O Globo
O historiador francês Jean-François Sirinelli, que passará pelo Brasil na próxima semana, analisa a conjuntura política e econômica de seu país Quase seis meses após a ascensão do presidente François Hollande ao Palácio do Eliseu, a França vive mais uma continuidade do que uma alternância de poder. Essa é a opinião do historiador francês Jean-François Sirinelli, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), que estará no país na próxima semana. Sirinelli, acredita que o “slogan político” de “presidência normal” de Hollande será esquecido no decorrer de seu mandato, e aponta como questão ainda em aberto a possibilidade de uma futura aliança entre as forças políticas conservadoras e a extrema-direita na França.
Como o senhor analisa os primeiros meses do governo François Hollande?
Há um elemento incontestável: a continuidade se sobrepõe à mudança hoje na França. A crise econômica e financeira continua, e mesmo se agravou. Os indicadores econômicos indicam isso, seja na desindustrialização ou no desemprego. Vemos ainda a França em um período de mutação profunda, e para governos de direita ou de esquerda, a questão é a mesma: como administrar o futuro quando ele se mostra completamente imprevisível? Por muito tempo, a França teve um crescimento econômico importante, e a linha do futuro se revelava como um progresso. Hoje, a linha do horizonte não é forçosamente o progresso, mas a incerteza. Diante disso, as escolhas do poder público são complexas. E os problemas não são somente franceses, mas europeus. O presidente da República tem mais ou menos poder do que tinha há 30 anos? Uma resposta de bom senso diz que, institucionalmente, os poderes são os mesmos, mas a margem de manobra, não. Há diretivas europeias que limitam o poder nacional. Houve uma alternância política, da direita para a esquerda, mas não da vida econômica e social. Os problemas ainda permanecem e se agravam.
O senhor vê uma diferença de abordagem da direita e da esquerda no poder?
Durante a campanha eleitoral, a direita e a esquerda não propuseram exatamente as mesmas soluções, mas, na prática, a ruptura houve em temas sociais, como no caso do casamento homossexual. Porém, nas questões econômicas e financeiras — à parte, talvez, no domínio fiscal —, não se pode dizer que houve de fato um rompimento. As mudanças, no momento, não são as que haviam sido anunciadas. A ação política se inscreve numa temporalidade, e o grande debate atual é sobre o ritmo das mudanças. Há uma alternância política, mas também de alternância no modo de gestão, na medida em que mais de 30 ministros não têm experiência de governo no nível do poder executivo nacional.
Como o senhor vê o imposto de 75% de Hollande sobre as fortunas acima de € 1 milhão anuais?
Foi uma das promessas simbólicas de campanha de Hollande, mas não creio que seja o essencial. O essencial é o problema do déficit orçamentário e da dívida. A questão é como reduzir essa dívida e limitar o déficit. À parte esta medida dos 75%, há um aumento anunciado de impostos. Num primeiro momento, se disse que só alcançaria 10% da população, mas hoje parece que a classe média também será atingida. Neste caso, será uma ruptura. Mas o governo se concentrou na construção de um orçamento e na limitação do déficit, e é normal que o sistema tributário seja colocado no centro do debate. Neste ponto há um real combate político entre a direita e a esquerda.
A “presidência normal” reivindicada por François Hollande veio para ficar?
É evidente que o “presidente normal” é um slogan feito para um uso duplo. Hollande usou-o pela primeira vez antes mesmo das primárias socialistas, quando havia como provável concorrente Dominique Strauss-Kahn (ex-diretor-geral do Fundo Monetário Internacional). Os que fazem a exegese da frase tendem a pensar que, no mínimo de forma subliminar, a palavra “normal” era destinada também para marcar um distanciamento de Strauss-Kahn, que aparecia como um homem pertencente a um outro meio social, exercendo altas funções internacionais, bem remuneradas. Mas a palavra “normal” visava em primeiro lugar o presidente Nicolas Sarkozy, em oposição à sua hiperpresidência, bastante intervencionista. Estamos no regime da 5ª República, em que exercer a presidência é uma função superior à normalidade. Era o desejo de constituir uma imagem de um homem mais próximo dos franceses e menos impulsivo. Porém, é um slogan de campanha, que logo será totalmente esquecido.
Como o senhor analisa o fato de o ministro do Interior, Manuel Valls, ser hoje o político preferido dos franceses, segundo as sondagens?
Na campanha eleitoral, como em 2007, foi o candidato da direita que colocou em prioridade a questão da segurança e da ordem. O interessante hoje é que o ministro de esquerda mais popular é o guardião da segurança, o ministro do Interior. Vê-se uma tomada de consciência, por parte da esquerda, da aspiração da população à proteção. Em 2007, e ainda mais em 2002, a esquerda perdeu as eleições também porque deu a impressão de que não era suficientemente atenta à questão da segurança. Deste ponto de vista, a política de Manuel Valls está voltada para a realidade. A questão que se coloca é até onde ele poderá ir. Ele é popular, sua política serve à esquerda no poder, mas há um risco, a médio prazo, de criar clivagens no seio da maioria de esquerda.
Qual o futuro próximo da direita e da extrema-direita na França, hoje socialista?
Hoje, mesmo com a saída momentânea ou definitiva de Sarkozy, a UMP (União por um Movimento Popular, partido conservador) ainda é sólida. Com a derrota presidencial, apesar das disputas internas pelo seu controle, o que é normal, o partido não implodiu. Já a extrema-direita vem se reforçando, contrariamente à tendência habitual de sofrer altos e baixos. Com uma extrema-direita forte, exercendo uma atração direta ou indireta sobre a direita tradicional, a questão que coloca é: haverá ou não uma aliança? Esse debate ainda não está decidido pela direita.
A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, estará na França em dezembro, para uma visita oficial. Quais são as perspectivas das relações políticas entre os dois países?
Seguidamente, nas relações entre Estados, as afinidades políticas podem ter um papel importante. As relações Brasil-França já eram boas, e o fato de que seja agora um presidente de esquerda na França deverá contribuir para que não se degradem. Mas, dito isto, é preciso nuançar, pois dependerá muito de questões econômicas. O Brasil é uma grande potência do século XXI, e sabemos que os Estados são guardiões de seus próprios interesses. Será interessante ver se Brasil e França terão mais interesses em comum do que divergentes, e como as coisas ocorrerão na realpolitik.
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