Carta Maior
Desde outubro de 2012, e especialmente desde o dia 8/11/2012, as relações entre Israel e as autoridades que controlam a Faixa de Gaza entraram em colapso. As fricções de fronteira – na maioria das vezes entre patrulhas do Tsahal (Exercito israelense) e grupos de resistentes (nego aqui, na esteira da Assembleia Geral da ONU o epíteto de “terroristas”, como não chamaria os judeus que lutaram contra os ingleses de terroristas) trocam, de um lado pedradas, tiros e foguetes contra artilharia blindada e raids de aviões de combate). Nada novo. Nada tristemente fora do comum na região. Também nada de novo no lançamento de foguetes da Faixa de Gaza contra o sul de Israel – numa tentativa de mostrar a fúria dos habitantes de Gaza contra o fechamento das fronteiras, o bloqueio naval e aéreo, além do fechamento comercial da área desde 2005.
Gaza, com seus 1.6 milhões de habitantes, tornara-se desde a desocupação por Israel na maior prisão do mundo - são 362 km². Para 1.6 milhões de pessoas, sem serviços e sem trabalho. Havia, contudo, um certo cuidado de ambas as partes. Um tentativa de evitar a “escalada”. Depois de 8 de novembro tudo isso desmoronou... Por que?
Por que a atual escalada?
De forma sistemática, meticulosa, o Tsahal patrulha a estreita fronteira entre Gaza e Israel em busca de túneis subterrâneos que permitam a entrada em território de Israel. O bloqueio imposto por Israel obriga a construção constante de túneis, por onde chega até 80% dos produtos de consumo de Gaza – e também armas para a resistência. O Egito, de acordo com os tratados assinados com Israel, também construiu uma cerca, com 11 km de extensão e 18 metros de profundidade, completando o isolamento de 1.6 milhões de pessoas. O cerco a Gaza é, de longe, muito pior que o bloqueio de Cuba, do Irã ou da Coréia do Norte, posto que nem navios com cargas humanitárias sob bandeira europeia ou turca podem chegar ao porto de Gaza City.
No dia 8 de novembro de 2012 um grupo de adolescentes, como de praxe (ligados a uma organização de resistência chamada “Comitês de Resistência Popular”) lançou pedras e paus contra uma patrulha do Tsahal, composta de quatro carros blindados e um bulldozer (para derrubar ou fechar túneis, por onde, segundo Israel passariam “terroristas” para atacar Israel). A patrulha israelense invadiu o território e Gaza e fez fogo sobre o grupo de adolescentes. Um menino de 12 anos foi morto. Organizações palestinas em Gaza, mas não o Hamas, retaliaram lançando foguetes sobre Israel. Primeiro contra as cidades fronteiriças e depois atingindo mesmo a grande Tel Aviv.
Tais armas – foguetes – são armas de fácil fabricação local e algumas contrabandeadas pelo Irã. Não são mísseis (como afirmou esta semana o presidente Obama e o Governo Netanyahu, distorcendo os fatos), não possuem instrumentos de navegação e fazem vítimas indiscriminadas quanto apontadas para grandes centros urbanos. Israel respondeu com ataques aéreos e mísseis, em larga escala, atingindo alvos do Hamas, de outras entidades de resistência e a população civil. O saldo até o momento é brutal: 5 cidadãos de Israel mortos, 133 palestinos mortos e centenas de feridos. Dos mortos palestinos 40% são crianças, mulheres e velhos. Não há, como foi dito, “assimetria” (isso é outra coisa em Assuntos Militares). O que houve foi uso desproporcional e brutal de força. Segundo o ministro israelense Eli Yshian, do partido Shas, o objetivo era levar Gaza “de volta para a Idade Média”!
Entre os mortos palestinos destaca-se o Comandante Ahmed al-Jaabari, que vinha nas últimas semanas negociando, em segredo, com o negociador israelense Gershon Baskin – o mesmo que negociou com o Hamas a libertação do soldado israelense Gilad Shalit. A morte de Ahmed al-Jaabari, em 15 de novembro de 2012, o comandante militar do Hamas e que negociava um acordo com Tel Aviv, escala o conflito e produz, como resposta, uma chuva de foguetes contra Israel.
O próprio negociador israelense, Gershon Baskin, em entrevista publicado em todos os jornais, considerou a operação “cirúrgica” de matar Al-Jaabari (na verdade a operação de “assassinatos seletivos” de Israel) um grave erro. E então por que foi feito?
O sangue que corre e o tempo que se coagula
No próximo dia 29 de novembro o Presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmud Abbas, do Al Fatah – organização em conflito aberto com o Hamas, mas com quem se havia feito um acordo provisório, sob mediação a Turquia e Egito – apresentará na ONU o pedido de admissão plena da Palestina . Uma analise prévia da diplomacia israelense e americana constatou que a maioria, mais do que suficiente, da Assembleia Geral da ONU aprovará a entrada, com direitos plenos, da Palestina.
