Luiz Sérgio Henriques
Gramsci e o Brasil
Presidente da Fundação Instituto Gramsci, em Roma, e ensaísta de mérito reconhecido internacionalmente, Giuseppe Vacca reaparece entre nós com um novo título que é quase uma provocação, no melhor sentido da palavra. Retirando do limbo uma expressão que entre os marxistas teve historicamente o sentido de uma “capitulação de classe” ou coisa pior, Vacca defende explicitamente, para as esquerdas, a atualidade de uma estratégia reformista não só para o seu país, como também, é de se presumir, para a generalidade dos países em que se trava a luta política em termos efetivamente contemporâneos. A marca deste novo reformismo é a explícita assimilação das tarefas de governo e das responsabilidades a elas inerente: e, segundo o paradigma que abraça, cujos antepassados mais distintos remontam aos anos trinta do século passado, classe e nação não se põem como termos antagônicos, mas aparecem reconciliados: partidos e movimentos que interpretam o antagonismo social estão desafiados a atuarem no plano no interesse nacional, dando respostas positivas — no quadro do Estado Democrático de Direito — aos problemas de toda a sociedade.
O novo reformismo de que fala Vacca afasta-se assim de qualquer veleidade maximalista e, muito consequentemente, deve afirmar-se doravante mais ou menos polemicamente contra uma esquerda dita alternativa ou radical, mas sem capacidade de governo e de síntese política própria das funções dirigentes. Fornece, mais amplamente, alguns critérios para avaliar a história do século XX, que não deve ser vista como um mero terreno de contraposição entre capitalismo e socialismo, entendidos como “campos” que combateram mortalmente guerras abertas ou “frias”, com a vitória final de um deles.
De resto, o reformismo que interessa ao autor tem seu ato de nascimento, nos anos 1930, como uma alternativa à “guerra civil europeia” entre nazistas e bolcheviques, quando a experiência comunista das frentes populares — retirado o caráter instrumental que tal política teve quase sempre sob a política stalinista — pôde colaborar, em alguns momentos decisivos, com socialistas, tal como aconteceu na Itália e sobretudo na França. E é a luz deste projeto que o autor reinterpreta contribuições vitais, como os Cadernos do cárcere, de Antonio Gramsci, ou um texto comparativamente de menor alcance, mas nem por isso menos importante do ponto de vista político, como as togliattianas Lições sobre o fascismo, de 1935.
Mas o autor pretende ainda sair do âmbito restrito da tradição comunista e, num movimento que dá fôlego ao seu pensamento, alude explicitamente ao “universalismo rooseveltiano”: à visão da luta contra o fascismo de que era portadora a elite política americana e, também, à visão desta mesma elite sobre as relações internacionais que deveriam se seguir à derrota do fascismo. Não é aqui diminuída a importância da URSS no combate ao fascismo: “apenas” se reconhece, realisticamente, que aquele modelo político, nascido sob o particular signo da “revolução passiva” staliniana, só pela força poderia se expandir aos países do entorno soviético, sem dispor de nenhuma força de atração sobre os países ocidentais. Mas não só isso. O autor alude a experiências concretas da socialdemocracia e do trabalhismo no período entre as duas guerras, muito especialmente no caso da Inglaterra, da Bélgica e da Suécia. Bem antes do modelo keynesiano que se generalizaria nos “anos dourados” do capitalismo do segundo pós-guerra, os reformistas destes países lançaram as sementes do reformismo moderno, ao distinguirem as possibilidades de uma nova regulação do mundo da economia, até então estruturado segundo os procedimentos do liberalismo e as regras “espontâneas” do mercado.
É neste quadro que se insere uma das teses mais significativas do livro. Vacca propõe-se ir além do “finalismo socialista” e da filosofia da história determinista que lhe é inevitavelmente conexa. A experiência daquelas três socialdemocracias e, mais em geral, as diversas tentativas de domar o mercado capitalista em crise fizeram nascer a ideia de que “capitalismo e socialismo referem-se a dois planos diversos da realidade e não são comparáveis: o capitalismo é um modo de produção, o socialismo é um critério de regulação do sistema econômico, que, portanto, não se contrapõe ao primeiro, mas propõe-se orientá-lo. Para superar este falso dilema, foi necessário elaborar o conceito de regulação, e, naturalmente, não estamos falando de elaboração puramente intelectual, mas de experiência histórica concreta. Aproximamo-nos, assim, do ato de nascimento do reformismo: a crise dos anos trinta e a invenção de um ‘modo de regulação’ do desenvolvimento alternativo ao do velho liberalismo, que entra em colapso” (p. 191).
