Revista Cult
Nem liberal, nem marxista ou conservador, o traço do pensamento arendtiano assumiu a insígnia do amor mundi, do amor pelo mundo
Hannah Arendt nasceu em Linden, subúrbio de Hannover, Alemanha, no dia 14 de outubro de 1906. Sua infância transcorreu em meio à classe média judaica assimilada e profundamente mesclada à cultura alemã. Apesar de protegida do anti-semitismo pelo ambiente familiar, desde pequena Arendt sentia-se diferente das outras crianças. Já adulta, costumava referir-se a si própria citando um poema de Schiller (1759-1805), Das Mädchen aus der Fremde, a menina vinda do estrangeiro, do desconhecido. Esse contínuo sentimento de estranhamento a levou a pensar que apenas os parias conscientes de sua diferença representam a verdadeira humanidade, de maneira que a condição primeira de todo intelectual deveria ser o inconformismo social.
Aos 18 anos, decidiu cursar filosofia e foi então que conheceu pessoalmente Heidegger, na Universidade de Marburg. O encontro foi fulminante e os dois se apaixonaram, envolvendo-se numa relação amorosa secreta e impossível. Com a ascensão dos nazistas ao poder em 1933, Arendt abandonou a filosofia e engajou-se no grupo sionista liderado por um antigo conhecido de sua família, Kurt Blumenfeld. Em pouco tempo, foi presa e teve de fugir do país, sem documentos, rumo a Paris. Lá, tornou-se amiga de Walter Benjamin e de outros refugiados alemães, em sua maioria judeus e comunistas, entre os quais conheceu Heinrich Blücher (1899-1970), com quem viveria até a morte dele.
Apátrida
Superadas as dificuldades de adaptação após sua chegada aos Estados Unidos em 1941, como exilada e apátrida, Arendt começou a elaborar As origens do totalitarismo. Nesse livro de 1951, atesta-se o impressionante esforço intelectual de Arendt para compreender o incompreensível, fazendo de seu próprio destino uma história na qual as análises do anti-semitismo e do imperialismo culminam na investigação do totalitarismo. A análise arendtiana dos governos totalitários se tornou célebre ao propor a seguinte tese: a de que o nazismo e o stalinismo, a despeito de inúmeras e importantes diferenças entre si, constituíam variantes de uma mesma forma de dominação sem precedentes históricos.
Para Arendt, o totalitarismo não poderia ser comparado a outras formas de dominação já conhecidas e catalogadas pela filosofia política, como tiranias, despotismos ou ditaduras, das quais ele não seria apenas uma versão mais violenta. Arendt compreendeu que em sua pretensão de subordinar a liberdade humana e a totalidade da vida privada, social e política aos seus imperativos ideológicos, os governos totalitários não deixavam de pautar suas ações pelas leis que promulgavam, isto é, não pretendiam governar para além dos limites da lei. Antes, o totalitarismo altera radicalmente o próprio conceito tradicional de lei ao compreendê-la em termos das leis gerais de desenvolvimento da Natureza ou da História, extraindo-se desse suposto fundamento incontestável a própria legislação positiva.
Arendt também descobriu que os dois pilares de sustentação dos regimes totalitários são o terror e a ideologia, os quais se articulam de maneira complementar: ao mesmo tempo em que a ideologia justifica e demonstra a necessidade do emprego da violência terrorista contra todos os que estorvam o desenvolvimento histórico das classes sociais progressistas ou o desenvolvimento natural das raças mais evoluídas, é também por meio do terror que se criam e se reproduzem as condições sociais e políticas que, em concordância com a ideologia totalitária, transformam os supostos inimigos do regime em seres humanos degradados e perigosos, os quais precisam ser aniquilados. Por isso, as principais instituições dos governos totalitários são fábricas da morte, os campos de concentração e extermínio nos quais se testa a possibilidade de reduzir os seres humanos à condição da vida nua e supérflua que pode ser eliminada sem mais.
