A Gazeta
Você liga a TV e vê a notícia sobre o novo rombo nos cofres públicos. Abre o jornal e se informa sobre a CPI recém-instalada. Pelo rádio, fica sabendo da "última de Brasília". Os sintomas não deixam a menor dúvida: as instituições políticas brasileiras vivem uma grave crise ética, catalisada, é claro, pelos sucessivos escândalos do Congresso.
Como reflexo, as pessoas vêm perdendo a fé na política e deixando de ver nela o terreno por meio do qual é possível promover transformações positivas em suas vidas. Dessa descrença decorre outro fenômeno ainda mais grave do que a desmobilização: os cidadãos não só se recusam a participar da vida política, como vêm adquirindo um sentimento de repulsa por tudo o que esteja relacionado a ela, a tal ponto que esse desprezo teria virado questão de afirmação social. Contrariamente, as pessoas que ainda enxergam a política como meio de transformações sociais vão ficando isoladas.
Remando contra tudo isso, o sociólogo paulista Marco Aurélio Nogueira sai literalmente "em defesa da política", título de uma de suas obras, publicada em 2001. No livro e nesta entrevista, o professor da Unesp, citado com frequência nos discursos do governador Paulo Hartung, afirma que, por mais desacreditada que esteja a política, é preciso que cada cidadão a pratique cotidianamante e busque aprimorá-la naquilo que está a seu alcance. Até porque, diz o autor, do contrário estaremos caminhando para o caos e a barbárie, num mundo sem respeito às regras, em que o individualismo prevaleceria sobre a coletividade.
Como o senhor define a ideia de política hoje?
A ideia tem uma bifurcação: de um lado, a conquista, a conservação e o uso do poder; do outro, a construção de laços de convivência entre as pessoas. Esses dois sentidos têm convivido ao longo do tempo. No mundo moderno, prevalece o conceito de política associado ao poder. Mas ganhamos mais ao entender que nenhuma comunidade pode se estruturar no mundo atual se não praticar as boas normas da política como construção de espaços coletivos.
Num momento em que atividade política está tão desacreditada, por que ainda defendê-la?
Se quisermos trabalhar com esse conceito mais ampliado, defender a política é defender as próprias condições de sobrevivência da sociedade brasileira. Se, por um passe de mágica, eliminarmos a política da nossa existência, não ficaremos apenas livres do Congresso, dos partidos e dos políticos, mas também de tudo o que nos dá condições para interagirmos de maneira organizada. Vale a pena defendê-la porque, quando falamos em Política com P, estamos falando também de honestidade e lisura. Defender a política contra eventuais atos de corrupção é defender a recuperação dessa dimensão da idoneidade, que permanece extremamente importante.
Apesar de todo o otimismo, o senhor mesmo reconhece que "o quadro geral é de descrença e de desilusão". No caso concreto brasileiro, quais são as consequências imediatas que o senhor observa a partir da crise, em termos de interesse e participação popular?
A principal consequência é o aumento da desilusão. Os maus exemplos dos políticos funcionam como uma dose adicional de jato frio nos cidadãos que já não estão muito empenhados na atividade política. No Brasil e no mundo, vemos um retrocesso das pessoas em termos de engajamento político. O cidadão típico do século XXI não é mais o cidadão disposto a sacrificar uma parte de seu tempo para defender causas de interesse comum. Os jovens, por exemplo, estão muito afastados da política prática, não só em termos de engajamento como de interesse pelos fatos políticos, ainda que possam ter preocupações sociais.
À medida que não depositam mais as expectativas nas instituições políticas, as pessoas se voltam para outras formas de organização, como igrejas, organizações não-governamentais, ou, no caso dos jovens, a internet?
Sim, e isso pode ser traduzido de duas maneiras: tomando particularmente os jovens, porque são a maioria da população brasileira, pode ser uma espécie de fuga para nichos de convivência que de certo modo escapam dos nichos da vida real; por outro lado, há um refluxo em direção à defesa de causas cada vez mais específicas, sintoma de um mundo em que o individualismo prevalece fortemente. As pessoas passam a colocar as suas causas como mais importantes do que as causas dos outros.