Se de regulação se trata — e regulação capaz de expressar e induzir níveis sempre mais altos de produção material da vida e de sociabilidade humana —, os defensores da estratégia reformista devem ter a percepção de que uma teoria geral das crises é possível e não deriva de, ou desemboca em, uma visão rupturista ou catastrófica da política e da economia. Esta teoria geral, segundo o autor, está presente nos escritos de Antonio Gramsci, especialmente quando focalizam a primeira grande guerra e os anos que se seguem como um período de crise continuada, cuja raiz última reside no contraste entre o caráter cada vez mais internacional da economia e as soluções políticas mesquinhamente nacionais que se implementaram, e muitas vezes hoje ainda se implementam, na tentativa de sanar os desequilíbrios globais.
A esquerda italiana — pelo menos aquela parte da esquerda em nome da qual quer falar o autor — tentou continuadamente sair do âmbito do reformismo comunista nacional, encarnado pelo velho PCI, e adotar a Europa como cenário das suas ações e iniciativas. Falhas e deficiências à parte, este ainda é o horizonte mais plausível para uma nova regulação democrática dos fatos econômicos, bem como uma fonte de inspiração para a esquerda de outros quadrantes: sem abdicar do interesse nacional e das iniciativas que se devem tomar imediatamente no âmbito do Estado-nação, a busca de uma perspectiva cosmopolita, supranacional, é parte constitutiva da nova investigação em curso. E achar em cada caso a melhor combinação entre interesse nacional e forças que se movimentam externamente é um elemento da regulação democrática que deve ser conscientemente assumido, tendo em vista o cenário de desastre que conclui estes anos de (des)regulação neoliberal dos mercados e supremacia dos “espíritos animais” do capitalismo.
A insistência no termo “democracia” aqui não é casual. O último grande impacto das “ideias italianas” entre nós foi por ocasião do eurocomunismo de Berlinguer e do Gramsci filtrado pela tradição togliattiana, e isso nos já distantes anos setenta. Foi quando, por exemplo, circulou amplamente nos círculos da esquerda, muito especialmente do então PCB, a expressão berlingueriana da “democracia (política, não ‘burguesa’) como valor universal”. Certa ou erradamente, para o bem ou para o mal, a cultura política do novo partido em ascensão na esquerda guardava muito pouca relação com aquele conjunto de ideias, que propunha uma reforma democrática do caráter “prussiano” do capitalismo e da sociedade brasileira como a estratégia mais plausível de superação dos muitos elementos de atraso mantidos na peculiar modernização conservadora que atravessa a nossa história e que, não por acaso, se viu reforçada com o regime de 1964.
Acredito que o livro de Vacca dá um alento renovado àquelas ideias e reata o fio um tanto perdido nestes tempos de desorientação. Refiro-me especialmente aos muitos momentos em que assinala a democracia como o único terreno político no qual todos os atores — de direita, centro ou de esquerda — devem se mover, ou até devem ser levados por força das coisas a se mover, no caso de as suas culturas e valores carregarem vestígios mais ou menos fortes de concepções autoritárias da política, o que está longe de ser incomum na esquerda.
O Estado Democrático de Direito surge assim como uma forma alta de convivência, não como reflexo ilusório da dominação burguesa ou do “indivíduo abstrato” próprio da sua sociabilidade. Produto de duríssimas lutas históricas, esse tipo de Estado, na visão de Vacca, desconhece “classes gerais” e refuta a apropriação da máquina do Estado por uma classe ou um partido que supostamente represente uma classe ou bloco de classes portadoras do “sentido último” da história. Só reconhece partidos, associações e outras formas de subjetividade constitucionalmente definidas, estimulando classes e grupos sociais que neles legitimamente se reconheçam a elaborarem visões diferentes do bem-comum, cuja disputa privilegie o elemento consensual e hegemônico, em detrimento do elemento força ou violência. Assume-se sempre e tão-só o governo, incide-se inevitavelmente sobre relações de força na sociedade, mas não se busca um abstrato “poder” a partir do qual se reorganize arbitrariamente o mundo, extremando autoritariamente o político. Mudanças constitucionais são possíveis, mas na forma democrática do Estado não se toca. Consenso e liberdades, hegemonia e pluralismo democrático são termos incontornáveis da moderna disputa política e da investigação teórica mais avançada, a não ser que se opte anacronicamente por autoritarismos mais ou menos disfarçados.
