quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Os marxistas mudaram a forma como entendemos a história


Alfie Steer
Jacobin Brasil

Historiadores marxistas ingleses – como E. P. Thompson e Eric Hobsbawm – desencadearam uma revolução na compreensão do papel dos trabalhadores na construção da história. Seus trabalhos ainda são frescos e vibrantes - e todos aqueles que querem mudar o mundo deveriam ler.

Resenha do livro Os historiadores marxistas britânicos por Harvey J. Kaye (Zer0 Books, 2022)

Enquanto os guerreiros da cultura da direita populista gostam de acreditar que o marxismo domina nossas universidades e instituições culturais, na verdade, sua presença contemporânea é bastante marginal. Poucos acadêmicos hoje se descreveriam acriticamente como “marxistas”. Menos ainda se sentiriam vinculados por qualquer linha partidária. Na disciplina da história em particular, a abordagem marxista é agora frequentemente criticada como economicamente determinista, falhando em explicar a ação humana e reduzindo desenvolvimentos históricos complexos aos processos imutáveis dos sistemas econômicos. Nas interpretações mais cruas dos escritos de Marx, toda ideologia, lei, política, cultura e sociedade civil são redutíveis à composição da base econômica; o estudo do desenvolvimento histórico torna-se uma ciência imutável, acessível apenas com uma compreensão marxista da exploração econômica.

Embora essa abordagem possa ser defendida pelos teóricos marxistas mais dogmáticos, e menos perspicazes, ela foi desafiada apaixonadamente por alguns dos historiadores mais influentes do século XX. Primeiramente agrupados em torno do Grupo de Historiadores do Partido Comunista, os historiadores marxistas britânicos (entre seus líderes Maurice Dobb, Rodney Hilton, Christopher Hill, Eric Hobsbawm e E. P. Thompson) tinham grandes ambições tanto no mundo da erudição histórica quanto no ativismo político. Eles visavam transcender o modelo vulgar de superestrutura de base que havia freado a teoria marxista, ampliar o conceito de classe, em nossa compreensão do passado e recuperar as lutas e ideias esquecidas das classes trabalhadoras. Como demonstra a nova edição de Harvey Kaye de seu estudo clássico de 1984, os historiadores marxistas britânicos foram autores de uma importante tradição teórica muito mais matizada do que admitem seus detratores, e que pode nos ensinar muito sobre o estudo da história e seu valor para a política radical de hoje.

Como Kaye demonstra, os historiadores marxistas britânicos fizeram contribuições tanto acadêmicas quanto políticas. No nível mais básico, eles expandiram os horizontes da pesquisa histórica, escrita e compreensão. Por muito tempo a história se limitou ao estudo das elites políticas dominantes, campanhas militares ou intrigas diplomáticas. A vida das pessoas comuns raramente era registrada. Ao expandir o escopo tradicional da pesquisa histórica, os historiadores marxistas britânicos procuraram desvendar a “totalidade social” mais complexa e representativa do passado. Maurice Dobb, por exemplo, empurrou o estudo da história econômica para uma definição mais abrangente do capitalismo como uma relação social historicamente específica, implantando os primórdios de uma abordagem interdisciplinar que agora domina a academia. Esse impulso para ampliar o escopo da história, por sua vez, levou ao conceito politicamente mais potente da tradição: a história vista de baixo.

Concentrando-se no trabalho, nas vidas e nas ideias das pessoas comuns, os historiadores marxistas britânicos redescobriram a agência política e a criatividade intelectual das classes trabalhadoras e camponesas do passado. Longe das vítimas passivas das mudanças de época (o declínio do feudalismo, a ascensão do capitalismo e do imperialismo, para citar alguns), as classes trabalhadoras, da era medieval à industrial, foram redefinidas como atores históricos influentes, porém limitados pelas explorações das relações de classe e a dominação do poder estatal.

Rodney Hilton lutou contra as definições de “feudalismo” como simplesmente um sistema experimentado por um punhado de membros da elite da classe dominante, para algo que afetava a vida do campesinato cotidiano e motivava suas próprias rebeliões condenadas, mas não menos influentes. A Guerra Civil Inglesa, para Christopher Hill, foi uma revolução inglesa, lançando simultaneamente as bases para o futuro desenvolvimento do capitalismo, ao mesmo tempo que mobilizou uma revolução democrática fracassada cujos atores principais (os Levellers, Diggers e Ranters) produziram ideias revolucionárias que variam de uma democracia massiva à uma forma de comunismo primitivo, e até mesmo ao amor livre. Em seus estudos sobre o sul da Europa pré-capitalista, Eric Hobsbawm redescobriu os “rebeldes primitivos” do banditismo estilo Robin Hood, ao mesmo tempo em que defendia a racionalidade por trás dos quebra-máquinas luditas na Grã-Bretanha industrial. Finalmente, em seu estudo magistral sobre o “fazer” da classe trabalhadora inglesa, E. P. Thompson recuperou tanto as ideias radicais dos clubes jacobinos e dissidentes religiosos, mas também a “economia moral” imposta por turbas desordeiras nas ruas de Londres.

