Folha
Abu Dhabi e Dubai, nos Emirados Árabes, país com uma das mais altas rendas per capita do mundo, retrataram nos últimos dias os paradoxos da crise. Depois do voto pelo Congresso do "pacotão" do presidente George W. Bush [autorizando ajuda de até US$ 700 bilhões ao mercado financeiro], os jornais locais prognosticaram que a reabertura dos negócios, no dia 5 passado, seria muito positiva.As Bolsas dos Emirados haviam fechado no feriado da Eid al Fitr, marcando o fim dos 30 dias de jejum do Ramadã, e abria-se um megaevento em Dubai: a apresentação da Cityscape. Considerado o maior empreendimento imobiliário do mundo, essa nova cidade pontuada de gigantescos prédios de escritórios, alguns com mais de um quilômetro de altura, está orçada em US$ 98 bilhões.
Prevê-se que 60 mil visitantes de 150 países assistirão às exibições do projeto em Dubai, onde Cityscape será construída nos próximos 12 anos. Mas no dia seguinte, como no resto do mundo, as Bolsas de Abu Dhabi e Dubai desabavam. Depois da quebradeira, Cityscape ficará vazia no deserto, como outras ruínas do passado multimilenar do Oriente Médio, como um monumento delirante da especulação financeira das últimas décadas?
É preciso esperar ainda os efeitos da fantástica viração de casaca praticada pelos governos ocidentais. De fato, Margareth Thatcher [então premiê britânica] e Ronald Reagan [1911-2004, presidente dos EUA] fixaram nos anos 1980 o dogma que se impôs à maioria dos países, e que Reagan resumia assim: "O governo não é parte da solução, é parte do problema!".Em setembro, num discurso que pareceria herético seis meses atrás, o presidente francês Nicolas Sarkozy, um dos líderes da direita francesa e européia, declarou: "A idéia de que os mercados sempre têm razão é uma idéia maluca!".
Dias depois, enterrando o único dos dois introdutores dessa "maluquice" que ainda está vivo, os deputados conservadores ingleses apoiavam o plano do governo trabalhista que nacionalizou parcialmente os oito maiores bancos britânicos. A justificação dada pelo premiê Gordon Brown, que rolava ladeira abaixo e ressuscitou politicamente, também fará data: "Não é hora do pensamento convencional ou dos dogmas ultrapassados".
No momento em que escrevo, o "New York Times" afirma na edição on-line que o Tesouro americano planeja lançar uma operação similar à britânica, nacionalizando parcialmente grandes bancos americanos. O jornal acrescenta que a proposta está sendo bem acolhida em Wall Street.
Desespero americano
Num discurso recente, Barack Obama [candidato democrata a presidente] disse que os EUA atravessam um "desespero irracional". Isso explica muita coisa e relativiza os recentes arrenegos políticos e econômicos do governo Bush. Mas há um preço a pagar. Para começar, há a constatação da responsabilidade do governo americano na crise que empobrecerá milhões de pessoas mundo afora.
Assim, Peter Mandelson, ministro de Negócios do Reino Unido, ao declarar que a situação de seu país era "muito má", acrescentou: "Nenhum dos problemas que nós temos agora teria aparecido se não fossem os acontecimentos de Wall Street e do sistema financeiro americano". Stephen Harper, primeiro-ministro do Canadá, onde haverá eleições em breve, foi mais longe e atacou o sistema político americano. Pedindo aos eleitores uma maioria ampla, ele disse: "Não precisamos de um Parlamento que aja como o Congresso americano, onde há pânico e anúncio de um plano diferente todo dia".
A crítica pode fazer alusão a uma decisão do governo Bush, que, para impressionar o Congresso e o eleitorado potencial de John McCain [candidato republicano a presidente], deixou o banco Lehman Brothers ir à bancarrota, precipitando a crise mundial.Para muitos observadores, a decisão aparece retrospectivamente como uma gigantesca burrada. Martin Wolf, do "Financial Times", o mais respeitado comentarista econômico europeu, também aponta nessa direção.
Registrando o declínio norte-americano, o economista e colunista do "New York Times" Paul Krugman passa recibo da baixa auto-estima que atinge o país: "OK, nós somos uma república bananeira", escreve ele no seu blog. Se o problema americano fosse só a questão financeira e a depressão dos economistas de esquerda, tudo poderia se resolver daqui a três semanas, com a eleição de Barack Obama e a implantação de uma política social-democrata. Algo que não assustará mais ninguém, visto que se fala de um retorno a Keynes e às grandes obras públicas no estilo do New Deal rooseveltiano.
