ADITAL
Um conjunto de acontecimentos que marcaram a dinâmica política da América latina no último período tem levado alguns jornalistas a argumentar que um novo e relevante tema para ser discutido no continente diz respeito ao uso de medidas e recursos inéditos destinados a assentar golpes de Estado sobre governos progressistas eleitos democraticamente através do sufrágio universal.[1] Noutras palavras, daquilo que se convencionou chamar de neogolpismo, ou seja, golpes “brandos” que não apelam ao uso da força militar desmedida, mas a uma leitura - às vezes arbitrária- das leis, aproveitando-se de situações de crise para fazer uso de resquícios ou procedimentos institucionais para derrocar um presidente.[2]
Sem desmerecer esta perspectiva de analise, consideramos que o debate em torno da irrupção destes governos progressistas ou de esquerda na América latina continua representando uma problemática central dentre as preocupações sobre o futuro da região. Com efeito, as diversas abordagens sobre a questão já levam bastante tempo, pelo menos mais de uma década. Assim, as interrogantes sobre o futuro da esquerda na região, a relação entre os partidos políticos de esquerda e os governos progressistas, mediados ou ultrapassados pelas ações dos movimentos sociais, étnicos e culturais vem ocupando um espaço importante no atual debate latino-americano. Também consta nessa agenda o debate da viabilidade do projeto chamado “socialismo do século XXI”. A recente publicação de outros dois livros a propósito deste assunto[3] só vem a confirmar a pertinência da problemática sobre as trajetórias seguidas pelas esquerdas no continente, alem de alentar uma desejável discussão em torno aos dilemas e perspectivas futuras que se vislumbram para ditas agrupações.
Precisamente, nos últimos meses vários fatos marcam a importância de renovar o debate apontado em linhas anteriores e que por sua vez colocam o desafio de pensar que tipo de esquerda ou de esquerdas vem se configurando dinamicamente na região. Entre estes fatos podemos destacar a destituição de Fernando Lugo no Paraguai, o triunfo de Hugo Chávez na recente eleição venezuelana e as negociações entre a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias de Colômbia (FARC) e o governo de Juan Manuel Santos.
Neste contexto, a leitura do livro do jovem cientista político, Fabricio Pereira da Silva[4], representa uma oportunidade privilegiada para conhecer melhor os meandros político-institucionais e as configurações e alianças forjadas entre oito partidos latino-americanos considerados de esquerda, socialistas ou progressistas.[5] Desta forma, o autor assinala na apresentação que se centrará na analise da estrutura interna dos partidos políticos de esquerda mais emblemáticos ou representativos que existem na região, sua ideologia e identidade, suas relações com a democracia e a oposição deles ao modelo neoliberal aplicado em escala local, nacional e global. Paralelamente, ele vai esquadrinhando em torno a determinar as características que assemelham tais organizações ou das práticas, identidades e experiências partidárias que demarcam as diferenças existentes entre os oito conglomerados políticos analisados.
Também o autor esclarece desde o começo que, no entanto seu objetivo é estudar preferentemente os partidos de esquerda, o triunfo destes nas diversas contendas eleitorais realizadas nos últimos anos, torna difícil a tarefa de empreender a analise dos partidos sem considerar o sucesso obtido nestas eleições e seu correspondente desempenho como governos de esquerda.
Para isso, o professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), recorre à elaboração de uma tipologia que possui quatro indicadores, a saber: a) estruturas organizativas e grau de institucionalização; b) independência ideológica, identidade e procura de novas bases sociais; c) aceitação da democracia; e d) posição critica perante o neoliberalismo.[6] Assim o desempenho de cada organização de esquerda com relação a estes indicadores permitirá finalmente ao pesquisador construir um tipo dicotômico desta esquerda, quer dizer, aquilo que ele definirá por uma parte, como as esquerdas renovadoras e, por outra parte, como as esquerdas refundadoras[7], sendo que as primeiras “são caracterizadas por um maior grau de institucionalização, maior integração ao sistema político, aceitação das instituições da democracia representativa na forma ‘realmente existente’ em seus países e pela critica moderada ao neoliberalismo e as segundas caracterizadas por um nível mais baixo de institucionalização, menor integração ao sistema político, pela integração crítica às instituições da democracia representativa e pela crítica radical ao neoliberalismo.” (Silva, p. 254).
