Ruy Braga e Wilker Sousa
Revista Cult
“A cada instante em que se consolidou uma explicação sobre o Brasil – histórica, sociológica ou econômica –, nós sempre pudemos contar o trabalho de Chico de Oliveira para a desmontagem, explicação e uma outra compreensão.” A frase de Marilena Chaui parece tocar no ponto central da postura empreendida por Francisco de Oliveira ao longo das últimas décadas. Sociólogo que participou ativamente de momentos decisivos da história recente do país – como a criação do Partido dos Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) –, o pernambucano Chico de Oliveira reafirma a tradição de intelectuais públicos no Brasil.
Imbuído da crítica incisiva, busca estreitar o diálogo com a sociedade brasileira, ao oferecer respostas às questões candentes da contemporaneidade. Dos estudos sobre as periferias, resultou a dialética de atraso e progresso, por meio da qual desmonta análises mais simplificadas da teoria marxista aplicadas à realidade brasileira. De fundador a dissidente do PT, é crítico contumaz da gestão Lula, alegando ser este um governo que simboliza o retrocesso da política nacional.
Chico recebeu a CULT no Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP, instituição na qual detém o título de professor emérito. A importância dos intelectuais públicos na formação do Brasil, o processo de criação do PT e as razões que o levaram a romper com o partido estão entre os temas desta entrevista, na qual o sociólogo desvela seu pensamento contundente, uma vez que, para ele, “a tarefa da crítica é não absolver ninguém”.
Como você analisa o papel da crítica social no Brasil?
Eu diria que somos um pouco franceses. Na França, os intelectuais tiveram um papel relevante na formação da sociedade e até mesmo da nacionalidade. Embora tenhamos o costume de diminuir nossa reflexão sobre o Brasil, eu acho que, sob esse ponto de vista, somos mais franceses do que qualquer outra coisa.
Eu acredito que o Brasil se moldou um pouco dessa forma. Em vários períodos, os intelectuais corresponderam a esse papel e o desempenharam bem. Seria fácil citar nomes. Há intelectuais dos dois lados. Mesmo os autoritários clássicos do começo do século 20 tiveram um papel importantíssimo na política, de moldar a identidade brasileira. De modo que eu procuro me inscrever nessa tradição. Tenho um papel nessa sociedade e procuro cumpri-lo.
Poderíamos chamar essa tradição de “intelectuais públicos”?
Acho que sim, pois esses intelectuais dialogam com o público. Eles têm um papel pedagógico na discussão pública. Pedagógico não no sentido de que vão mandar o povo para a escola, mas sim um papel de balizar qual é o cenário do debate. Isso foi muito importante no Brasil e, na chamada geração moderna, é marcante. Todos os grandes intelectuais foram sociólogos públicos de extremada relevância. Gilberto Freyre, por exemplo, que é o conservador dessa grande plêiade, foi deputado constituinte e fundou dois partidos. Ele ajudou a fundar a esquerda democrática e a UDN, que acabou por ser o partido da direita no Brasil. Sua sociologia não era aquela do recato da casa-grande, mas uma sociologia que dialogava com o público.
Sem contar Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes…
Sim, estou falando apenas do Gilberto porque é o mais suspeito deles, pois era o mais conservador, nostálgico. Caio Prado foi deputado do Partido Comunista, dava cursos para operários; Sérgio Buarque assinou a carta de fundação do PT; Florestan foi deputado federal e constituinte pelo PT, além de ter um papel na discussão da campanha pela escola pública.
Essa é uma tradição que as gerações mais recentes reafirmaram, até mesmo no extremo. Se pensarmos em Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, mesmo que se discorde de suas ideias, ele chegou à presidência da República via seu trabalho intelectual no meio político. Então, é nessa tradição que eu me inscrevo, embora com o coração mais à esquerda.
Você poderia falar de seu papel público na formação do PT e da CUT?
Meu papel não foi tão relevante, mas participei, sim, sem falsa modéstia. Foi um período em que nós nos abrimos para o diálogo com a sociedade. O Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento] foi criado em 1969, eu entrei em 1970 e fiquei lá 25 anos. O centro criou-se fora da universidade e isso foi uma vantagem imediata, porque ficamos de dizer aquilo que não podia ser dito em âmbito universitário.
Tivemos uma interlocução muito forte com os movimentos sociais. Visitávamos constantemente os sindicatos de São Bernardo do Campo (SP) – que eram o epicentro do novo movimento sindical – e havia uma troca real. Não eram intelectuais indo lá ensinar os operários, não se tratava disso. Havia, sim, um diálogo forte e isso foi muito importante, pois alimentou as linhas de trabalho de pesquisa do Cebrap e nos ajudou a tomar posição no espectro político brasileiro da época, que era extremamente repressivo. Aí, eu ajudei a fazer o PT e a CUT. Sem dúvida nem remorso, porque a vida é assim mesmo.