O senhor afirma que o mundo atual fez da política "uma espécie de grife", e que "ser contra os políticos é hoje um esporte mundial". Por quê?
Por onde andamos no Brasil, ouvimos as pessoas falarem mal da política e dos políticos. Ser contra os políticos virou indicador de modernidade, como se todos eles fossem sinônimos de atraso e a própria política fosse inconveniente para a modernização da sociedade. Na verdade, vislumbramos um processo de muita afirmação da economia de mercado e do trabalho produtivo contra a política.
Por essa generalização, "não haveria políticos que prestassem". O que há de verdadeiro na afirmação e até que ponto ela não ocultaria um pretexto para o comodismo?
Não há nada de verdadeiro. É uma ideia tosca que aparece como desdobramento desse refluxo a que me referi. As pessoas se desvinculam das questões mais gerais, se aprisionam às questões particulares, e a melhor maneira de justificar isso é atribuir ao conjunto dos políticos uma amoralidade que, por definição, faria com que a política se tornasse algo prejudicial ou até desnecessário para a sociedade.
O fatalismo e a resignação que o senhor observa não seriam um "prato cheio" para a ascensão de populistas?
Sim, é um trampolim para a emergência de lideranças que se apresentam à população como salvadoras da pátria. Isso tem a cara do mundo em que estamos vivendo, onde vários políticos fazem um discurso desse tipo. É como se dissessem: "Não liguem para a má qualidade dos partidos e instituições políticas. Basta que confiem em mim."
Esse conjunto de fatores estaria levando as pessoas ao fenômeno do "esquecimento da política". Mas e quanto aos políticos? Também eles não teriam abandonado a política, em seu sentido original?
Sem dúvida. Não só os políticos, como os partidos e o sistema eleitoral que dá o palco para a sua atuação. Individualmente, eles não podem ser inocentados, o que não quer dizer que não existam bons exemplos de atuação. Mas algo tem que ser feito para que os políticos recuperem um protagonismo eticamente qualificado para ajudar a sociedade a se reencontrar com a política.
"Políticos ruins existirão sempre. Pode acontecer que uma dada classe política se desqualifique por inteiro em determinados momentos e demore para se recuperar." Mesmo não sendo esta sua referência original, o senhor acredita que esse trecho se aplica aos congressistas hoje?
Com certeza, podemos usar isso no mínimo de maneira cautelar. Se essa desqualificação persistir, podemos assistir daqui a alguns anos a uma completa derrocada da classe política. Ela vai se converter em algo que não serve para nada, o que, no limite, pode levar ao suicídio da vida social.
Ao contrário de liquidar a ação política, esse momento de crise pode ter o efeito de renová-la? Se assim for, a crise pode ser considerada positiva?
Estamos hoje, sobretudo com a crise no Senado, assistindo à expansão de uma crise que contém nela mesma uma saída para o país. É perfeitamente razoável pensarmos a crise de um modo mais positivo. Quando um sistema entra em crise, ele precisa optar em algum momento pela vida ou pela morte. E, com a crise mais recente, o sistema político brasileiro se aproximou muito de um ponto de saturação.
Como um pai pode ser um exemplo ético ao filho quando os representantes do povo não o são? Essa decadência ética tende a se refletir no comportamento social?
Esses maus exemplos acabam de algum modo por repercutir no interior das casas. Mas, quando um cidadão comum assiste a todos esses escândalos, do mesmo modo que assiste a guerras e crimes bárbaros, ele pode, em vez de copiar aquilo que vê, fazer o movimento inverso. Ele próprio pode se transformar num bom exemplo para os outros, tanto dentro como fora de casa. Essa situação de descalabro em que a política se encontra pode tanto produzir um mal-estar geral na sociedade (e produz mesmo) como criar um impulso para que cada cidadão se preocupe mais com o que mostrará aos outros.
Um exercício de imaginação: como seria a sociedade se não houvesse mais a política?