Todo este novo reformismo de Vacca, ao apresentar cristalinamente as razões mais seguras de uma esquerda democrática, passa a impressão de que não fala apenas da Itália ou da Europa e seus problemas. Fala também, e ao mesmo tempo, da nossa história presente de brasileiros e sul-americanos.
O novo reformismo de que fala Vacca afasta-se assim de qualquer veleidade maximalista e, muito consequentemente, deve afirmar-se doravante mais ou menos polemicamente contra uma esquerda dita alternativa ou radical, mas sem capacidade de governo e de síntese política própria das funções dirigentes. Fornece, mais amplamente, alguns critérios para avaliar a história do século XX, que não deve ser vista como um mero terreno de contraposição entre capitalismo e socialismo, entendidos como “campos” que combateram mortalmente guerras abertas ou “frias”, com a vitória final de um deles.
De resto, o reformismo que interessa ao autor tem seu ato de nascimento, nos anos 1930, como uma alternativa à “guerra civil europeia” entre nazistas e bolcheviques, quando a experiência comunista das frentes populares — retirado o caráter instrumental que tal política teve quase sempre sob a política stalinista — pôde colaborar, em alguns momentos decisivos, com socialistas, tal como aconteceu na Itália e sobretudo na França. E é a luz deste projeto que o autor reinterpreta contribuições vitais, como os Cadernos do cárcere, de Antonio Gramsci, ou um texto comparativamente de menor alcance, mas nem por isso menos importante do ponto de vista político, como as togliattianas Lições sobre o fascismo, de 1935.
Mas o autor pretende ainda sair do âmbito restrito da tradição comunista e, num movimento que dá fôlego ao seu pensamento, alude explicitamente ao “universalismo rooseveltiano”: à visão da luta contra o fascismo de que era portadora a elite política americana e, também, à visão desta mesma elite sobre as relações internacionais que deveriam se seguir à derrota do fascismo. Não é aqui diminuída a importância da URSS no combate ao fascismo: “apenas” se reconhece, realisticamente, que aquele modelo político, nascido sob o particular signo da “revolução passiva” staliniana, só pela força poderia se expandir aos países do entorno soviético, sem dispor de nenhuma força de atração sobre os países ocidentais. Mas não só isso. O autor alude a experiências concretas da socialdemocracia e do trabalhismo no período entre as duas guerras, muito especialmente no caso da Inglaterra, da Bélgica e da Suécia. Bem antes do modelo keynesiano que se generalizaria nos “anos dourados” do capitalismo do segundo pós-guerra, os reformistas destes países lançaram as sementes do reformismo moderno, ao distinguirem as possibilidades de uma nova regulação do mundo da economia, até então estruturado segundo os procedimentos do liberalismo e as regras “espontâneas” do mercado.
É neste quadro que se insere uma das teses mais significativas do livro. Vacca propõe-se ir além do “finalismo socialista” e da filosofia da história determinista que lhe é inevitavelmente conexa. A experiência daquelas três socialdemocracias e, mais em geral, as diversas tentativas de domar o mercado capitalista em crise fizeram nascer a ideia de que “capitalismo e socialismo referem-se a dois planos diversos da realidade e não são comparáveis: o capitalismo é um modo de produção, o socialismo é um critério de regulação do sistema econômico, que, portanto, não se contrapõe ao primeiro, mas propõe-se orientá-lo. Para superar este falso dilema, foi necessário elaborar o conceito de regulação, e, naturalmente, não estamos falando de elaboração puramente intelectual, mas de experiência histórica concreta. Aproximamo-nos, assim, do ato de nascimento do reformismo: a crise dos anos trinta e a invenção de um ‘modo de regulação’ do desenvolvimento alternativo ao do velho liberalismo, que entra em colapso” (p. 191).