Crítica à divisão esquerda-direita
Ao confrontar-se com os horrores da dominação totalitária, Arendt descobriu que as questões políticas cruciais do presente não mais podiam elucidar-se por meio do recurso a conceitos tradicionais como esquerda ou direita e, desde então, manteve uma atitude crítica em relação à tradição do pensamento filosófico-político ocidental. Nem liberal, nem marxista ou conservador, o traço característico do pensamento arendtiano assumiu a insígnia do amor mundi, amor pelo mundo. Essa foi a perspectiva teórica a partir da qual Arendt deu início à compreensão dos desvarios políticos de nosso tempo, o absurdo totalitário e o fenômeno da moderna despolitização liberal-tecnocrática. Para Arendt, o século 20 testemunhou o obscurecimento da experiência democrática radical, caracterizada pelo envolvimento coletivo dos cidadãos nas questões políticas por meio de seus atos e palavras, tanto em função da burocratização e do crescente emprego da violência por parte do Estado, elevado ao paroxismo no fenômeno totalitário, quanto em função do processo histórico de privatização do espaço público, isto é, pela sua transformação estrutural no espaço social das trocas econômicas de uma sociedade constituída por indivíduos reduzidos à função de trabalhadores-consumidores. Tal fenômeno acarretou a crescente perda de autonomia do político em relação ao âmbito das necessidades econômicas e seus imperativos estratégicos e privatizantes.
Por certo, Arendt jamais afirmou que totalitarismo e democracia liberal fossem idênticos. O problema é que a novidade totalitária só foi possível na medida em que ali se radicalizaram e se cristalizaram elementos históricos e sociais próprios da modernidade tardia, os quais também são comuns às democracias liberais parlamentares de massa e mercado, tais como: racismo, xenofobia, apatia política decorrente do processo de isolamento dos cidadãos, atomização e massificação dos indivíduos, imperialismo econômico, emprego da mentira e da violência para a ‘resolução’ de conflitos, multiplicação das minorias, dos apátridas e refugiados, crescente superfluidade de massas humanas desprovidas de cidadania e de ocupação social digna, etc. Se no totalitarismo a liberdade fora totalmente aniquilada, nas democracias liberais representativas, fundadas no sistema de partidos políticos, a liberdade tenderia a se restringir ao mínimo instante do voto.
Busca do novo no passado
Tais dilemas ainda se fazem acompanhar pela transformação histórica do próprio espaço público em um livre mercado de trocas econômicas destinadas ao incremento e manutenção das necessidades vitais do homem contemporâneo. A tese arendtiana é a de que a partir do século 19 cada vez mais a política foi sobredeterminada por interesses sócio-econômicos privados e pelo saber técnico e burocrático que transformou o político num tecnocrata. Sob o impacto dessas transformações históricas, operou-se a liberação e a promoção da vida e da felicidade do animal laborans, isto é, o homem reduzido ao seu papel de produtor-consumidor, ao estatuto de valores e ideais políticos inquestionáveis. Para a autora, o problema residia em que os ideais mais caros do animal laborans, isto é, os ideais da abundância e do consumo desenfreado, do crescimento ilimitado, da contínua acumulação da riqueza a qualquer preço reduzem a humanidade ao ciclo repetitivo do seu próprio funcionamento vital, ao mesmo tempo em que impõem o esgarçamento das possibilidades políticas genuinamente democráticas e não violentas.
Face a esse diagnóstico sombrio, tanto em A condição humana quanto nos demais textos da segunda metade dos anos 1950 e dos anos 1960, Arendt dedicou-se a pensar o sentido das experiências políticas genuínas e originárias da polis e da res publica romana, que a tradição filosófica teria legado ao esquecimento. Ao desenvolver uma inovadora fenomenologia da liberdade, da ação política e do espaço público, Arendt procurou trazer à luz do presente as determinações democráticas e republicanas essenciais da política. No entanto, não se tratava de retornar ao passado para transformá-lo em modelo a ser repetido no presente, pois o que ela buscava na história não era algo pretérito ou já reconhecido enquanto tal. Pelo contrário, ela buscava no passado algo novo, isto é, um conjunto de experiências políticas voltadas para a felicidade pública e para o prazer da ação e do discurso em comum, experiências com as quais ela poderia iluminar o significado de certas manifestações políticas da modernidade e do nosso tempo. Não por acaso ela se interessou pelo fenômeno revolucionário, entendendo-o como uma série de repetidas tentativas populares para restabelecer formas participativas de envolvimento dos cidadãos na política. A insurreição húngara de 1956, em particular, pareceu-lhe reveladora: contra o poder opressivo da polícia e da burocracia soviética, o povo organizou-se em conselhos autônomos e tentou revolucionar as estruturas de poder vigentes, sendo, contudo, massacrado com violência.