Seria o que Thomas Hobbes (filósofo inglês do século XVII) chamou de "Estado de natureza". Uma sociedade sem regras e padrões de vida civilizada, na qual prevaleceria a lei do mais forte, de cada um por si e de ninguém por ninguém.
Como reflexo, as pessoas vêm perdendo a fé na política e deixando de ver nela o terreno por meio do qual é possível promover transformações positivas em suas vidas. Dessa descrença decorre outro fenômeno ainda mais grave do que a desmobilização: os cidadãos não só se recusam a participar da vida política, como vêm adquirindo um sentimento de repulsa por tudo o que esteja relacionado a ela, a tal ponto que esse desprezo teria virado questão de afirmação social. Contrariamente, as pessoas que ainda enxergam a política como meio de transformações sociais vão ficando isoladas.
Remando contra tudo isso, o sociólogo paulista Marco Aurélio Nogueira sai literalmente "em defesa da política", título de uma de suas obras, publicada em 2001. No livro e nesta entrevista, o professor da Unesp, citado com frequência nos discursos do governador Paulo Hartung, afirma que, por mais desacreditada que esteja a política, é preciso que cada cidadão a pratique cotidianamante e busque aprimorá-la naquilo que está a seu alcance. Até porque, diz o autor, do contrário estaremos caminhando para o caos e a barbárie, num mundo sem respeito às regras, em que o individualismo prevaleceria sobre a coletividade.
Como o senhor define a ideia de política hoje?
A ideia tem uma bifurcação: de um lado, a conquista, a conservação e o uso do poder; do outro, a construção de laços de convivência entre as pessoas. Esses dois sentidos têm convivido ao longo do tempo. No mundo moderno, prevalece o conceito de política associado ao poder. Mas ganhamos mais ao entender que nenhuma comunidade pode se estruturar no mundo atual se não praticar as boas normas da política como construção de espaços coletivos.
Num momento em que atividade política está tão desacreditada, por que ainda defendê-la?
Se quisermos trabalhar com esse conceito mais ampliado, defender a política é defender as próprias condições de sobrevivência da sociedade brasileira. Se, por um passe de mágica, eliminarmos a política da nossa existência, não ficaremos apenas livres do Congresso, dos partidos e dos políticos, mas também de tudo o que nos dá condições para interagirmos de maneira organizada. Vale a pena defendê-la porque, quando falamos em Política com P, estamos falando também de honestidade e lisura. Defender a política contra eventuais atos de corrupção é defender a recuperação dessa dimensão da idoneidade, que permanece extremamente importante.
Apesar de todo o otimismo, o senhor mesmo reconhece que "o quadro geral é de descrença e de desilusão". No caso concreto brasileiro, quais são as consequências imediatas que o senhor observa a partir da crise, em termos de interesse e participação popular?
A principal consequência é o aumento da desilusão. Os maus exemplos dos políticos funcionam como uma dose adicional de jato frio nos cidadãos que já não estão muito empenhados na atividade política. No Brasil e no mundo, vemos um retrocesso das pessoas em termos de engajamento político. O cidadão típico do século XXI não é mais o cidadão disposto a sacrificar uma parte de seu tempo para defender causas de interesse comum. Os jovens, por exemplo, estão muito afastados da política prática, não só em termos de engajamento como de interesse pelos fatos políticos, ainda que possam ter preocupações sociais.
À medida que não depositam mais as expectativas nas instituições políticas, as pessoas se voltam para outras formas de organização, como igrejas, organizações não-governamentais, ou, no caso dos jovens, a internet?
Sim, e isso pode ser traduzido de duas maneiras: tomando particularmente os jovens, porque são a maioria da população brasileira, pode ser uma espécie de fuga para nichos de convivência que de certo modo escapam dos nichos da vida real; por outro lado, há um refluxo em direção à defesa de causas cada vez mais específicas, sintoma de um mundo em que o individualismo prevalece fortemente. As pessoas passam a colocar as suas causas como mais importantes do que as causas dos outros.
O senhor afirma que o mundo atual fez da política "uma espécie de grife", e que "ser contra os políticos é hoje um esporte mundial". Por quê?
