Guilherme Freitas
O Globo
Escalado para falar sobre o passado e o futuro dos livros na Flip, o historiador americano Robert Darnton trabalha atualmente numa obra em que os dois temas convergem: um ambicioso projeto de e-book sobre a história do comércio e da circulação de impressos na França do século XVIII. Darnton se ocupa do projeto há 20 anos, mas esteve a ponto de desistir dele porque, depois de acumular mais de 50 mil documentos sobre o assunto, começou a desconfiar que não conseguiria dar forma ao material que tanto o fascinava. O projeto ficou estagnado por anos, até que o historiador encontrou nas novas tecnologias a saída para seu impasse:
Comecei a escrever sobre o comércio do livro em uma cidade, passei para a cidade vizinha, para a outra, e assim por diante. Seria um livro infinito. Então percebi que o leitor talvez não fosse ficar tão fascinado pelas minúcias do assunto quanto eu. Mas então veio a internet, e pensei: é isso! Posso publicar um livro curto e divertido sobre os principais personagens e características daquele sistema, e criar uma versão eletrônica com vários níveis, onde o leitor vai se aprofundando de acordo com seu interesse — diz Darnton.
Com o título provisório de “O mundo dos livros: um tour literário da França”, a obra é construída em torno de uma preciosidade histórica: os diários de um livreiro francês que, em julho de 1778, cruzou o país a cavalo registrando informações sobre o então incipiente mercado editorial nacional. A versão impressa apresentará o curioso personagem e os traços principais do mundo que ele observou: vendedores, leitores, impressores, editores, contrabandistas de obras proibidas. Empolgado, Darnton descreve a versão eletrônica como uma obra “com cinco de níveis de leitura vertical”, onde o leitor terá à sua disposição pequenas monografias sobre cada um dos tópicos discutidos, transcrições de correspondências e fac-símiles de manuscritos do livreiro (que “aprendeu mais sobre o universo dos livros naquela viagem do que todos nós historiadores”, diz).
Diretor da biblioteca da Universidade de Harvard, que passa atualmente por um gigantesco processo de digitalização de seu acervo em parceria com o Google, Darnton se desdobra entre debates sobre temas de ponta (como os riscos de um monopólio do Google sobre os acervos digitais e a criação de uma Biblioteca Nacional Digital nos EUA) e a carreira acadêmica dedicada ao Iluminismo francês e à história da circulação do saber. Além de “O mundo dos livros”, ainda sem previsão de conclusão, ele prepara outra obra que lança mão das novas tecnologias.
Com publicação prevista para outubro, o livro parte de um caso real com ares de ficção — uma investigação da polícia parisiense em 1749 sobre o autor de um poema satírico apócrifo — para estudar as redes de difusão de informação da época. Darnton mostra como os poemas e canções que passavam de boca em boca funcionavam como um complexo sistema de comunicação através do qual uma sociedade largamente iletrada espalhava notícias e boatos. Não satisfeito em narrar o caso em livro, o autor esmiuçou arquivos em busca de letras e partituras da época, e convocou a amiga Helène Delavault, cantora lírica e estrela dos cabarés parisienses, para interpretar as principais canções do período. O comprador do livro receberá uma senha para baixar as músicas.
Essa é uma nova dimensão do estudo da História. Trabalhar com fontes orais que se perderam com o tempo é uma das tarefas mais difíceis para os historiadores, mas agora é possível recriar os sons de três séculos atrás. Quero que as pessoas ouçam a História e não apenas a leiam.
Curiosamente, o historiador de 71 anos que se colocou na vanguarda dos debates sobre tecnologias de leitura ainda não se rendeu aos e-readers — ontem, ele recebeu a equipe do Globo nos jardins da Pousada da Marquesa em meio à leitura de um pesado exemplar em capa dura de “Wolf Hall”, romance histórico da britânica Hilary Mantel. Mas Darnton assegura que pretende abrir uma exceção no dia em que seu alentado projeto de e-book sair do papel:
Quando “O mundo dos livros” ficar pronto, vou providenciar um e-reader, claro. E adoraria que os leitores contribuíssem de alguma forma com a obra, como na web 2.0. Seria um diálogo entre autor e leitores, além de outros especialistas que desejassem acrescentar material de suas pesquisas. Algo parecido com a Wikipedia.
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