A formação de um partido socialista de massas com um forte braço sindical representava uma novidade em relação a tudo aquilo que se conhecia até então. Como se deu a construção da identidade do partido?
A construção dessa identidade é histórica. A maior parte de nós já tinha a completa consciência de duas coisas: em primeiro lugar, de que o processo do capitalismo contemporâneo não permite mais simplificações, sobretudo sob uma visão embasada no marxismo – simplificações do tipo que a sociedade se dividirá entre proletários e capitalistas. Portanto, ou se está armado da crítica mais radical ou não se pode entender nada.
O segundo aspecto, já bastante avançado em nossa perspectiva, era o fato de que o tipo de solução política dada às questões nas décadas anteriores tinha sido equivocado. Em outras palavras, o stalinismo foi derrotado não pelos erros de Stalin, mas sim pela história, pela complexidade de um mundo que se abriu, de modo que o marxismo engessado não era capaz de compreendê-lo.
E como se deu a formulação teórica para entender esse processo?
Eu vinha de uma tradição mais cepalina [referente à Cepal – Comissão Econômica para a América Latina e Caribe] do que marxista, e me dei conta, de alguma maneira, de que o capitalismo tinha coisas mais complexas do que o esquematismo apontava. Daí surgiu a Crítica à Razão Dualista como uma perspectiva diferente de pensar o processo de crescimento de acumulação na periferia, o que tinha muito a ver com a história brasileira de termos sido colônia.
Esse legado se atualizava permanentemente em todos os avanços que a própria sociedade brasileira fazia. Isso foi muito profícuo para a reflexão. E foi essa reflexão que tentamos trazer para o diálogo público, para a formação dos partidos e da CUT. Então, um pouco da forma especial com que o PT se constituiu tem algo a ver com isso.
Qual foi e qual é a sua intuição sobre o Brasil?
Naquele momento, eu era um cepalino e tive um contato muito estreito com Celso Furtado, o que me influenciou muito. Além do mais, aquele era o pensamento econômico dominante na América Latina. Mas minha experiência de vida me incomodava, dizia que havia alguma coisa que não casava com aquele esquema, por mais rico e heterodoxo que fosse em relação às interpretações clássicas. Havia algo que não batia. A relação entre dominantes e dominados era muito mais complicada do que parecia.
Daí que nasce sua noção da dialética do atraso e do progresso?
Sim, é daí que nasce essa noção. Eu tinha 30 e poucos anos quando cheguei a São Paulo; tinha toda uma vivência no Recife, que era uma cidade com uma tradição de luta operária muito forte. Quando comecei a assimilar o marxismo, isso me levou a entender que a formação do conflito capital-trabalho – conflito básico que move o sistema na perspectiva de Marx – não era uma externalidade do mundo real que eu conhecia. Esse mundo de meeiros, posseiros e latifundiários não era uma externalidade, e talvez estabelecesse diferenças no processo da economia e da sociedade brasileira.
A forma de meação, que era característica da agricultura do Nordeste, não era simplesmente sinal de atraso, devia ser outra coisa. Aí dentro há movimento, há luta de classes sob formas que a teoria não é capaz de reconhecer, mas que levam a outro desenlace: a luta social.
O PT cedeu ao atraso de força modernizadora e isso o coloca no coração dessa dialética do atraso e do moderno?
Coloca, mas coloca pelo avesso. Ultimamente eu tenho discutido uma proposta heterodoxa de que estamos em uma era de hegemonia às avessas, isto é, o dominado conduz a política em benefício do dominante. A maior parte das pessoas rejeita a proposta, dizendo que ela é muito estrambótica.
É uma vanguarda que se converteu ao atraso comida pela vanguarda. Quando o PT se mete a gerenciar o capitalismo em sua fase financeira (que é o que ele está fazendo), é devorado pelo atraso, no sentido de negar as reivindicações da classe trabalhadora e da sociedade brasileira. Ele está sendo comido não pelas forças do atraso, mas sim pelas forças do progresso. É o progresso da acumulação, dominado pelo capital financeiro. É essa a contradição que eu encontro nessa decadência do PT como partido da transformação. Esse é o nó, que é difícil de desfazer.
Não há perspectivas?
Qual é o tipo de revolução que se exige para desfazer esse nó eu não sei. Nem mesmo a luta de classes em suas formas anteriores, tradicionais – naquelas em que o PT soube atuar, transformando uma insatisfação social em luta política –, nem mesmo isso é possível porque a contradição é muito interna ao processo de reprodução da sociedade brasileira.
Há também outra conclusão melancólica: o nível da crítica ao capitalismo no Brasil pela esquerda formal quase inexiste. Tirando o PSTU, para falar em termos das formações partidárias, os outros não têm crítica nenhuma. O que antes nós socialistas achávamos um problema, que é o êxito do capitalismo, hoje não é um problema, como diz o poeta, mas sim uma solução. Então, é difícil conceber as formas da política que possam dar combate e uma solução mais avançada para desfazer esse nó.
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