Esse esforço para ampliar o escopo da história e recuperar um mundo esquecido de agência e radicalismo da classe trabalhadora foi acompanhado por um desejo de superar o modelo inadequado de superestrutura de base que definiu o marxismo clássico. Longe de serem deterministas econômicos, os historiadores marxistas britânicos rejeitaram uma análise estática e não histórica da estratificação de classes, vendo a “classe” como uma forma de relação social entre os seres humanos, desenvolvida ao longo do tempo, frequentemente contestada por meio de luta acirrada. A classe não era uma mera categoria econômica, mas um fenômeno histórico representado em nossas vidas sociais e formações culturais, em práticas, rituais, ideias e valores. Através do conceito de “experiência” de classe, os historiadores marxistas britânicos elucidaram uma maneira pela qual a luta de classes e a exploração moldaram a consciência social, reconhecendo a importância essencial do material sem abandonar a agência humana.


Essa reconceitualização faz parte do que Kaye define como a “Teoria da Determinação de Classe” dos historiadores marxistas, com a luta de classes ocorrendo simultaneamente nas esferas social, econômica, política e cultural, definida como o motor da história. Embora a “determinação de classe” dos historiadores marxistas britânicos possa ter corrido o risco de excluir outras formas de opressão, o desenvolvimento subsequente de outras “histórias de baixo” sofreu a influência direta dessa tradição original. Da história das mulheres, florescente no trabalho de historiadoras socialistas-feministas como Sheila Rowbotham e Sally Alexander, ao trabalho em crescimento sobre a história negra britânica, à micro-história ou história oral, o foco da disciplina foi arrancado das mãos de reis, cavaleiros e clero. Embora nem sempre possuam o mesmo compromisso ideológico explícito dos criadores marxistas, a mudança da elite para as pessoas comuns, suas vidas cotidianas, trabalho e até emoções, é uma mudança de foco indelével e potencialmente irreversível.

Como Kaye enfatiza o tempo todo, os historiadores marxistas britânicos não eram meros intelectuais de poltrona, mas também politicamente ativos, em alguns casos em detrimento de sua produção acadêmica. Todos eles desempenharam algum papel na oposição democrática dentro do Partido Comunista da Grã-Bretanha (CPGB), e muitos lideraram a fundação da Nova Esquerda Britânica após 1956.

E. P. Thompson escreveu e fez campanha apaixonadamente contra as armas nucleares e a invasão das antigas liberdades civis durante a Guerra Fria. Christopher Hill continuaria a ser um defensor de inúmeras causas e publicações de esquerda até os oitenta anos. Ironicamente, o mais popular dos historiadores marxistas britânicos e, de fato, um dos historiadores mais vendidos de todos os tempos, Eric Hobsbawm, foi o mais economicamente determinista da tradição, mas também o mais ideologicamente moderado (apesar de sua participação vitalícia no CPGB). Na década de 1980, suas advertências de que a “marcha para frente do trabalho” havia parado por causa de grandes mudanças na composição de classes da Grã-Bretanha, tiveram uma grande influência no doloroso processo de moderação ideológica do Partido Trabalhista, culminando no Novo Trabalhismo.

Embora as diferenças políticas surgissem naturalmente com o passar das décadas, todos os historiadores descritos por Kaye articularam uma forma de socialismo libertário enraizada tanto nos heróis folclóricos do passado radical da Inglaterra, que vão de Wat Tyler a William Morris, quanto nos escritos de Marx e Engels. Como tal, a redescoberta de velhas lutas e ideias radicais forneceu novas fontes de inspiração ideológica e até mesmo uma nova identidade nacional radical para a esquerda britânica.

Como a academia continua sendo uma centelha nas guerras culturais, uma reavaliação do papel do “ativista acadêmico” é oportuna, e os historiadores que Kaye descreve neste livro (Thompson em particular) aparecem como exemplos arquetípicos. Eles também foram, até certo ponto, beneficiários de uma era mais benevolente. Os empregos acadêmicos eram bem pagos e abundantes no pós-guerra, à medida que as universidades se expandiram e o número de estudantes cresceu. Um movimento vibrante de educação de adultos e trabalhadores proporcionou mais oportunidades fora das universidades convencionais de “elite”.

Agora, a precarização crônica do trabalho acadêmico deixa os historiadores tão sobrecarregados e sem tempo, que encontrar tempo para escrever ou pesquisar, quanto mais organizar politicamente, parece uma tarefa quase impossível. Em tempos tão pouco promissores, uma redescoberta das multidões que vieram antes, e lutaram contra a exploração e em defesa de suas antigas liberdades, poderia fornecer uma fonte de inspiração muito mais direta do que até mesmo os historiadores marxistas poderiam ter imaginado inicialmente.

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