quarta-feira, 2 de junho de 2010

Crise ecológica, capitalismo, altermundialismo: um ponto de vista ecosocialista



Michael Löwi
Margem Esquerda

Grandezas e limites da ecologia

A grande contribuição da ecologia foi e continua sendo nos fazer tomar consciência dos perigos que ameaçam o planeta como consequência do atual modelo de produção e consumo. O crescimento exponencial das agressões ao meio ambiente e a ameaça crescente de uma ruptura do equilíbrio ecológico configuram um quadro catastrófico que coloca em questão a própria sobrevivência da vida humana. Estamos diante de uma crise de civilização que exige mudanças radicais.

Os ecologistas se enganam se crêem poder abrir mão da crítica marxiana do capitalismo: uma ecologia que não leve em conta a relação entre “produtivismo” e lógica do lucro está destinada ao fracasso – ou pior, à sua recuperação pelo sistema. Os exemplos não faltam... A ausência de uma postura anticapitalista coerente levou a maior parte dos partidos verde europeus – França, Alemanha, Itália, Bélgica – a tornar-se simples parceiro “ecoreformista” da gestão social-liberal do capitalismo pelos governos de centro-esquerda.

Considerando os trabalhadores irremediavelmente destinados ao produtivismo, alguns ecologistas ignoram/descartam o movimento operário e inscrevem em suas bandeiras: “nem esquerda, nem direita”. Ex-marxistas convertidos à ecologia declaram apressadamente “adeus à classe operária” (André Gorz), enquanto outros autores (Alain Lipietz) insistem na necessidade de abandonar o “vermelho” – isto é, o marxismo ou o socialismo – para aderir ao “verde”, novo paradigma que trará uma resposta a todos os problemas econômicos e sociais.

O eco-socialismo

O que é então o eco-socialismo? Trata-se de uma corrente de pensamento e ação ecológicos que toma como suas as aquisições fundamentais do marxismo – ao mesmo tempo que se livra de seus entulhos produtivistas. Para os ecossocialistas a lógica do mercado e do lucro – bem como aquela do defunto do autoritarismo burocrático, o “socialismo real” – são incompatíveis com as exigências de preservação do meio ambiente. Ao mesmo tempo que criticam a ideologia das correntes dominantes do movimento operário, eles sabem que os trabalhadores e suas organizações são uma força essencial para uma transformação radical do sistema e para a construção de uma nova sociedade socialista e ecológica.

Essa corrente está longe de ser politicamente homogênea, mas a maior parte de seus representantes compartilha alguns temas. Rompendo com a ideologia produtivista do progresso – em sua forma capitalista e/ou burocrática – e oposta à expansão ao infinito de um modo de produção e consumo destruidor da natureza, o eco-socialismo representa uma tentativa original de articular as ideias fundamentais do socialismo marxista com as contribuições da crítica ecológica.

O raciocínio eco-socialista se apoia em dois argumentos essenciais: 1) o modo de produção e consumo atual dos países capitalistas avançados, fundado sobre uma lógica de acumulação ilimitada (do capital, dos lucros, das mercadorias), desperdício de recursos, consumo ostentatório e destruição acelerada do meio ambiente, não pode de forma alguma ser estendido para o conjunto do planeta, sob pena de uma crise ecológica maior. Segundo cálculos recentes, se o consumo médio de energia dos EUA fosse generalizado para o conjunto da população mundial, as reservas conhecidas de petróleo seriam esgotadas em 19 dias. Esse sistema está, portanto, necessariamente fundado na manutenção e agravamento da desigualdade entre o Norte e o Sul;

2) de qualquer maneira, a continuidade do “progresso” capitalista e a expansão da civilização fundada na economia de mercado – até mesmo sob esta forma brutalmente desigual – ameaça diretamente, a médio prazo (toda previsão seria arriscada), a própria sobrevivência da espécie humana, em especial por causa das consequências catastróficas da mudança climática.

A racionalidade limitada do mercado capitalista, com seu cálculo imediatista das perdas e lucros, é intrinsecamente contraditória com uma racionalidade ecológica, que leve em conta a temporalidade longa dos ciclos naturais. Não se trata de opor os “maus” capitalistas ecocidas aos “bons” capitalistas verdes: é o próprio sistema, fundado na competição impiedosa, nas exigências de rentabilidade, na corrida pelo lucro rápido, que é destruidor dos equilíbrios naturais. O pretenso capitalismo verde não passa de uma manobra publicitária, uma etiqueta buscando vender uma mercadoria, ou, no melhor dos casos, uma iniciativa local equivalente a uma gota-d’água sobre o solo árido do deserto capitalista.

Contra o fetichismo da mercadoria e a autonomização reificada da economia pelo neoliberalismo, o que está em jogo no futuro para os eco-socialistas é pôr em prática uma “economia moral” no sentido dado por Edward P. Thompson a este termo, isto é, uma política econômica fundada em critérios não monetários e extraeconômicos: em outras palavras, a reconciliação do econômico no ecológico, no social e no político.