Criando uma espécie de modelo continuum entre as esquerdas que se alojam no pólo renovador até as esquerdas que se instalam no pólo inverso refundador, o autor vai analisando cada conglomerado segundo sua inserção nesse espectro ou campo político. Desta forma, para cada dimensão estudada (grau de institucionalização, identidade e ideologia, integração à democracia representativa e anti-neoliberalismo) pode-se encontrar o lugar ocupado pelos partidos analisados, sendo que na maioria dos casos o Partido Socialista do Chile se situa no eixo renovador e no vértice oposto do gráfico se instala em todas as situações, sem exceção, o Partido Socialista Unidos de Venezuela (PSUV) como representante mais preeminente do grupo refundador. Também se aproximam de este eixo “rupturista” o Movimento Aliança Pátria Altiva e Soberana (PAÍS) do Equador e o Movimento ao Socialismo (MAS) de Bolívia. Com pequenas variações, num espaço intermediário se situam o Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) de Nicarágua e Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) do El Salvador e, finalmente, já mais inclinado para o pólo reformista e aproximando-se dos socialistas chilenos, se instalam o Partido dos Trabalhadores do Brasil (PT) e a Frente Ampla (FA) de Uruguai.
É conveniente salientar –como adverte o próprio autor- que as três organizações que se auto-definem como revolucionarias (PSUV, PAÍS e MAS), são em grande parte uma conseqüência de profundas crises político-institucionais pelas quais atravessaram seus países, notadamente no caso de Equador e Bolívia em que os governos eram substituídos com uma freqüência dramática.[8] Neste contexto, as três organizações se apresentavam “como outsiders, e propondo a superação do status quo através de uma ‘refundação’ eminentemente política, sem que isso significasse propriamente um novo regime socioeconômico.” (Silva, op. cit., p. 246).[9]
Outro aspecto que parece importante destacar diz relação ao caráter socialdemocrata incorporado em alguns programas dessa esquerda, supondo que uma definição abrangente de socialdemocracia poderia ser feita a partir de uma atuação política que propende a uma “reforma gradual do capitalismo dentro dos moldes da democracia liberal na direção de maior justiça social e igualdade.” (Silva, op. cit., p. 240). Apesar de que esta definição não se afasta muito daquela sustentada por Norberto Bobbio para quem ser de esquerda implica conceber um projeto que aspire a uma maior igualdade e justiça social, a aceitação do rotulo de socialdemocrata está muito longe da aceitação da maioria das entidades de esquerdas na região[10], ainda quando de fato a totalidade delas abdicou de alguns pressupostos do marxismo clássico como o uso da força revolucionaria ou a abolição da propriedade privada como condição sine qua non para destruir o caráter de dominação de classe do Estado burguês e, conseqüentemente, construir a igualdade e a justiça social. Junto com isso, muitas dessas esquerdas aderiram aos postulados do regime de bem-estar social característicos da segunda onda revisionista que acometeu aos países da Europa Ocidental no pós-guerra (1945) e que na região se encarnaram nos projetos da matriz sociopolítica estatal-nacional-popular ou modelo desenvolvimentista.[11]
Segundo o autor, em todos os casos por ele estudados, nenhum desses partidos “se considera socialdemocrata - até porque a doutrina socialdemocrata nunca teve grande impacto sobre as esquerdas do continente.” (Silva, op. cit. p. 240). Discordo dessa autopercepção, pois considero que independente de que parte dessa esquerda abjure da denominação de socialdemocrata por entender que este rótulo se encontra desprestigiado desde os tempos do “revisionismo” da Segunda Internacional, na realidade dos fatos quando muitos destes partidos ou coalizões - que se identificam ou possuem uma “sensibilidade” de esquerda - acedem ao governo, o que se verifica efetivamente é que eles executam uma política econômica e social calcada nesse ideário socialdemocrata (distribuição de renda, políticas de pleno emprego, programas de estimulo ao consumo dos setores populares via transferência direta, políticas sociais universalistas, inclusão e integração social, etc.).