Mas o problema é outro. Na realidade, o recuo da liderança dos EUA se soma a outro estrago causado pelo governo Bush: o enfraquecimento da ONU e das instituições internacionais. No vazio assim criado, a Coréia do Norte retomou seu programa nuclear, a Rússia foi para cima da Geórgia e o Irã vai tocando seu programa nuclear. Israel preveniu que não irá tolerar que o Irã fabrique bombas atômicas. As condições estão reunidas para um conflito de conseqüências imprevisíveis.
Mudança de eixo
Num plano mais geral, um declínio continuado da liderança americana mudará o eixo geopolítico mundial. A China possui uma "arma atômica financeira", como escreveu o "Le Monde": os "Treasuries", títulos do Tesouro americano que alcançavam US$ 518 bilhões no passado mês de julho. De seu lado, o Japão detém US$ 594 bilhões.
Mas o montante dos "Treasuries" na mão de organismos estatais é maior na China do que no Japão. Circunstância que dá ao governo chinês o estatuto de maior credor dos EUA. Por enquanto, os chineses têm atuado em dobradinha com os americanos: a China compra os "Treasuries" e financia o déficit americano com os excedentes obtidos no seu comércio com os EUA.
Nem os chineses nem os japoneses têm interesse numa queda acentuada do dólar que desvalorizaria suas reservas de divisas. Mas a fragilização das economias ocidentais oferece à China "uma oportunidade rara, que só acontece uma vez em cada século, de comprar a baixo preço ativos estratégicos", como declarou um grande investidor chinês.
A exemplo dos países do Golfo Pérsico, os investidores chineses têm pouca experiência na aplicação em ativos estrangeiros e queimaram os dedos nas Bolsas ocidentais nas últimas semanas. Mas com o Japão a coisa é diferente, como observou a "Economist". Mais experientes, os japoneses também são investidores de longo prazo e vêm realizando uma série de aquisições estratégicas na Europa e nos EUA.
Se a tendência se confirmar, se os chineses também voltarem às compras nas Bolsas do Ocidente, Cityscape será todinha erguida nas areias de Dubai. E aparecerá como o novo pólo de ligação entre o Ocidente e o Oriente. Como o marco do verdadeiro início do século 21, o século da Ásia, sob a hegemonia do capitalismo chinês.
Prevê-se que 60 mil visitantes de 150 países assistirão às exibições do projeto em Dubai, onde Cityscape será construída nos próximos 12 anos. Mas no dia seguinte, como no resto do mundo, as Bolsas de Abu Dhabi e Dubai desabavam. Depois da quebradeira, Cityscape ficará vazia no deserto, como outras ruínas do passado multimilenar do Oriente Médio, como um monumento delirante da especulação financeira das últimas décadas?
É preciso esperar ainda os efeitos da fantástica viração de casaca praticada pelos governos ocidentais. De fato, Margareth Thatcher [então premiê britânica] e Ronald Reagan [1911-2004, presidente dos EUA] fixaram nos anos 1980 o dogma que se impôs à maioria dos países, e que Reagan resumia assim: "O governo não é parte da solução, é parte do problema!".Em setembro, num discurso que pareceria herético seis meses atrás, o presidente francês Nicolas Sarkozy, um dos líderes da direita francesa e européia, declarou: "A idéia de que os mercados sempre têm razão é uma idéia maluca!".
Dias depois, enterrando o único dos dois introdutores dessa "maluquice" que ainda está vivo, os deputados conservadores ingleses apoiavam o plano do governo trabalhista que nacionalizou parcialmente os oito maiores bancos britânicos. A justificação dada pelo premiê Gordon Brown, que rolava ladeira abaixo e ressuscitou politicamente, também fará data: "Não é hora do pensamento convencional ou dos dogmas ultrapassados".
No momento em que escrevo, o "New York Times" afirma na edição on-line que o Tesouro americano planeja lançar uma operação similar à britânica, nacionalizando parcialmente grandes bancos americanos. O jornal acrescenta que a proposta está sendo bem acolhida em Wall Street.
