Revista da Cultura
Além das mudanças pelas quais o fotógrafo Sebastião Salgado passou em sua carreira, o longa ‘O sal da Terra’, dirigido por Juliano Salgado, traz uma narrativa de aproximação que vai muito além dos laços sanguíneos
Em meio a uma floresta em Papua, província da Indonésia na parte ocidental da Nova Guiné, o franco-brasileiro Juliano Salgado registrou o momento em que uma tribo construía uma armadilha para caça. Assim que a tarefa terminou, após um longo período, um homem se posicionou em frente à câmera e produziu fogo utilizando pedaços de madeira e plantas secas. Emocionado ao testemunhar um dos momentos mais marcantes da história da humanidade, o documentarista de 40 anos percebeu que não eram tantas as diferenças que o distanciavam do povo de Papua: após a jornada, os homens acenderam cigarros para conversar e descansar.
Nessa viagem, ele acompanhava o renomado fotógrafo Sebastião Salgado, seu pai, na realização do projeto Gênesis, que o levou, entre 2004 e 2012, a registrar locais de natureza intocada pelo homem. Foi ali que o cineasta notou algo que Sebastião já havia descoberto há tempos, durante o percurso de mais de quatro décadas dedicadas à fotografia: nenhum homem é tão diferente; semelhanças nos aproximam dos papuas, dos índios Zo’é e até mesmo dos nenetses. “Eles estavam fazendo exatamente a mesma coisa que eu costumo fazer em Paris após um dia de trabalho: fumando para relaxar. Foi quando o abismo que parecia existir desapareceu e a viagem se transformou”, conta Juliano, que acompanhou o fotógrafo mineiro em outras quatros viagens. O resultado dessa experiência pode ser visto em O sal da Terra, filme sobre Sebastião que estreia neste mês, no qual Juliano divide a direção com o cineasta alemão Wim Wenders.
Foi um ano antes de Juliano nascer, em 1973, que Sebastião resolveu abandonar uma promissora carreira como economista para se tornar um fotógrafo independente. Pouco depois, com o objetivo de documentar a fome que assolava os africanos, ele viajou a Níger com sua esposa Lélia – na época, ela estava grávida de Juliano. O menino cresceu ouvindo as histórias do pai e o acompanhando no processo de revelação de fotos no laboratório – o cheiro do revelador, o tique-taque do relógio que contava o tempo de exposição e a luz amarela do espaço são lembranças fortes.
Juliano se habituou a ver a face de admiração e espanto dos colegas e das professoras quando contava os lugares para os quais seu pai viajava. “Ele provocava esse tipo de reação nas pessoas. Havia algo de heroico no que ele fazia”, conta. E teve que aprender a lidar também com os longos períodos de ausência, nos quais Sebastião se embrenhava mundo afora para descrever através de sua câmera as desgraças e injustiças sociais: ainda que as imagens tivessem a imprensa como suporte e fossem veiculadas em jornais e revistas da época, o interesse de Sebastião era explorar os temas a fundo, suas pesquisas duravam anos. Para concluir a série Trabalhadores, por exemplo, ele levou seis anos, de 1986 a 1992. “Eu ficava fora de casa por longos meses, sentia uma saudade enorme da Lélia. Pensava muito nela e em nosso filho Juliano, que era bem pequeno. Quantas vezes eu não chorei sozinho”, disse Sebastião no livro Da minha terra à Terra.
Alguém de fora
Em 2009, o documentarista resolveu aceitar o convite do pai para uma viagem de três semanas ao Pará, onde ficariam em contato com os indígenas Zo’é. A aventura também fazia parte de Gênesis e marcou o início de um processo de reaproximação entre os dois, que durante anos mantiveram uma relação distante e permeada de conflitos. “Era muito tempo para permanecer em um lugar onde seríamos só nós entre poucas pessoas que falavam português, mas aceitei porque achei que era um daqueles convites que não se recusam”, explica.
Não foi a primeira vez que Juliano acompanhou Sebastião em suas jornadas de trabalho. Em 1991, época em que o documentarista estava com 17 anos, ele viajou junto ao pai para Ruanda. Ali, visitaram a região de Kivu e as famosas plantações de chá. Enquanto Sebastião reunia material para Trabalhadores, o filho usava o cenário como tema para uma apresentação da escola.