Se de regulação se trata — e regulação capaz de expressar e induzir níveis sempre mais altos de produção material da vida e de sociabilidade humana —, os defensores da estratégia reformista devem ter a percepção de que uma teoria geral das crises é possível e não deriva de, ou desemboca em, uma visão rupturista ou catastrófica da política e da economia. Esta teoria geral, segundo o autor, está presente nos escritos de Antonio Gramsci, especialmente quando focalizam a primeira grande guerra e os anos que se seguem como um período de crise continuada, cuja raiz última reside no contraste entre o caráter cada vez mais internacional da economia e as soluções políticas mesquinhamente nacionais que se implementaram, e muitas vezes hoje ainda se implementam, na tentativa de sanar os desequilíbrios globais.
A esquerda italiana — pelo menos aquela parte da esquerda em nome da qual quer falar o autor — tentou continuadamente sair do âmbito do reformismo comunista nacional, encarnado pelo velho PCI, e adotar a Europa como cenário das suas ações e iniciativas. Falhas e deficiências à parte, este ainda é o horizonte mais plausível para uma nova regulação democrática dos fatos econômicos, bem como uma fonte de inspiração para a esquerda de outros quadrantes: sem abdicar do interesse nacional e das iniciativas que se devem tomar imediatamente no âmbito do Estado-nação, a busca de uma perspectiva cosmopolita, supranacional, é parte constitutiva da nova investigação em curso. E achar em cada caso a melhor combinação entre interesse nacional e forças que se movimentam externamente é um elemento da regulação democrática que deve ser conscientemente assumido, tendo em vista o cenário de desastre que conclui estes anos de (des)regulação neoliberal dos mercados e supremacia dos “espíritos animais” do capitalismo.
A insistência no termo “democracia” aqui não é casual. O último grande impacto das “ideias italianas” entre nós foi por ocasião do eurocomunismo de Berlinguer e do Gramsci filtrado pela tradição togliattiana, e isso nos já distantes anos setenta. Foi quando, por exemplo, circulou amplamente nos círculos da esquerda, muito especialmente do então PCB, a expressão berlingueriana da “democracia (política, não ‘burguesa’) como valor universal”. Certa ou erradamente, para o bem ou para o mal, a cultura política do novo partido em ascensão na esquerda guardava muito pouca relação com aquele conjunto de ideias, que propunha uma reforma democrática do caráter “prussiano” do capitalismo e da sociedade brasileira como a estratégia mais plausível de superação dos muitos elementos de atraso mantidos na peculiar modernização conservadora que atravessa a nossa história e que, não por acaso, se viu reforçada com o regime de 1964.
Acredito que o livro de Vacca dá um alento renovado àquelas ideias e reata o fio um tanto perdido nestes tempos de desorientação. Refiro-me especialmente aos muitos momentos em que assinala a democracia como o único terreno político no qual todos os atores — de direita, centro ou de esquerda — devem se mover, ou até devem ser levados por força das coisas a se mover, no caso de as suas culturas e valores carregarem vestígios mais ou menos fortes de concepções autoritárias da política, o que está longe de ser incomum na esquerda.
O Estado Democrático de Direito surge assim como uma forma alta de convivência, não como reflexo ilusório da dominação burguesa ou do “indivíduo abstrato” próprio da sua sociabilidade. Produto de duríssimas lutas históricas, esse tipo de Estado, na visão de Vacca, desconhece “classes gerais” e refuta a apropriação da máquina do Estado por uma classe ou um partido que supostamente represente uma classe ou bloco de classes portadoras do “sentido último” da história. Só reconhece partidos, associações e outras formas de subjetividade constitucionalmente definidas, estimulando classes e grupos sociais que neles legitimamente se reconheçam a elaborarem visões diferentes do bem-comum, cuja disputa privilegie o elemento consensual e hegemônico, em detrimento do elemento força ou violência. Assume-se sempre e tão-só o governo, incide-se inevitavelmente sobre relações de força na sociedade, mas não se busca um abstrato “poder” a partir do qual se reorganize arbitrariamente o mundo, extremando autoritariamente o político. Mudanças constitucionais são possíveis, mas na forma democrática do Estado não se toca. Consenso e liberdades, hegemonia e pluralismo democrático são termos incontornáveis da moderna disputa política e da investigação teórica mais avançada, a não ser que se opte anacronicamente por autoritarismos mais ou menos disfarçados.
Todo este novo reformismo de Vacca, ao apresentar cristalinamente as razões mais seguras de uma esquerda democrática, passa a impressão de que não fala apenas da Itália ou da Europa e seus problemas. Fala também, e ao mesmo tempo, da nossa história presente de brasileiros e sul-americanos.
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