As reformas parciais são totalmente insuficientes: é preciso substituir a microrracionalidade do lucro pela macrorracionalidade social e ecológica, algo que exige uma verdadeira mudança de civilização . Isso é impossível sem uma profunda reorientação tecnológica, visando a substituição das fontes atuais de energia por outras não poluentes e renováveis, como a eólica ou solar . A primeira questão colocada é, portanto, a do controle sobre os meios de produção e, principalmente, sobre as decisões de investimento e transformação tecnológica, que devem ser arrancados dos bancos e empresas capitalistas para tornarem-se um bem comum da sociedade.

Certamente, a mudança radical se relaciona não só com a produção, mas também com o consumo. Entretanto, o problema da civilização burguês-industrial não é – como muitas vezes os ecologistas argumentam – “o consumo excessivo” pela população e a solução não é uma “limitação” geral do consumo, sobretudo nos países capitalistas avançados. É o tipo de consumo atual, fundado na ostentação, no desperdício, na alienação mercantil, na obsessão acumuladora, que deve ser colocado em questão.

Ecologia e altermundialismo

Sim, nos responderão, é simpática essa utopia, mas por enquanto é preciso ficar de braços cruzados? Certamente não! É preciso lutar por cada avanço, cada medida de regulamentação, cada ação de defesa do meio ambiente. Cada quilômetro de estrada bloqueado, cada medida favorável aos transportes coletivos é importante; não somente porque retarda a corrida em direção ao abismo, mas porque permite às pessoas, aos trabalhadores, aos indivíduos se organizar, lutar e tomar consciência do que está em jogo nesse combate, de compreender, por sua experiência coletiva, a falência do sistema capitalista e a necessidade de uma mudança de civilização.

É nesse espírito que as forças mais ativas da ecologia estão engajadas, desde o início, no movimento altermundialista. Tal engajamento corresponde à tomada de consciência de que os grandes embates da crise ecológica são planetários e, portanto, só podem ser enfrentados por uma démarche resolutamente cosmopolítica, supranacional, mundial. O movimento altermundialista é sem dúvida o mais importante fenômeno de resistência antisistêmica do início do século XXI.

Essa vasta nebulosa, espécie de “movimento dos movimentos” que se manifesta de forma visível nos Fóruns Sociais – regionais e mundiais – e nas grandes manifestações de protesto – contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), o G8 ou a guerra imperial no Iraque – não corresponde às formas habituais de ação social ou política. Ampla rede descentralizada, ele é múltiplo, diverso e heterogêneo, associando sindicatos operários e movimentos camponeses, ONGs e organizações indígenas, movimentos de mulheres e associações ecológicas, intelectuais e jovens ativistas. Longe de ser uma fraqueza, essa pluralidade é uma das fontes da força, crescente e expansiva, do movimento.

Pode-se afirmar que o ato de nascimento do altermundialismo foi a grande manifestação popular que fez fracassar a reunião da OMC em Seattle, em 1999. A cabeça visível desse combate era a convergência surpreendente de duas forças: turtles and teamsters, ecologistas vestidos de tartarugas (espécie ameaçada de extinção) e sindicalistas do setor de transportes. Portanto, a questão ecológica estava presente, desde o início, no coração das mobilizações contra a globalização capitalista neoliberal. A palavra de ordem central desse movimento, “o mundo não é uma mercadoria”, visa também, evidentemente, o ar, a água, a terra, isto é, o ambiente natural, cada vez mais submetido aos ditames do capital.

Podemos afirmar que o altermundialismo comporta três momentos: 1) o protesto radical contra a ordem existente e suas sinistras instituições: o FMI, o Banco Mundial, a OMC, o G8; 2) um conjunto de medidas concretas, propostas passíveis de serem imediatamente realizadas: a taxação dos capitais financeiros, a supressão da dívida do Terceiro Mundo, o fim das guerras imperialistas; 3) a utopia de um “outro mundo possível”, fundado sobre valores comuns como liberdade, democracia participativa, justiça social e defesa do meio ambiente.

A dimensão ecológica está presente nesses três momentos: ela inspira tanto a revolta contra um sistema que conduz a humanidade a um trágico impasse, quanto um conjunto de propostas precisas – moratória sobre os OGMs (Organismos Geneticamente Modificados), desenvolvimento de transportes coletivos gratuitos –, bem como a utopia de uma sociedade vivendo em harmonia com os eco-sistemas, esboçada pelos documentos do movimento. Isso não quer dizer que não existam contradições, fruto tanto da resistência de setores do sindicalismo às reivindicações ecológicas, percebidas como uma “ameaça ao emprego”, quanto da natureza míope e pouco social de algumas organizações ecológicas. Mas uma das características mais positivas dos Fóruns Sociais, e do altermundialismo em seu conjunto, é a possibilidade do encontro, debate, diálogo e da aprendizagem recíproca de diferentes tipos de movimentos.