Por onde andamos no Brasil, ouvimos as pessoas falarem mal da política e dos políticos. Ser contra os políticos virou indicador de modernidade, como se todos eles fossem sinônimos de atraso e a própria política fosse inconveniente para a modernização da sociedade. Na verdade, vislumbramos um processo de muita afirmação da economia de mercado e do trabalho produtivo contra a política.
Por essa generalização, "não haveria políticos que prestassem". O que há de verdadeiro na afirmação e até que ponto ela não ocultaria um pretexto para o comodismo?
Não há nada de verdadeiro. É uma ideia tosca que aparece como desdobramento desse refluxo a que me referi. As pessoas se desvinculam das questões mais gerais, se aprisionam às questões particulares, e a melhor maneira de justificar isso é atribuir ao conjunto dos políticos uma amoralidade que, por definição, faria com que a política se tornasse algo prejudicial ou até desnecessário para a sociedade.
O fatalismo e a resignação que o senhor observa não seriam um "prato cheio" para a ascensão de populistas?
Sim, é um trampolim para a emergência de lideranças que se apresentam à população como salvadoras da pátria. Isso tem a cara do mundo em que estamos vivendo, onde vários políticos fazem um discurso desse tipo. É como se dissessem: "Não liguem para a má qualidade dos partidos e instituições políticas. Basta que confiem em mim."
Esse conjunto de fatores estaria levando as pessoas ao fenômeno do "esquecimento da política". Mas e quanto aos políticos? Também eles não teriam abandonado a política, em seu sentido original?
Sem dúvida. Não só os políticos, como os partidos e o sistema eleitoral que dá o palco para a sua atuação. Individualmente, eles não podem ser inocentados, o que não quer dizer que não existam bons exemplos de atuação. Mas algo tem que ser feito para que os políticos recuperem um protagonismo eticamente qualificado para ajudar a sociedade a se reencontrar com a política.
"Políticos ruins existirão sempre. Pode acontecer que uma dada classe política se desqualifique por inteiro em determinados momentos e demore para se recuperar." Mesmo não sendo esta sua referência original, o senhor acredita que esse trecho se aplica aos congressistas hoje?
Com certeza, podemos usar isso no mínimo de maneira cautelar. Se essa desqualificação persistir, podemos assistir daqui a alguns anos a uma completa derrocada da classe política. Ela vai se converter em algo que não serve para nada, o que, no limite, pode levar ao suicídio da vida social.
Ao contrário de liquidar a ação política, esse momento de crise pode ter o efeito de renová-la? Se assim for, a crise pode ser considerada positiva?
Estamos hoje, sobretudo com a crise no Senado, assistindo à expansão de uma crise que contém nela mesma uma saída para o país. É perfeitamente razoável pensarmos a crise de um modo mais positivo. Quando um sistema entra em crise, ele precisa optar em algum momento pela vida ou pela morte. E, com a crise mais recente, o sistema político brasileiro se aproximou muito de um ponto de saturação.
Como um pai pode ser um exemplo ético ao filho quando os representantes do povo não o são? Essa decadência ética tende a se refletir no comportamento social?
Esses maus exemplos acabam de algum modo por repercutir no interior das casas. Mas, quando um cidadão comum assiste a todos esses escândalos, do mesmo modo que assiste a guerras e crimes bárbaros, ele pode, em vez de copiar aquilo que vê, fazer o movimento inverso. Ele próprio pode se transformar num bom exemplo para os outros, tanto dentro como fora de casa. Essa situação de descalabro em que a política se encontra pode tanto produzir um mal-estar geral na sociedade (e produz mesmo) como criar um impulso para que cada cidadão se preocupe mais com o que mostrará aos outros.
Um exercício de imaginação: como seria a sociedade se não houvesse mais a política?
Seria o que Thomas Hobbes (filósofo inglês do século XVII) chamou de "Estado de natureza". Uma sociedade sem regras e padrões de vida civilizada, na qual prevaleceria a lei do mais forte, de cada um por si e de ninguém por ninguém.
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