Observatório das Metrópoles
Os últimos acontecimentos no Rio de Janeiro nos interpelam. Muitos incidentes climáticos têm assolado as nossas cidades brasileiras nos últimos tempos. Chuvas, inundações, deslizamentos, engarrafamentos maiores do que os normais, mortes, desabrigados, enfim inúmeros infortúnios vêm assolando as nossas cidades. Diante das chocantes e até mesmo dantescas cenas mostradas em tempo real pela televisão, as autoridades são convocadas para explicações. Invariavelmente as razões alegadas são as mesmas: a combinação de eventos climáticos incomuns, fora dos padrões previstos, uma um meio geográfico também considerado incomum para a existência de uma cidade (montanhas, rios, lagoas e, no caso do Rio de Janeiro, praia) e a irracionalidade da população que teima ocupar áreas impróprias ao uso residencial e não cuidar adequadamente dos resíduos sólidos dos seus lixos. Prefeitos e Governadores mostram-se chocados e tratam de acalmar a população fazendo funcionar de maneira emergencial a máquina administrativa da assim chamada Defesa Civil. São realizadas verdadeiras operações semelhantes às situações de exceção, como nas guerras, nos atentados terroristas e outras situações de calamidade pública. Engenheiros, bombeiros, policiais e outros corpos técnicos de emergência são mobilizados de maneira excepcional pelas autoridades públicas para diminuir os estragos e, de alguma forma, acalmar o natural sentimento de desamparo da população.
Se o estado de emergência se faz obviamente necessário, onde está o problema? Não é novidade para ninguém que as nossas cidades são organizadas por práticas totalmente à margem da regulação pública, dos planos diretores, das leis de uso e ocupação do solo urbano, dos códigos de construção e de posturas. Um verdadeiro laissez faire impera como fundamento da “irracionalidade” mencionada pelas autoridades. “Irracionalidade” que não está presente apenas nos territórios das classes populares. Em todas as cidades brasileiras também encontramos as elites residindo em artefatos imobiliários (condomínios-fechados e seus congêneres) construídos em áreas ambientalmente vulneráveis de acordo com uma lógica especulativa. No Rio de Janeiro, por exemplo, 69,7% das áreas ocupadas acima dos 100 metros de altitude (cota 100) no município - um total de 11,7 milhões de metros quadrados - estão nas mãos das classes média e alta, segundo dados do Instituto Pereira Passo (IPP). Por outro lado, apenas 30% são de favelas. Em termos populacionais, a relação se inverte: 73,5% são moradores de favela. Os territórios dos ricos e dos pobres compõem conjuntamente o mosaico da desordem urbana.
Os fenômenos climáticos, por sua vez, são hoje previstos com a precisão e antecipação que permitiriam a adoção de ações preventivas pelos governos municipais e estaduais que poderiam senão evitar algumas destas catástrofes, pelo menos minimizar bastante os custos materiais e humanos. Conhecendo a vulnerabilidade das áreas ocupadas através de mapeamentos por satélites e sabendo com antecedência a ocorrência dos incidentes climáticos, as Prefeituras e os Governos Estaduais poderiam ter planos de emergência de defesa civil que protegessem a população. Advertindo as pessoas que moram nestas áreas dos eventos previstos e oferecendo alternativas de moradias, formas de evacuação de áreas, etc. Da mesma maneira, a circulação viária poderia ser alterada por um sistema de alerta preventivo, evitando que as pessoas saindo ou indo para o trabalho fossem surpreendidas pelo transbordamento de canais, rios e lagoas.
Mas não se tem um sistema de defesa civil que proteja efetivamente a população. A razão decorre da lógica de gestão das nossas cidades. Os governos municipais e estaduais são hoje comandados por elites que se orientam por uma concepção gerencial, que pretendem tratar as cidades como se fossem empresas. Na maioria dos casos, esta orientação se materializa na constituição de bolsões de gerência técnica, diretamente vinculados aos chefes do executivo e compostos por pessoas recrutadas fora do setor público. Este modelo de empresariamento urbano, que se pretende mais eficiente, implica no abandono e mesmo desvalorização da organização burocrática cuja função é, de um lado, a aplicação dos mecanismos de regulação da produção da cidade, portanto o planejamento do funcionamento e crescimento da cidade. Os salários dos funcionários são aviltados, suas carreiras perdem prestígios, não são capacitados, os cadastros são abandonados e mesmo a base técnica dos órgãos públicos é fragilizada. Por outro lado, como ela é também responsável pela provisão de serviços urbanos básicos para a população, mobiliza recursos e é titular de competências de grande utilidade na viabilização da gramática política do clientelismo, do cartorialismo e do corporativismo que sustenta em termos político-eleitoral os projetos de empresariamento urbano comandado pelas novas elites políticas. Recursos e competências desta burocracia são usados como moeda de troca nas transações que dão sustentação política a estas elites modernizantes, na forma de favores, omissões, proteções, cargos, prebendas, etc.
Se é verdade, portando, que estas catástrofes são geradas por incidentes climáticos fora do comum, os seus efeitos resultam de um padrão muito comum de gestão das nossas cidades, onde o planejamento, a regulação e a rotina das ações são substituídos por um padrão de operações por exceções, com organismos públicos fragilizados tentando responder casualmente aos efeitos sobre a população de uma cidade em situação de indefesa permanente. Estamos diante dos resultados de uma catastrófica gestão urbana.
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