quinta-feira, 1 de março de 2012

Síria: A batalha de propaganda e outras batalhas

Alain Gresh
Le Monde Diplomatique

Numa conversa telefônica entre o presidente russo e o rei saudita, este último afirmou ao seu interlocutor que qualquer diálogo sobre a Síria era “agora fútil” (agência de imprensa saudita, 22 de fevereiro 2012). O que quer isto dizer? Que a única via possível é a da intervenção militar? Que é preciso armar a oposição? Parece que é nesta direção que se orienta a reunião dos amigos da Síria realizada sexta feira 24 de fevereiro em Tunes.

A revolta na Síria, que vai em breve entrar no seu segundo ano, levanta questões dramáticas para as quais não existem respostas simplistas – para não se fazer a política do quanto pior melhor. É preciso recordar o que o derrube de Saddam custou, custa e continuará a custar aos iraquianos nas próximas décadas.

As causas da revolta

A revolta na Síria nasceu das mesmas três causas que provocaram, de Marrocos ao Iraque, movimentos de contestação:

– A recusa de um regime autoritário, da arbitrariedade total do Estado e dos serviços de repressão, da banalização da tortura;

– A amplitude da corrupção – a abertura econômica (largamente encorajada pelo Ocidente) que levou à apropriação das riquezas nacionais por uma máfia em torno do chefe de Estado –, a riqueza ostensiva de uma pequena casta contrastando com uma pobreza agravada pela perda do papel social do Estado (desejada também pelos conselheiros ocidentais);

– O peso da juventude. A geração mais numerosa da história que chega à idade adulta nos países árabes e que, ainda que melhor educada, não dispõe dos meios de uma inserção social à altura das suas aspirações – no trabalho, mas não só, igualmente no exercício das responsabilidades.

Estes três fatores permitiram uma vitória rápida dos movimentos na Tunísia e no Egito, mais difícil no Iêmen. Foi precisa a intervenção das forças militares da OTAN, que ultrapassaram largamente o quadro do mandato da resolução 1973 do conselho de segurança da ONU, para derrubar o coronel Kadhafi. No Bahrein, o movimento foi contido por uma intervenção dos tanques sauditas, mas continua a exprimir-se com força. Além disso, uma mistura de concessões políticas (Marrocos) e de concessões financeiras (Argélia, Arábia Saudita) permitiu – mas por quanto tempo? – conter a contestação.

E na Síria? O presidente Bashar Al-Assad, que dispunha à partida de um certo capital de popularidade, pensou que a política regional desenvolvida pelo seu país (a sua oposição a Israel e às políticas dos Estados Unidos) o resguardariam. Estava totalmente enganado e, ao longo dos meses, tentou apresentar a contestação pacífica como militarizada, manipulada pelo estrangeiro, cujo objetivo seria fazer desaparecer um regime que se opõe às ambições israelitas e americanas. Pela sua recusa em se empenhar em reformas sérias e num diálogo com a oposição, pelo seu uso indiscriminado da violência contra manifestações que, no essencial, continuavam pacíficas, por um uso generalizado da tortura, contribuiu para o aumento da violência, para a passagem de uma parte da oposição à luta armada; favoreceu, num mesmo movimento, as ingerências que pretendia querer combater.

Da mesma forma, ele ajudou os projetos daqueles que não visam a reforma (nem evidentemente a instauração de um regime democrático), mas preparam uma ofensiva contra o Irã e esperam fazer cair antes o seu principal aliado árabe.

Quem pode acreditar por um segundo que seja, que o regime saudita procura instaurar a democracia em Damasco, ele que não reconhece qualquer assembleia eleita? Ele cujo ministério do Interior acaba de declarar que as manifestações do leste do país são “uma nova forma de terrorismo”?

Quem pode pensar que as liberdades são o que motivam as declarações dos Estados Unidos, eles que não hesitaram em enviar “terroristas” presos por eles para serem interrogados na Síria (prática conhecida pelo termo inglês de rendition), porque este país utilizava a tortura?

