Vinicius Mota
Folha
O periódico "Política Externa" começou a circular numa época trepidante. Era 1992, e o colapso da União Soviética ainda se contava em meses. No Brasil, o ano marcou o impeachment do primeiro presidente eleito nas urnas após a restauração democrática. A revista surgiu da iniciativa de um grupo de intelectuais concentrado em São Paulo, alguns com conexões político-partidárias -no PSDB ou no PT-, que se reuniu em torno do editor Fernando Gasparian, da Paz e Terra, morto em 2006. Os artigos editados na coletânea "A Nova Configuração Mundial do Poder", publicados ao longo dos últimos 16 anos na revista, refletem essa dupla transformação. Muda o mundo, e muda a maneira tradicional de pensá-lo no Brasil. Alteram-se também os intelectuais com peso de influenciar os destinos da política externa brasileira.
Dispostos em ordem cronológica de publicação, os artigos compõem um panorama das sucessivas preocupações que ocuparam a agenda da macropolítica internacional. Desfilam temas como os limites do poderio americano logo após a derrocada socialista; o avanço do livre comércio e o advento da Organização Mundial do Comércio; a mundialização das empresas e das finanças e seu impacto sobre a soberania nacional; as conseqüências do 11 de Setembro, da Doutrina Bush e da invasão do Iraque; a ascensão da China e dos Brics; e as tentativas de firmar um pacto contra o aquecimento global. A edição também envereda pelos temas e pelas questões que demandam atenção mais imediata da política externa brasileira. Nesse flanco estão suas contribuições mais significativas.
"Conflitos de interesse"
O livro não permite traçar um quadro balanceado das mudanças por que passaram a doutrina e a prática da diplomacia nacional no período abrangido. Faltam, para tanto, uma análise e/ou uma defesa sistemática das opções tomadas pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva. O artigo assinado pelo próprio Lula, como candidato à Presidência em 1994, é curto e circunstancial. O texto de Celso Amorim, mais de oito anos depois, trata das afrontas ao multilateralismo e ao sistema da ONU contidas na doutrina dos ataques preventivos. Já alguns artigos de autores associados ao governo de Fernando Henrique Cardoso são bem mais elucidativos a respeito dos padrões e dos conceitos que foram sendo adotados na política externa.
Celso Lafer, em texto publicado em 1998, dá o tom. O que restou em matéria econômica no mundo de hoje -diluídos os embates entre concepções ideológicas- são "conflitos de interesse", argumenta Lafer, que foi chanceler de Fernando Henrique Cardoso. Cabe aos Estados o papel da "intermediação interna e externa desses conflitos de interesse". Acordos amplos firmados por consenso, baseados na confiança entre os países, amparados na transparência e em mecanismos formais de solução de controvérsias seriam o caminho virtuoso dessa globalização. Daí a importância, em especial para o Brasil, de instituições como a Organização Mundial do Comércio. Interesse, comércio, negócios; credibilidade, respeito a contratos e a instituições; aceitação e valorização das regras de mercado. Esse feixe de conceitos norteou a reconfiguração por que passou a política externa -e a política pública de modo geral- brasileira nos anos 1990. O fim da Guerra Fria e a democratização do país concorreram para destronar as forças, à direita e à esquerda, que resistiam à abertura, em nome de um modelo autárquico, nacionalista, de desenvolvimento.
Soçobrou, nessa reviravolta, o pessimismo da Cepal -o órgão da ONU para a América Latina que abrigou a esquerda perseguida pelas ditaduras do continente. "A visão pessimista para induzir à ação", escreve no livro Albert Hirschman, professor da Universidade Princeton e decano dos estudos sobre desenvolvimento comparado, "havia conseguido difundir o pessimismo mais do que incitar à ação". Porque disfarçava, acrescento, num palavrório dito estruturalista, pedante às raias do insuportável, seu inconformismo com o mercado e a esperança distante, quase religiosa, numa transformação profunda da sociedade.