Já a vivência com os Zo’é foi um importante passo na construção do relacionamento deles, tornando sua relação mais fácil. Na tribo, que desconhece a violência, ignora tanto a mentira quanto as brigas, resolvendo mal-entendidos por meio da argumentação, Juliano começou a filmar os passos de seu pai. As cenas foram editadas em um curta de poucos minutos, que encheu de lágrimas os olhos de Sebastião. “As imagens dizem muito sobre quem filma e meu pai ficou muito tocado ao ver a maneira como eu o enxergava.” Foi a motivação necessária para a ideia de desenvolver um longa-metragem sobre aquele que poderia ser o último projeto grandioso de Sebastião Salgado, hoje com 71 anos. Juntos, eles viajaram também para o Pantanal, o Grand Canyon, nos Estados Unidos, e a ilha russa de Wrangel.
Nessa época, o cineasta alemão Wim Wenders, de quem Sebastião Salgado é amigo desde a década de 1990, vinha manifestando o interesse de realizar algum trabalho a respeito do fotógrafo. Ele e Juliano iniciaram uma conversa que culminou, em 2011, com a assinatura de um contrato para a realização conjunta de O sal da Terra. O projeto já contava com um material farto de Sebastião em campo, no qual Juliano descobriu um profissional extremamente focado, com uma concentração impecável e uma disposição enorme para compreender as pessoas. Ainda assim, havia pouca abertura para a câmera. Sebastião ditou, inclusive, algumas regras que deveriam ser seguidas durante o processo: a primeira, não haveria uma equipe de filmagem, deixou nas mãos de Juliano a captação tanto do som quanto da imagem. Ele também se negou a repetir qualquer ação para o vídeo e avisou que não iria esperar pela câmera quando estivesse em movimento – as imposições eram uma forma de proteger o seu desempenho como fotógrafo. “O problema era que a nossa relação não era boa o suficiente para que eu pudesse entrevistá-lo. Tinha medo que a gente começasse alguma briga no meio, pois eram coisas que vinham acontecendo. Eu precisava de alguém de fora”, conta Juliano.
Beleza do mundo
Grande parte das entrevistas que dão corpo ao filme ficou a cargo de Wim Wenders. O cineasta alemão optou por um método de poucas perguntas: utilizando um teleprompter, exibiu uma seleção de fotografias de autoria de Sebastião, pedindo para que ele comentasse os detalhes de cada uma. O depoimento contém uma força assustadora de um alguém que parece ter experimentado muitas vidas em uma trajetória de poucas décadas. O fotógrafo, que já declarou que o maior prazer de todas as viagens era pegar o táxi para o aeroporto de onde voltaria para a mulher e os filhos, dividiu sua jornada entre a saudade da família e o enorme prazer que possuía na busca de novas imagens. Ele registrou desde grupos de refugiados da sede, da fome e da guerra em países como Etiópia, Mali e Sudão a garimpeiros da Serra Pelada, no Pará. Nas suas andanças, testemunhou tragédias inenarráveis, que o deixaram incrédulo quanto às atrocidades das quais a humanidade é capaz.
Em 1994, Sebastião encontrou em Ruanda um cenário de violência e ódio – os mortos eram tantos que acabavam empilhados, formando montanhas de cadáveres de centenas de metros de comprimento. Os sobreviventes pareciam ter se tornado insensíveis e ele começou a sentir ali que o corpo e a mente começavam a abandoná-lo. A esperança conseguiu reencontrar na fazenda onde nasceu, em Minas Gerais, quando decidiu junto à esposa transformar uma terra infértil em um ecossistema com mais de 2 milhões de árvores. Foi essa experiência que acabou o colocando no projeto de Gênesis, com a ideia de contar uma história que mostrasse a beleza do mundo. É essa transformação de um homem que chegou a perder a fé na espécie humana e conseguiu se reinventar que Wim Wenders e Juliano Salgado escolheram abordar em O sal da Terra. Para além dela, o filme também retrata em suas entrelinhas uma história de reaproximação entre um pai e um filho, entre Sebastião e Juliano. “Tinha raiva dentro de mim por conta da ausência dele, não conseguia ver mais nada. Alguma coisa mudou quando assisti aos seus depoimentos para o filme. Antes, ele era apenas meu pai e não tinha ideia dele como alguém que pôde compreender tanto do mundo.”
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