Fora as inumeráveis conclusões que podem se extrair a respeito das similitudes e diferenças do comportamento e papel desempenhado por cada partido de esquerda com relação às dimensões e indicadores estudados, consideramos que uma questão a ser destacada é que em termos retóricos (e em certos casos fatuais), existe uma significativa adesão das esquerdas ao regime democrático, que com diversas variações e nuances, tem procurado responder ao mandato da soberania popular recorrendo aos recursos clássicos, formais e procedimentais da democracia representativa (eleições periódicas, livres e informadas, alternância, liberdade de opinião e de oposição, decisões tomadas com base no princípio da maioria, etc.) como por meio de formulas de democracia participativa, direta (assembléias populares) ou comunitária. Em todos estes casos, resulta apropriada a conclusão do autor de que “As esquerdas latino-americanas se integraram as suas democracias e assim chegaram ao poder de forma “limpa’, por caminhos democráticos e legais, reconhecidos pela comunidade internacional.” (Silva, op. cit., p. 241).
A citação anterior nos remete à reflexão realizada muitos anos atrás (1977), quando num discurso pronunciado em Moscou durante a comemoração dos 60 anos da Revolução de Outubro, Enrico Berlinguer exaltava o valor universal da democracia quando dizia que: “A experiência realizada nos levou à conclusão – assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista – de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista.”[12]
No entanto, a manifesta adesão democrática de todos os partidos de esquerda analisados no livro, emerge simultaneamente uma problemática que perpassa a alguns destes partidos que se encontram no poder. Ela diz respeito ao uso repetido de plebiscitos para realizar as reformas constitucionais que permitam a reeleição do governo que se encontra na situação (democracia plebiscitária). Se por uma parte, esta formula se alicerça indiscutivelmente na soberania popular, por outra parte, pode parecer questionável tentar projetar um modelo de socialismo baseado na reeleição periódica de um líder carismático que encarnaria todos os valores e princípios da revolução. Se a revolução representa por si mesma um bem comum, não seria mais adequado tentar construir um bloco histórico amplo que assegure as transformações impulsionadas para um determinado país, sem correr o risco de depender ou sustentar todo um projeto de mudança na figura de um líder que mais cedo ou mais tarde pode sucumbir por qualquer imprevisto ou pela própria dinâmica e limites da existência humana. Neste sentido, consideramos que um projeto que procure consolidar as transformações necessárias para melhorar a qualidade de vida das maiorias deveria sustentar-se necessariamente numa grande aliança nacional que convoque o entusiasmo e a adesão de vastos setores da cidadania, com uma liderança exercida por um movimento amplo de agentes e não por uma determinada personalidade à qual é preciso render culto permanentemente. No último caso, pode existir o risco iminente de decomposição do projeto e da sociedade que se pretende construir, uma vez que o líder que sustenta o programa de câmbios revolucionários possa eventualmente desaparecer.
Em resumo, temos na região a coexistência de várias esquerdas que com suas claras diferenças e agrupadas em dois subconjuntos -as renovadoras e as refundadoras- igualmente possuem elementos que as assemelham, porque representam um fenômeno genuinamente latino-americano. Afastadas dos referenciais “clássicos” na medida em que seus referentes mais representativos aceitam participar -com diversos matizes- das regras do jogo democrático[13], assim como, do mesmo modo, através das diversas críticas formuladas ao neoliberalismo, elas mantêm a promessa irrenunciável –pelo menos na retórica- de lutar por uma estratégia política que aspira a melhorar a qualidade de vida dos mais despossuídos.
Desta maneira, Fabricio da Silva nos proporciona um panorama complexo e um vasto arsenal de elementos que nos permitem situar as diversas trajetórias e dinâmicas da esquerda da América latina, superando no debate contemporâneo a velha dicotomia entre a esquerda reformista e esquerda revolucionária, sendo que a unânime adesão à política democrática e suas infinitas possibilidades, representa a meu entender, um caminho consolidado que assume conscientemente esta forma de entendimento e reconhecimento da alteridade no marco da pluralidade e diversidade humana. Por esse mesmo motivo, um dos maiores desafios das esquerdas latino-americanas consiste em aprofundar e perseverar na defesa dos valores e da práxis democrática, partindo da base de que ainda que se possa considerar que os conflitos, contradições e tensões são parte imanente da vida social, nenhuma sociedade pode sobreviver se não aspira simultaneamente a buscar o entendimento e a vontade de concertação entre seus membros, quer dizer, se não tenta resolver os antagonismos existentes através do processamento democrático, dialógico e pluralista desses desacordos.