Quem pode acreditar que a democracia é a preocupação de Nicolas Sarkozy, ele que recebeu Bashar Al-Assad em julho de 2008 e o visitou em setembro, apoiava os ditadores tunisino e egípcio e não dizia uma palavra sobre o massacre de Gaza durante a invasão israelita de dezembro de 2008? Uma pequena história significativa: naqueles dias, os jornalistas do Figaro receberam instruções da sua direção para não evocarem nos seus artigos os prisioneiros políticos na Síria.

Para todos estes países, e para Israel, o objetivo é derrubar um regime aliado do Irã, no quadro da preparação de uma ofensiva contra este país. É evidente agora que numerosas forças, incluindo no Conselho Nacional Sírio (CNS), pressionam para uma intervenção militar, apoiada numa formidável campanha midiática.

A batalha pela Síria é também uma batalha de propaganda. O regime perdeu-a há muito, tanto que as suas afirmações são frequentemente grotescas, as suas mentiras óbvias e as suas práticas bárbaras. No entanto, as informações que se multiplicam 24 horas sobre 24 em todas as cadeias de rádio e de televisão, e que frequentemente têm uma única fonte, a oposição no exterior do país, são verdadeiras? Durante muito tempo a mídia rejeitou as informações sobre a morte de oficiais e de polícias, elas estão contudo confirmadas; desde há um ano, regularmente, a mídia anuncia que a contestação atingiu Damasco. Só podemos lamentar a morte de dois jornalistas em Homs e recordar que o regime, interditando aos jornalistas (na maior parte do tempo) a entrada no país ou de se deslocarem nele, contribui para o que ele pretende denunciar.

Este relatório pode, certamente, ser contestado num ou noutro ponto, mas fornece uma investigação no terreno que deveria ter merecido uma pouco mais de atenção: “Syrie, une libanisation fabriquée” (“Síria, uma libanização fabricada), CIRET-AVT e CF2R, 11 de fevereiro de 2012.

Militarização

Em Homs, o comportamento das tropas do regime é inaceitável. Elas pretendem aniquilar, não a cidade inteira, mas os bairros sunitas que se rebelaram. Porque o exército enfrenta combatentes frequentemente devotados e prontos a se baterem até ao fim, com o apoio de uma parte da população. Se isto explica a violência dos combates, a situação não justifica evidentemente as atrocidades do regime. Todavia é interessante notar que os argumentos utilizados contra o Hamas em dezembro de 2008 – janeiro de 2009 (“eles tomam a população como refém escondendo-se no seu seio”) não são retomadas no caso sírio; esperemos que sejam também abandonados no próximo ataque israelense...

Uma das dimensões mais perigosas deste conflito tem a ver com os riscos da sua transformação em confrontos “confessionais”. Seria falso dizer que, na Síria, tudo se reduz a se pertencer a uma religião ou comunidade: existem alauítas que apoiam a oposição e sunitas que preferem o regime aos insurretos. Mas o poder, apoiando-se na sua base alauíta, tem incontestavelmente aumentado as tensões. Pelo seu lado, a oposição – ou alguns dos seus componentes, nomeadamente o CNS – não é diferente e mostra-se incapaz de dar garantias sérias para o futuro. Ninguém parece notar como os curdos, por exemplo, que foram dos primeiros a se manifestarem (especialmente para obter documentos de identidade) se tenham agora posto à margem, chocados pela recusa do conselho nacional sírio de reconhecer os seus direitos. Por seu lado, o regime parece querer relançar as atividades do PKK, um partido que ele utilizou no seu confronto com a Turquia nos anos 90 e que continua muito popular entre os curdos da Síria.

