La Jornada
Não é fácil, às vezes, desfazer-se de um cadáver. Especialmente quando há muitos interessados em manter as aparências de que o defunto segue vivo. Isso está ocorrendo com o Protocolo de Kioto, o tratado internacional que fixou metas quantitativas obrigatórias para reduzir as emissões de gases causadores de efeito estufa. Esse tratado foi liquidado em 2009 durante a COP15, a décima-quinta Conferência das Partes da Convenção Marco das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (UNFCCC). Ainda que nas conferências de Cancún e Durban (COP16 e COP17, respectivamente) tenha se tentado manter a aparência de boa saúde a verdade é que o protocolo de Kioto não renasceu.
Este ano foi a vez da COP18 em Doha e voltou-se ao mesmo expediente: exibir como corpo vivo um tratado do qual já retiraram o coração. Todos no interior do centro de convenções podem lhe dizer que, apesar de as metas de caráter vinculante do tratado expirarem no último dia deste ano, as outras disposições do Protocolo de Kioto permanecem vigentes. No sentido estrito isso é correto. Mas as metas obrigatórias eram a essência do tratado. Embora, tecnicamente, possa se dizer que o tratado segue vivo, também é certo que o Protocolo de Kioto foi eviscerado. Talvez estejamos na presença de um tratado zumbi.
A tragédia começa no final da conferência COP15, em Copenhague. Um pequeno grupo de chefes de Estado e diplomatas, ao lado do processo formal de negociações, reuniu-se em uma sala e chegou ao que se chamou de Acordo de Copenhague. Quando o documento foi apresentado pelo governo dinamarquês em uma reunião plenária, onde havia representantes de 150 países, os delegados foram informados que teriam uma hora para lê-lo antes da votação. Estourou o caos, obviamente.
O Protocolo de Kyoto tem muitos defeitos, mas ao menos foi resultado de um processo de negociações multilaterais que desembocou em metas vinculantes sobre redução de emissão de gases e consagrou o princípio de responsabilidade compartilhada e diferenciada sobre a mudança climática. O Acordo de Copenhague perdeu as primeiras duas características e só manteve um débil vínculo com a terceira.
Esse acordo reconheceu a necessidade de manter o aumento da temperatura abaixo de dois graus centígrados. Os países em via de desenvolvimento, pela primeira vez, foram chamados a adotar uma estratégia para reduzir emissões e se estabeleceu um fundo de financiamento (com recursos insuficientes). Mas o mais importante é que agora os países ricos fixariam voluntariamente novas metas para reduzir emissões a partir de 2020. Estas metas deveriam ser mais estritas que as do Protocolo de Kioto e deveriam se adotadas no mais tardar em 31 de janeiro de 2010. Obviamente, a palavra-chave em tudo isso é “voluntariamente”: cada país poderia fixar suas próprias metas e escolher o ano base.
A plenária de Copenhague decidiu “tomar nota” do documento, mas não o aceitou como decisão da assembleia. No entanto, o documento foi a arma para destruir o Protocolo de Kioto. Em seu lugar, ficaram as metas voluntárias e o esforço para negociar um novo acordo com metas vinculantes foi desmanchado. Na COP16 de Cancún, o governo mexicano jogou seu conhecido papel de recolhedor de lixo, boicotou os protestos dos representantes da Bolívia e da Venezuela, ao mesmo tempo em que ajudou a reorientar as “negociações” para temas supostamente mais específicos.
Ao final, as metas voluntárias que os países ricos fixaram para 2020 não são suficientes para cumprir o objetivo de limitar o aquecimento global em dois graus centígrados. Para evitar perturbações perigosas no clima (para usar a linguagem da UNFCCC), a reunião de Doha deveria estar considerando opções como deixar as 2/3 partes das reservas mundiais de combustíveis fósseis no subsolo, tal como defendem cientistas como James Hansen.
Em lugar de negociar ao redor de metas sérias, como reclama a comunidade científica, a COP18 se preocupou em temas como REDD (Redução de Emissões por Desmatamento) e os novos esquemas de agricultura “inteligente” que só servirão para promover o mercado mundial de certificados de emissões de carbono, um esquema que não funciona e destrói a agricultura sustentável. O importante é que, na ausência de metas vinculantes de redução de emissões, todos esses temas “específicos” são simples instrumentos para promover o mercado mundial de bônus de carbono, um novo espaço de especulação financeira.
Em Doha, não foram tomadas decisões sobre metas efetivas para reduzir emissões de gases causadores de efeito estufa. Em troca, a reunião procurou consolidar a nova era de instrumentos baseados no mercado de carbono. Em muito pouco tempo será demasiado tarde. Se, nos últimos 200 anos, o aumento de temperatura foi de 0,8 graus centígrados, podemos imaginar o que acontecerá com aumentos de 2 e até 3 graus. A COP18 de Doha é uma etapa a mais neste tortuoso caminho.
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