É preciso acrescentar que o próprio movimento ecológico está longe de ser homogêneo: é muito diverso e contem um espectro que vai desde ONGs moderadas habituadas ao lobby como forma de pressão, até os movimentos combativos inseridos num trabalho de base militante; da gestão “realista” do Estado (no nível local ou nacional) às lutas que colocam em questão a lógica do sistema; da correção dos “excessos” da economia de mercado às iniciativas de orientação eco-socialista.

Essa heterogeneidade caracteriza, diga-se de passagem, todo o movimento altermundialista, mesmo com a predominância de uma sensibilidade anticapitalista, sobretudo na América Latina. É a razão pela qual o Fórum Social Mundial, precioso lugar de encontro – como explica tão bem nosso amigo Chico Whitaker – onde diferentes iniciativas podem fincar raízes, não pode se tornar um movimento sociopolítico estruturado, com uma “linha” comum, resoluções adotadas por maioria etc.

É importante sublinhar que a presença da ecologia no “movimento dos movimentos” não se limita às organizações ecológicas – Greenpeace, WWF, entre outras. Ela se torna cada vez mais uma dimensão levada em conta, na ação e reflexão, por diferentes movimentos sociais, camponeses, indígenas, feministas, religiosos (Teologia da Libertação).

Um exemplo impressionante dessa integração “orgânica” das questões ecológicas por outros movimentos é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que, com seus camaradas da rede internacional Via Campesina, é um dos pilares do Fórum Social Mundial e do movimento altermundialista. Hostil desde sua origem ao capitalismo e sua expressão rural, o agronegócio, o MST integrou cada vez mais a dimensão ecológica no seu combate por uma reforma agrária radical e um outro modelo de agricultura. Durante a celebração do vigésimo aniversário do movimento, no Rio de Janeiro em 2005, o documento dos organizadores declarava: nosso sonho de “um mundo igualitário, que socialize as riquezas materiais e culturais”, um novo caminho para a sociedade, “fundado na igualdade entre os seres humanos e nos princípios ecológicos”.

Isto se traduziu nas ações – por diversas vezes à margem da “legalidade” – do MST contra os OGMs, o que é tanto um combate contra a tentativa das multinacionais – Monsanto, Syngenta – de controlar totalmente as sementes, submetendo os camponeses à sua dominação, como uma luta contra um fator de poluição e contaminação incontrolável do campo. Assim, graças a uma ocupação “selvagem”, o MST obteve em 2006 a expropriação do campo de milho e soja transgênicos da Syngenta Seeds no Estado do Paraná, que se tornou o assentamento camponês Terra Livre. É preciso mencionar também seu enfrentamento às multinacionais de celulose que multiplicam, sobre centenas de milhares de hectares, verdadeiros “desertos verdes”, florestas de eucaliptos (monocultura) que secam todas as fontes d’água e destroem toda a biodiversidade. Esses combates são inseparáveis, para os quadros e ativistas do MST, de uma perspectiva anticapitalista radical.

As cooperativas agrícolas do MST desenvolvem, cada vez mais, uma agricultura biologicamente preocupada com a biodiversidade e com o meio ambiente em geral, constituindo assim exemplos concretos de uma forma de produção alternativa. Em julho de 2007, o MST e seus parceiros do movimento Via Campesina organizaram em Curitiba uma Jornada de Agroecologia, com a presença de centenas de delegados, engenheiros agrônomos, universitários e teólogos da libertação (Leonardo Boff, Frei Betto).

Naturalmente, essas experiências de luta não se limitam ao Brasil, sendo encontradas sob formas diferentes em muitos outros países, não apenas no Terceiro Mundo, constituindo-se numa parte significativa do arsenal combativo do altermundialismo e da nova cultura cosmopolítica da qual ele é um dos portadores.

O fracasso retumbante da Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança Climática, de dezembro de 2009, confirma mais uma vez, para quem ainda tinha dúvidas, a incapacidade de governos à serviço dos interesses do capital em enfrentar o problema. Em vez de um acordo internacional obrigatório, com reduções substanciais de emissões de gazes com efeito estufa nos países industrializados – um mínimo de 40% seria necessário – seguida de medidas mais modestas nos países emergentes (China, Índia, Brasil), os Estados Unidos impuseram, com o apoio da Europa e a cumplicidade da China, uma “declaração” completamente vazia, que faz senão reiterar o óbvio : precisamos impedir que a temperatura do planeta suba mais de 2°C.

A única esperança é o movimento social, altermundialista e ecológico, que se expressou em Copenhagen numa grande manifestação de rua – 100 mil pessoas – com o apoio de Evo Morales, cujas declarações anticapitalistas sem ambiguidades foram uma das poucas expressões criticas na conferencia “oficial”. Os manifestantes, assim como o Fórum alternativo KlimaForum, levantaram a palavra de ordem “Mudemos o sistema, não o clima!” Evo Morales convocou um encontro de governos progressistas e movimentos sociais em Cochabamba (abril de 2010) com o objetivo de organizar a luta para salvar a Mãe-Terra, a Pacha-Mama, da destruição capitalista.

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