Michael Galant
The Internacionalist
Há meio século, Amílcar Cabral pediu a um grupo de jovens cineastas da Guiné-Bissau que levassem a luta pela independência do seu país para o cinema. Agora, eles estão concluindo o projeto como uma homenagem a um dos maiores revolucionários de África.
No início da década de 1970, Amílcar Cabral, líder da libertação africana, confiou a um grupo de quatro jovens cineastas da Guiné-Bissau a tarefa de documentar a guerra de independência do país diante do regime fascista português. O movimento de Cabral foi uma contribuição vital para a luta contra a ditadura portuguesa, que resultou na Revolução dos Cravos há cinquenta anos.
Antes que o filme pudesse ser concluído, porém, Cabral foi assassinado. Flora Gomes e Sana Na N’Hada são os dois últimos sobreviventes do grupo original e, atualmente, dois cineastas lendários por mérito próprio. Eles agora estão arrecadando fundos por meio do Kickstarter para concluir o documentário e cumprir sua promessa ao falecido revolucionário.
Michael Galant, da Progressive International (PI, Internacional Progressista em português), com a mediação do escritor e investigador Ricci Shryock, falou com Flora Gomes sobre esse projeto, sobre sua experiência na luta de libertação da Guiné-Bissau e sobre a relação entre cinema e revolução.
Vamos começar pelo começo. Sua trajetória na produção cinematográfica fala muito sobre a importância que os movimentos revolucionários colocaram no cinema à época. Como você se tornou um cineasta?
Eu era estudante de ensino médio na Escola Piloto [uma escola fundada pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e do Cabo Verde (PAIGC) para educar os membros do partido e seus filhos]. Amílcar Cabral nos enviou para estudar em Cuba com um grupo de jovens. Todos tinham seu próprio destino, mas foi Cabral quem disse: “Você vai fazer medicina”. “Você vai fazer agronomia”.
E, entre nós, ele escolheu quatro pessoas que iriam fazer filmes. Ele nos disse claramente: “Você vai estudar cinema. Você vai estudar cinema aqui em Cuba para poder documentar a proclamação da independência. Quero que seja um filho do meu país a registrar este ato histórico, a proclamação do Estado”. Foi em 1967 que fui para Cuba. Voltei em 1972. [A proclamação ocorreria em 1973].
Então foi o próprio Cabral que encarregou você de documentar a luta pela independência. O que você pode nos dizer sobre essa época — sobre a guerra de libertação, sobre Cabral e sobre o que veio a seguir?
Sim, foi Cabral. Mas Cabral não queria que falássemos dele. Ele sempre falava no plural. Ele sempre dizia: “nós”, “nosso povo”, “nosso hospital”, “nossa escola”. Isso significa que sim, ele estava lá, mas foi conduzido pela dinâmica maior. Para ele, se tratava da luta de libertação. Eu imagino que quando ele nos pediu para fazer isso, foi para ver e registrar o sacrifício do povo da Guiné-Bissau e do povo de Cabo Verde. Foi isso que ele nos pediu para documentar. Porque a luta foi muito violenta. Como qualquer luta de libertação, tinha seu lado muito cruel.
Na zona liberada, vimos crianças que estavam na escola, no ônibus escolar, que tiveram que fugir dos aviões que vinham bombardear. Havia enfermeiros que estavam em seus empregos, em hospitais de campanha, que estavam lá prestando cuidados, mas eles sempre tinham que estar prontos para fugir. E era isso que Cabral queria mostrar. Ele queria mostrar ao mundo que fomos nós, guineenses e cabo-verdianos, que libertamos nosso país.
É verdade que tivemos o apoio dos cubanos na época, da União Soviética, da Suécia e de outros países amigos, sem falar da República da Guiné-Conacri, do Senegal, da Gâmbia, do Mali — todos esses países nos deram o que tinham. Cabral queria que nos lembrássemos disso. Ele sempre disse: nunca devemos esquecer as pessoas que nos apoiaram durante esta guerra.
Acho que, de modo geral, era isso que Cabral queria. Se falarmos do próprio Cabral, é porque ele foi o líder — foi o homem que liderou uma inovação no modo de pensar de uma geração, uma geração à qual pertenço.
E depois da guerra?
Como é sabido, perdemos Cabral naquela marcha pela libertação. Perdemos Cabral nessa jornada. O que isso significa? Isso significa que perdemos Cabral justamente quando mais precisávamos dele, pois estávamos perto da data da proclamação unilateral da independência. Assassinaram Cabral cerca de uma semana depois que ele havia enviado uma mensagem aos combatentes, às pessoas do mundo que estavam nos ajudando nessa luta, dizendo que em breve faríamos parte dos estados livres da África.
