terça-feira, 30 de abril de 2024

Filme ‘Puan’ traz uma divertida reflexão sobre a universidade pública

Dimas Floriani
Casa Latinoamericana

Filme que retrata a atual realidade sociocultural e política de Buenos Aires e, por extensão, argentina, embora o ethos das províncias seja bastante diferente do caráter portenho. A partir do cotidiano de um professor de filosofia da famosa UBA (Universidade de Buenos Aires), o filme revela múltiplas dimensões na atividade de um professor universitário, seja com o grupo de alunos, seja com o entorno social buenairense. As sucessivas e intermináveis crises econômicas e políticas que perduram por três décadas se refletem no filme.

O professor Marcelo Pena, professor auxiliar, aguarda ser conduzido à titularidade no lugar do recém falecido mentor catedrático, ambos especialistas em filosofia política clássica moderna. Suas aulas transcorrem com passagens sobre as obras de Hobbes, o Leviatã, e de Rousseau, sobre as Origens da Desigualdade Social. Mas em outro contexto social Marcelo aborda Platão, Sócrates, Heidegger sem a afetação do "academiquês", pontuando temas como a 'morte', 'o papel dos funcionários do Estado', entre outros.

Ao mesclar academia e realidade social, o filme aproveita para mostrar lances picarescos como de uma senhora idosa que contrata o professor Marcelo para aulas particulares de filosofia, sem deixar de mostrar que essa senhora simpática puxa um ronco quando o professor se refere a autores e aos conceitos filosóficos (uma espécie de crítica velada ao significado frio da história da filosofia). O comportamento antipático da doméstica da casa dessa senhora para com o professor Marcelo é uma mostra de que ela reconhece a "inutilidade" das aulas de filosofia e valoriza apenas o que pode trazer utilidade para sua patroa, como no caso do fisioterapeuta, tratado com gentileza e deferência. O ambiente familiar dessa senhora é uma referência explícita a uma geração em decadência que trata do mundo cultural e erudito como signo de um status que não corresponde mais ao período de ouro da elite cultural buenairense.

Mas, por outro lado, o Professor Marcelo torna viva a filosofia no recinto judiciário de presidiários ao estabelecer uma reflexão pertinente e saborosa sobre a realidade social e existencial do público.

A espera pela titularidade do professor Marcelo para a cátedra de filosofia política enfrenta uma nova situação concorrencial, ao se deparar com um personagem intelectualmente "sofisticado", professor Rafael, recém retornado da Europa, após 20 anos de estudos na Alemanha e com conexões de grupos de pesquisa acadêmicos globalizados, contrastando com o perfil de um professor da periferia que reproduz em suas aulas o pensamento filosófico eurocêntrico e que leva uma vida comum, sem surpresas e com problemas cotidianos familiares corriqueiros; essa realidade, claro, não tem nada em comum com o que diziam Hobbes e Rousseau em suas obras.

A propósito disso, a esposa do titular falecido lança uma questão interessante a Marcelo, mencionando que na América Latina a filosofia aparece com a menção de Pensamento Latino-americano e não como Filosofia Latino-americana. Conectado a esse tema, aparece uma indígena boliviana de El Alto, estudante de filosofia na UBA, que convida Marcelo para uma palestra sobre América e o Futuro, em sua comunidade, como substituto do professor catedrático falecido que pareceria afeito ao debate, uma vez que o filme mostra, em seu escritório, o livro clássico de José Martí sobre Nuestra América.

A ausência de Rafael da Argentina por 20 anos mostra-o como alguém apenas preocupado com sua imagem de intelectual europeu e que por seu acúmulo de capital intelectual na Metrópole o classifica como novo titular da cátedra de filosofia política. O charme das aulas e a erudição de Rafael cativam o público acadêmico, inspirado ainda no imaginário idealizado da cultura eurocêntrica. Contudo, Rafael se dá conta de que sua prolongada ausência o descredencia para ter um contato privilegiado com a realidade nua e crua de um país que já não se reconhece com seu passado brilhante. Daí que convida Marcelo para dividir a cátedra com ele.

O momento apoteótico da conexão e do novo aprendizado de Rafael com a realidade argentina é quando o governo corta quase todos os subsídios da Universidade e atrasa os salários, forçando os alunos a fazerem greve, bloqueando a rua e nela realizando a atividade escolar. O retorno ao neoliberalismo empobrecedor da Argentina é o estopim para que Rafael se dê conta em que país está vivendo agora.

Por fim, o filme termina com Marcelo na comunidade de El Alto na Bolívia em contato com uma pequena assistência de indígenas. É um momento paradigmático que exige de Marcelo repensar suas estratégias de comunicação com uma cultura tipicamente autóctone, crítica aos códigos culturais hegemônicos ocidentais. Nesse momento, Marcelo recorre a um poema musicado para estabelecer essa religação com a cultura desse povo, querendo dizer com isso que a arte é uma maneira privilegiada de comunicação, não importando a qual cultura se dirige. Vale a pena assistir!

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