Desespero americano
Num discurso recente, Barack Obama [candidato democrata a presidente] disse que os EUA atravessam um "desespero irracional". Isso explica muita coisa e relativiza os recentes arrenegos políticos e econômicos do governo Bush. Mas há um preço a pagar. Para começar, há a constatação da responsabilidade do governo americano na crise que empobrecerá milhões de pessoas mundo afora.
Assim, Peter Mandelson, ministro de Negócios do Reino Unido, ao declarar que a situação de seu país era "muito má", acrescentou: "Nenhum dos problemas que nós temos agora teria aparecido se não fossem os acontecimentos de Wall Street e do sistema financeiro americano". Stephen Harper, primeiro-ministro do Canadá, onde haverá eleições em breve, foi mais longe e atacou o sistema político americano. Pedindo aos eleitores uma maioria ampla, ele disse: "Não precisamos de um Parlamento que aja como o Congresso americano, onde há pânico e anúncio de um plano diferente todo dia".
A crítica pode fazer alusão a uma decisão do governo Bush, que, para impressionar o Congresso e o eleitorado potencial de John McCain [candidato republicano a presidente], deixou o banco Lehman Brothers ir à bancarrota, precipitando a crise mundial.Para muitos observadores, a decisão aparece retrospectivamente como uma gigantesca burrada. Martin Wolf, do "Financial Times", o mais respeitado comentarista econômico europeu, também aponta nessa direção.
Registrando o declínio norte-americano, o economista e colunista do "New York Times" Paul Krugman passa recibo da baixa auto-estima que atinge o país: "OK, nós somos uma república bananeira", escreve ele no seu blog. Se o problema americano fosse só a questão financeira e a depressão dos economistas de esquerda, tudo poderia se resolver daqui a três semanas, com a eleição de Barack Obama e a implantação de uma política social-democrata. Algo que não assustará mais ninguém, visto que se fala de um retorno a Keynes e às grandes obras públicas no estilo do New Deal rooseveltiano.
Mas o problema é outro. Na realidade, o recuo da liderança dos EUA se soma a outro estrago causado pelo governo Bush: o enfraquecimento da ONU e das instituições internacionais. No vazio assim criado, a Coréia do Norte retomou seu programa nuclear, a Rússia foi para cima da Geórgia e o Irã vai tocando seu programa nuclear. Israel preveniu que não irá tolerar que o Irã fabrique bombas atômicas. As condições estão reunidas para um conflito de conseqüências imprevisíveis.
Mudança de eixo
Num plano mais geral, um declínio continuado da liderança americana mudará o eixo geopolítico mundial. A China possui uma "arma atômica financeira", como escreveu o "Le Monde": os "Treasuries", títulos do Tesouro americano que alcançavam US$ 518 bilhões no passado mês de julho. De seu lado, o Japão detém US$ 594 bilhões.
Mas o montante dos "Treasuries" na mão de organismos estatais é maior na China do que no Japão. Circunstância que dá ao governo chinês o estatuto de maior credor dos EUA. Por enquanto, os chineses têm atuado em dobradinha com os americanos: a China compra os "Treasuries" e financia o déficit americano com os excedentes obtidos no seu comércio com os EUA.
Nem os chineses nem os japoneses têm interesse numa queda acentuada do dólar que desvalorizaria suas reservas de divisas. Mas a fragilização das economias ocidentais oferece à China "uma oportunidade rara, que só acontece uma vez em cada século, de comprar a baixo preço ativos estratégicos", como declarou um grande investidor chinês.
A exemplo dos países do Golfo Pérsico, os investidores chineses têm pouca experiência na aplicação em ativos estrangeiros e queimaram os dedos nas Bolsas ocidentais nas últimas semanas. Mas com o Japão a coisa é diferente, como observou a "Economist". Mais experientes, os japoneses também são investidores de longo prazo e vêm realizando uma série de aquisições estratégicas na Europa e nos EUA.
Se a tendência se confirmar, se os chineses também voltarem às compras nas Bolsas do Ocidente, Cityscape será todinha erguida nas areias de Dubai. E aparecerá como o novo pólo de ligação entre o Ocidente e o Oriente. Como o marco do verdadeiro início do século 21, o século da Ásia, sob a hegemonia do capitalismo chinês.
Nenhum comentário:
Postar um comentário