O próprio Fernando Henrique Cardoso escreve um dos últimos -e mais recentes, portanto- artigos publicados na coleção. O propósito é mostrar como seu influente estudo cepalino de 1967 -"Dependência e Desenvolvimento na América Latina", escrito em parceria com o sociólogo chileno Enzo Faletto- discrepava da vulgata das teorias do imperialismo. A ênfase do texto de 40 anos atrás, escreve FHC, não foi na "dependência" -embora a palavra tenha sido escolhida para dar título ao livro. O foco real teria sido "a variabilidade das formas de integração ao mercado mundial", daí sua capacidade de explicar os desdobramentos da história regional e os diversos caminhos trilhados pelos países, até os dias de hoje. De fato, uma das características do estruturalismo é sua capacidade de explicar tudo -inclusive o seu contrário.
Dispostos em ordem cronológica de publicação, os artigos compõem um panorama das sucessivas preocupações que ocuparam a agenda da macropolítica internacional. Desfilam temas como os limites do poderio americano logo após a derrocada socialista; o avanço do livre comércio e o advento da Organização Mundial do Comércio; a mundialização das empresas e das finanças e seu impacto sobre a soberania nacional; as conseqüências do 11 de Setembro, da Doutrina Bush e da invasão do Iraque; a ascensão da China e dos Brics; e as tentativas de firmar um pacto contra o aquecimento global. A edição também envereda pelos temas e pelas questões que demandam atenção mais imediata da política externa brasileira. Nesse flanco estão suas contribuições mais significativas.
"Conflitos de interesse"
O livro não permite traçar um quadro balanceado das mudanças por que passaram a doutrina e a prática da diplomacia nacional no período abrangido. Faltam, para tanto, uma análise e/ou uma defesa sistemática das opções tomadas pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva. O artigo assinado pelo próprio Lula, como candidato à Presidência em 1994, é curto e circunstancial. O texto de Celso Amorim, mais de oito anos depois, trata das afrontas ao multilateralismo e ao sistema da ONU contidas na doutrina dos ataques preventivos. Já alguns artigos de autores associados ao governo de Fernando Henrique Cardoso são bem mais elucidativos a respeito dos padrões e dos conceitos que foram sendo adotados na política externa.
Celso Lafer, em texto publicado em 1998, dá o tom. O que restou em matéria econômica no mundo de hoje -diluídos os embates entre concepções ideológicas- são "conflitos de interesse", argumenta Lafer, que foi chanceler de Fernando Henrique Cardoso. Cabe aos Estados o papel da "intermediação interna e externa desses conflitos de interesse". Acordos amplos firmados por consenso, baseados na confiança entre os países, amparados na transparência e em mecanismos formais de solução de controvérsias seriam o caminho virtuoso dessa globalização. Daí a importância, em especial para o Brasil, de instituições como a Organização Mundial do Comércio. Interesse, comércio, negócios; credibilidade, respeito a contratos e a instituições; aceitação e valorização das regras de mercado. Esse feixe de conceitos norteou a reconfiguração por que passou a política externa -e a política pública de modo geral- brasileira nos anos 1990. O fim da Guerra Fria e a democratização do país concorreram para destronar as forças, à direita e à esquerda, que resistiam à abertura, em nome de um modelo autárquico, nacionalista, de desenvolvimento.
Soçobrou, nessa reviravolta, o pessimismo da Cepal -o órgão da ONU para a América Latina que abrigou a esquerda perseguida pelas ditaduras do continente. "A visão pessimista para induzir à ação", escreve no livro Albert Hirschman, professor da Universidade Princeton e decano dos estudos sobre desenvolvimento comparado, "havia conseguido difundir o pessimismo mais do que incitar à ação". Porque disfarçava, acrescento, num palavrório dito estruturalista, pedante às raias do insuportável, seu inconformismo com o mercado e a esperança distante, quase religiosa, numa transformação profunda da sociedade.
O próprio Fernando Henrique Cardoso escreve um dos últimos -e mais recentes, portanto- artigos publicados na coleção. O propósito é mostrar como seu influente estudo cepalino de 1967 -"Dependência e Desenvolvimento na América Latina", escrito em parceria com o sociólogo chileno Enzo Faletto- discrepava da vulgata das teorias do imperialismo. A ênfase do texto de 40 anos atrás, escreve FHC, não foi na "dependência" -embora a palavra tenha sido escolhida para dar título ao livro. O foco real teria sido "a variabilidade das formas de integração ao mercado mundial", daí sua capacidade de explicar os desdobramentos da história regional e os diversos caminhos trilhados pelos países, até os dias de hoje. De fato, uma das características do estruturalismo é sua capacidade de explicar tudo -inclusive o seu contrário.
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