A admissão da Palestina implica que o seu governo poderá, entre outras coisas, colocar demandas jurídicas perante a Corte Internacional de Haia, pedir a formação de uma força de paz e de intermediação nas suas fronteiras e exigir que os impostos e recursos da Palestina e Gaza retornam para o governo (são recolhidos por Israel, e não entregues ao governo em Ramalah). Além disso, a Palestina poderá levar para a Comissão Internacional de Direitos Humanos pleitos de violação de tais direitos, levando a uma condenação e militares e políticos de Israel.
Tal proposição de Abbas – considerada “unilateral” pela diplomacia de Israel e dos Estados Unidos e em verdade uma resposta pelo abandono por parte dos EUA, do chamado “Quarteto” e da própria ONU da crise na região – desencadeou um grande temor em Washington: o Presidente Obama, Prêmio Nobel da Paz e um defensor dos direitos humanos, seria obrigado a vetar a decisão de quase 130 nações. Além disso, Israel sofreria uma derrota diplomática histórica.
Em segundo lugar, Benjamin Netanyahu, que durante a campanha eleitoral apoiou Mitt Romney e criticou, de forma despudorada Obama, convocou eleições gerais em Israel para janeiro: precisa de mandato reforçado para enfrentar qualquer pressão de Washington por um tratado de paz e, claro, o voto hostil por parte da ONU. Por outro lado, um acordo com Al-Jaabari seria, na prática, o reconhecimento do Hamas como ator legítimo num futuro acordo de paz.
Obama, por sua vez, está paralisado perante o risco do “abismo fiscal” e tem que negociar com o Congresso Americano o orçamento de 2013. Ocorre que a maioria na Câmara dos Deputados é Republicana, fortemente pro-Israel e, mesmo no Senado, onde possui maioria Democrata, os representantes são também Pro-Israel. Obama, neste quadro, renunciou a qualquer apoio ou decisão de resolver a questão que se arrasta depois de décadas. Em sua primeira viagem pós-eleição foi a Tailândia, onde defendeu a liberdade dos oponentes do regime e... criticou os palestinos.
Testando a nova geopolítica
Tanto Israel quanto os Estados Unidos resolveram, em verdade, testar os limites da chamada “Primavera árabe”: os novos governos saídos dos movimentos populares, como no Egito e na Tunísia, deveriam ser colocados em posição de recuo, assumindo, em relação aos palestinos, o mesmo (e triste) papel das ditaduras cleptocratas derrubadas. A militância e protagonismo de Ancara, Cairo, do Qatar ou Túnis devem ser reduzidos ao grau de dependência real que tais países mantém com os EUA: a ajuda militar ao Egito ou as bases americanos no Qatar, ou ainda a pertença da Turquia ao sistema militar da OTAN.
O que talvez o que escape a estes cálculos de “realpolitik” de Washington seja a opinião pública. O slogan, hoje velho e desbotado, de que Israel era a única democracia do Oriente Médio não vale mais como desculpa. Egito, Tunísia, Líbano, Jordânia e Qatar, estes num curso tortuoso, abrem-se para ouvir a opinião pública, que não é mais o eufemismo “a rua árabe”. Sem falar nas instituições consolidadas da Turquia.
Países ditatoriais e demofobos como a Arábia Saudita e o Paquistão merecem maior apoio e prestígio que o Cairo. Sem dúvida a resposta vira da vontade popular. Governos árabes que se calam perante a Questão Palestina serão, doravante, punidos nas urnas.
Por fim, o silêncio das mídias ocidentais – quantos palestinos valem um israelense? – é vergonhoso. Embora os jornais e as associações de imprensa internacionais, começando pela SIP e “Repórteres sem Fronteiras” critiquem países como a Venezuela e a Argentina, há um total silêncio sobre um gravíssimo atentado contra a liberdade de imprensa: os escritórios, e antenas transmissoras, das televisões Al Aqsa (Palestina) e da Sky News e da Al Arabiya (internacionais) foram destruídas por mísseis de Israel.
Silêncio
Da mesma forma, a UNICEF protestou, formalmente, contra a morte de 9 crianças, algumas eram bebês, por mísseis de Israel. O mundo, e as pessoas de boa vontade, estão cansadas, já não pode haver mais tolerância para tantas mortes, de um lado e de outro – ressaltando uma contagem de corpos desmesurada e brutal -, por pura má vontade e cálculos eleitorais e políticos.
Israel é uma realidade política (e militar) insuperável. A segurança de sua população, no interior de seu território, é intocável. E a Palestina/Gaza? Sua existência, hoje em risco, é também intocável, com os mesmos direitos. É preciso estabelecer, de imediato, a integridade, soberania plena, e liberdade do povo palestino.
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