Ele foi assassinado em 20 de janeiro de 1973. Depois, no dia 24 de setembro do mesmo ano, houve aquela histórica sessão da Assembleia, que proclamou o Estado da Guiné-Bissau. É preciso dizer que sofremos com a perda de Cabral, porque ninguém mais poderia substituí-lo. Ele era único. Após a independência, nos doía muito que ele tivesse morrido. E alguns anos depois, na década de 1980, houve o golpe de Estado na Guiné-Bissau, liderado por Nino [João Bernardo “Nino” Vieira].
Desde então, você e Sana se tornaram algo como lendas do cinema africano, e do cinema em geral, com obras que frequentemente abordam a luta anticolonial — incluindo seu último filme, para o qual você está agora levantando fundos. Aqui está a grande questão: como você concebe a relação entre cinema e política? Como você aborda a produção de filmes com o objetivo de avançar na luta?
É verdade que, para fazer filmes, você precisa dos meios para isso. Cinema é muito caro. Mas não queremos dinheiro apenas para fazer um filme. Queremos dinheiro para contar uma história específica. Não creio que haja dúvidas de que temos hoje a experiência para contar a história que queremos contar. Mas não acho que eu seja de fato uma lenda do cinema.
Eu me considero apenas alguém que quer pintar um quadro, mas não tem um pincel. Não estamos interessados em dinheiro. O que nos interessa é a história que vamos contar — como a pintura vai sair, como vai ser entendida. Pessoalmente, sou um produto da luta e da política. Tudo o que digo hoje é o que eu vivi. Pessoalmente, a política me moldou. A vida é política. Você não pode separar essas duas coisas. O cinema é importante, pois as imagens são mais livres e você pode interpretá-las como quiser.
Por que agora? Olhando para a Guiné-Bissau, para a África Ocidental e, na verdade, para o mundo inteiro, o que temos a aprender com este filme hoje?
Penso que este filme tem um objetivo simples, que é homenagear as pessoas, começando por Cabral e as pessoas com quem ele criou uma história inesquecível em África. É muito importante que nós nos apeguemos a essa história hoje — que nós a discutamos — porque há tanta desinformação circulando pelos nossos meios de comunicação, pelas redes sociais.
Acho que gerações de africanos jovens precisam entender que este país não teve a sorte de conquistar a independência como os senegaleses, sem uma luta [violenta]. Tivemos uma luta que durou onze anos, na qual perdemos amigos, familiares, colegas, conhecidos. E não podemos deixar essa memória desaparecer. Cabral em breve completará cem anos - em setembro. Queríamos gravar algo que permaneceria na memória dos jovens da África - e (por que não?) dos jovens do mundo.
Quanto às lições a serem aprendidas, acho que há uma coisa óbvia: o fato de que Cabral imaginou um novo papel para as mulheres na luta. Isso é algo sobre o qual ninguém estava falando. Falamos sobre o papel das mulheres hoje, mas de onde vem essa história?
A possibilidade de reservar para as mulheres um determinado lugar em um governo ou em uma organização - Cabral teve essa ideia. Paridade. Cabral havia feito isso em 1960. Havia uma organização de festas - ele disse: “Deve haver, obrigatoriamente, um número mínimo de mulheres em cada comitê”. Outra coisa que Cabral ensinou, na minha opinião, é não ter medo. Porque as pessoas viviam com muito medo - de marabus, de espíritos e coisas do tipo. Cabral sempre acreditou que o homem deveria ser livre em seu pensamento.
Ele não tinha medo de que alguém pudesse atirar nele — da Kalashnikov (AK-47) do exército. Ele ensinou a pensar com a própria cabeça e andar com os próprios pés. Essa é a ideia de Cabral. Você não deve esperar que as pessoas lhe digam o que você vai fazer. Foi assim que proclamamos a independência.
No que diz respeito à luta contra o colonialismo, Cabral foi muito claro sobre a palavra “colonialismo”. Ele disse: “Estamos lutando contra o colonialismo, contra o fascismo português. Não estamos lutando contra o povo português”. E acho que foi muito inteligente da parte dele marcar essa diferença, dizer: “Estamos lutando porque o povo português também está sofrendo como nós”.
Não era só o povo bissau-guineense e cabo-verdiano que ia fazer os combates. Ele disse que a luta contra o fascismo era a luta do povo português. Nós estávamos lutando contra o colonialismo. Nessa luta, nos percebemos ao lado do povo português.
Era muito importante não confundir o português com o sistema colonial. Também era importante não pensar que estávamos lutando contra os portugueses porque eles eram brancos. Ele disse que estávamos lutando igualmente contra negros africanos que queriam substituir os colonizadores brancos.
Eu acho que vale a pena os jovens aprenderem e cultivarem essas coisas. Cabral cultivava o hábito de aproveitar cada dia, de respeitar e apreciar a cultura. Ele era muito profundo. Ele era como qualquer outro ser humano - gostava de música, gostava de estar com mulheres e tudo mais. Ele não era um Deus. Mas estou completamente envolvida com os pensamentos dele. É por isso que eu convido todos os jovens a ler e ouvir Cabral.
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