NOTAS
[1] Indicadores do anterior são, por exemplo, os artigos de José Steinleger, “America Latina: la derecha aprieta el paso”, Jornal La Jornada, 25/06/2012; Iñigo Errejón e Alfredo Serrano, “El nuevo golpismo em América Latina, Página 12, 26/06/2012; Mauro Santayana, “A direita se assanha contra o Mercosul”, Boletim Carta Maior, 30/06/2012.
[2] Não entraremos no detalhe daquilo que se denomina como neogolpismo, mas é preciso esclarecer que ele responde fundamentalmente a uma formula pela qual a destituição de um mandatário democraticamente eleito se realiza pela via institucional, seja através do sistema judiciário ou como impeachment parlamentar baseado numa acusação contra o presidente por tentar mudar a Constituição da República ou por cometer um ato aparentemente renhido com as leis (ilegalidade) ou por não haver desempenhado suas funções devidamente, segundo o mandato da Constituição (abandono de deveres).
[3] Nils Castro, As esquerdas latino-americanas em tempos de criar. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2012 e Vladimir Safatle, A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
[4] Fabricio Pereira da Silva. Vitórias na crise: trajetórias das esquerdas latino-americanas contemporâneas. Rio de Janeiro: Ponteio Edições, 2011, 284 p.
[5] Estas organizações são: Partido Socialista do Chile (PSCh), Partido dos Trabalhadores do Brasil (PT), Frente Ampla (FA) de Uruguai, Movimento ao Socialismo (MAS) de Bolívia, Movimento V República (MVR) hoje Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), Movimento Pátria Altiva e Soberana (PAÍS) do Equador, Frente Sandinista de Libertação Nacional de Nicarágua (FSLN) e Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) do El Salvador. Os quatro primeiros partidos são objeto de uma analise mais pormenorizada devido ao fato que, segundo as palavras do próprio autor, se trata de conceder maior atenção àquelas entidades que “apresentassem um grau razoável de institucionalização.” (Silva, op. cit., p. 31).
[6] Para cada conjunto de temas o autor dedica-lhe um capítulo, sendo estes nominados genericamente como Organização, Ideologia e identidade, Democracia e (Anti) neoliberalismo.
[7] Esta tipologia dualista vem a somar-se a outros intentos por classificar as esquerdas no continente, sendo que as categorias mais utilizadas são a da existência de uma esquerda socialdemocrata ou “democrática” e outra populista ou “autoritária” e aquela que concebe a existência de uma esquerda moderna, reformista, autocrítica, integrada, aberta e globalizada em um vértice, sendo que noutro eixo se posiciona uma esquerda atrasada, anacrônica, revolucionária, nacionalista e fechada.
[8] Por exemplo, no caso de Equador em um lapso de pouco mias de 10 anos (agosto de 1996 e janeiro de 2007) o país teve a impressionante cifra de 10 presidentes até o inicio da administração de Rafael Correa. Já no caso da Bolívia, o número de presidentes entre agosto 1997 e janeiro de 2006 foi de seis mandatários, até a assunção de Evo Morales nesta última data.
[9] Para aprofundar especificamente sobre a crise venezuelana se pode consultar a excelente entrevista concedida por Antonio Carlos Peixoto ao Observatório da Imprensa numa serie onde o desaparecido professor aborda a situação de diversos países da América do Sul. Publicada no sitio Gramsci e o Brasil: Decomposição política antecede Chávez, http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=680
[10] Neste caso, uma postura permanente da esquerda “tradicional” consiste em renegar da noção de que é possível transformar a sociedade através de uma progressão ou seqüência permanente e acumulativa de reformas dentro do próprio capitalismo que levariam finalmente a cristalizar uma mudança revolucionaria, tal como postulavam Eduard Bernstein, Karl Kautsky e August Bebel durante os debates produzidos no contexto da Segunda Internacional (1889-1916).
[11] Ver, por exemplo, Manuel Antonio Garretón et al., América Latina no século XXI: em direção a uma nova matriz sociopolítica, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
[12] Enrico Berlinguer, Democracia, Valor Universal, Seleção, tradução, introdução e notas de Marco Mondaini. Brasilia: Fundação Astrojildo Pereira/Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2009, p. 116.
[13] Nas palavras de Norberto Bobbio, caracterizadas como um “conjunto de regras (primarias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos e em que a modalidade fundamental de decisão está dada pela participação mais ampla possível daqueles a quem compete tomar a decisão, ou seja, da maioria.” Em: Norberto Bobbio, O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, pp. 18-19.
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