a repressão da violência na escola e como uma continuação da repressão da polícia?

MOIGNARD:
Isso existe porque há fortes expectativas em relação à escola francesa. Os alunos dos bairros pobres têm confiança na escola, e ela tem uma legitimidade social muito forte. Quando descobrem que a escola também se torna um fator de exclusão e de reprodução das dominações, ela se torna vítima de comportamentos antiescolares muito fortes. Porém há estabelecimentos que deveriam, sociologicamente falando, ter problemas de violência e não têm, pois souberam resolver a questão, ao envolver os "quartiers", as associações etc. Isso significa que o meio socioeconômico não explica sozinho a violência na escola.

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