Para além disso, o CNS é contestado por numerosos opositores, que o acusam de ser dominado pelos islamistas, com algumas figuras pró-ocidentais para falar à mídia. Assim, um novo grupo acaba de ser criado, o Movimento Nacional para a Mudança (MNC), dirigido pelo Dr. Ommas Qurabi, antigo presidente da organização síria de defesa dos direitos humanos. Ele critica o CNS por recusar militantes alauítas ou turquemenos. Outras comunidades, especialmente as comunidades cristãs mas também drusa hesitam, não por simpatia para com o regime, mas por receio do caos que resultaria da sua queda sem negociações.

A militarização do conflito está em marcha e transporta com ela o germe de uma guerra civil (talvez a única via de saída para o regime). Uma reportagem do diário libanês Daily Star (23 de fevereiro) sobre o Exército sírio livre confirma dois elementos que a imprensa oculta frequentemente: este exército tem bases no Líbano (e para além disso também na Turquia); ele não hesita nas represálias confessionais, matando alauítas por vingança. Da mesma forma, combatentes iraquianos juntaram-se aos insurretos sírios, incluindo membros da Al-Qaida, o que foi confirmado pelo departamento de Estado dos Estados Unidos.

Estamos num impasse. A oposição – ou melhor, as oposições – é incapaz de derrubar o regime e o regime é incapaz de superar a oposição. Pode-se mesmo dizer que o futuro do regime está traçado e já não dura mais do que alguns meses. A questão é por conseguinte saber se o país se vai afundar na guerra civil ou conhecerá uma forma de transição política que necessita, queira-se ou não, de um diálogo.

É neste quadro que é preciso compreender o veto dos dirigentes russos e chineses à resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 4 de fevereiro. O texto tinha sido emendado para ter em conta algumas das suas objeções mas continuava a pedir a retirada das tropas governamentais sem falar da oposição armada, e a fazer referência ao plano da Liga Árabe, imposto pela Arábia Saudita, que implicava o afastamento de Bashar Al-Assad. Esta resolução podia servir de cobertura a uma intervenção militar? Obviamente, isso foi o que temeram Moscou e Pequim, escaldados com a precedente resolução1973 sobre a Líbia. Pode-se compreender as suas suspeitas, tanto que as declarações francesas e outras deixam entrever uma ação armada sob pretexto de proteger as populações.

A via da negociação

Então, não podemos fazer nada? Podemos. Mas as possibilidades não se reduzem apenas à opção militar. Por um lado, as pressões sobre a Síria, especialmente no domínio econômico, existem (elas podem ser reforçadas sob condição de terem como alvo os dirigentes e não a população) e leva já uma parte da burguesia que apoia o regime a se interrogar. Por outro lado, as primeiras missões da Liga Árabe, apesar das dificuldades, tinham servido para limitar a violência; foi a Arábia Saudita que obteve a sua retirada (é preciso ler o relatório que elas publicaram; não tem nada a ver com o que têm dito os meios de comunicação, a tal ponto que este texto foi escondido durante muito tempo); é necessário, pelo contrário, conseguir que estas missões recomecem e se alarguem. Por fim, ao contrário do que se tem escrito, nem os russos nem os chineses deram luz verde a Assad, mas tentam fazer pressão sobre ele.

Como relata um jornal libanês bem informado, as autoridades sírias abstiveram-se, por pressão dos russos, de utilizar a aviação e outras armas de guerra à sua disposição, na sua repressão atual – deste ponto de vista, não se está na situação de Hama em 1982. A via da negociação é estreita vai levar tempo. Enquanto isso, pessoas morrem... Mas uma intervenção militar faria ainda mais vítimas.

Além disso, mencionemos um interessante artigo de Efraim Halevy, antigo diretor da Mossad e antigo conselheiro nacional de segurança, aparecido no International Herald Tribune de 7 de fevereiro com o título “O calcanhar de Aquiles do Irã”. Ele explica, no essencial, que o derrube do regime de Damasco permitiria evitar a alternativa desastrosa: bombardear o Irã ou intensificar as sanções, o que poderia empurrar o preço do barril para além do suportável. Privando Teerão do seu aliado sírio, pelo contrário, enfraquecia-se o Irã consideravelmente.

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