Entre o poder constituinte e o poder constituído
Em Sobre a revolução, de 1963, Arendt refletiu sobre as diferenças entre as revoluções russa, francesa e americana, enxergando provocativamente nesta última o intento mais bem acabado do projeto revolucionário, a fundação de um novo espaço público orientado por uma constituição consensualmente pactuada. Daí também adveio seu interesse pelos movimentos políticos de defesa e ampliação dos direitos civis, bem como pela desobediência civil, tema de um importante ensaio publicado na coletânea Crises da república, de 1969, na qual ela também discutiu os fenômenos da violência contemporânea na política, da guerra do Vietnã e da proliferação da mentira na política. Sem ser uma ativista política, Arendt engajou seu pensamento na tarefa de compreender a crise política da modernidade, ao mesmo tempo em que buscava as brechas que poderiam revolucionar a política do presente. O problema com o qual Arendt se enfrenta em suas investigações dos eventos políticos genuínos da modernidade e do presente é o de como articular o poder constituinte, gerado por meio das ações e palavras dos cidadãos, e o poder constituído, que precisa se cristalizar em determinadas estruturas jurídico-políticas que garantam a estabilidade e a renovação do corpo político por meio do exercício coletivo da liberdade participativa. Seu pensamento político procura encontrar uma delicada solução de continuidade entre poder constituinte e poder constituído, entre as instâncias do político e do jurídico, entre democracia radical e democracia representativa, em suma, entre a criatividade imprevisível da ação política e a necessidade de se estabelecer limites normativos de caráter político, que detenham a disseminação da violência e da arbitrariedade sem domesticar a originalidade intrínseca de toda ação política genuinamente democrática.
Eros da amizade
Sua última obra, A vida do espírito, deixada incompleta por motivo de sua morte em 4 de dezembro de 1975, testemunha seu contínuo interesse pela interface entre filosofia e política. Neste livro publicado postumamente, Arendt analisou as atividades do pensar, do querer e do julgar, ao mesmo tempo em que discutiu suas implicações éticas e políticas. A despeito do volume sobre o Juízo não ter sido escrito, restaram, contudo, as notas do seminário proferido na New School for Social Research em 1970, em que Arendt propunha a inventiva e polêmica tese de que a filosofia política de Kant deveria ser buscada na sua análise do juízo reflexionante estético da Crítica do juízo. O pensar ao qual Arendt se refere não se confunde com especulações teóricas, pois é uma atividade dedicada à busca do sentido, da compreensão e reconciliação com o mundo. Enquanto busca do significado, tal pensamento é um diálogo silencioso entre eu e mim mesmo. Quando interrompo minhas ações no mundo e, a sós, paro para pensar minha conduta e julgar os eventos do mundo, não me encontro efetivamente sozinho. Quando penso, estou na companhia do amigo que me habita, do outro que trago junto a mim e com o qual estabeleço um diálogo silencioso; quando julgo, me encontro na companhia de todos os demais cuja posição eu possa representar por meio de minha imaginação. Em outros termos, ao pensar e julgar reconhecemos implicitamente a pluralidade humana que constitui a própria lei da Terra.
No elogio fúnebre prestado à amiga, o filósofo Hans Jonas (1903-1993) recordou que Hannah Arendt fora agraciada não apenas com uma inteligência excepcional, mas também pelo Eros da amizade, pois tinha o dom de reunir e associar aqueles que estivessem à sua volta.
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