domingo, 24 de janeiro de 2010

Chile: Reflexões pós-ressaca



Laura Greenhalgh
Estado de S. Paulo

O sociólogo Manuel A. Garretón explica a guinada à direita do Chile ao levar à presidência o senador e bilionário Sebastián Piñera. E critica a encruzilhada da Concertação que, em 20 anos, não se renovou nem soube capitalizar a popularidade de Michelle Bachelet.

"Desde 1988, quando partidos se uniram para enfrentar o plebiscito que disse "não" à pretensão de Pinochet manter-se no poder, a Concertação vem liderando um processo que mudou a sociedade. Foi a coalizão mais bem-sucedida da história do país. Ganha todas as eleições desde 1990, deu-lhes estabilidade, fortaleceu a democracia." Ouvi de Michelle Bachelet essa declaração efusiva no elegante salão azul do Palácio de La Moneda, em maio de 2006, quando a primeira mulher a chegar à presidência do Chile concedeu uma longa entrevista ao Aliás. Tal era o espírito da mandatária com o campo político que a sustentava. Se fossem transformadas em previsão, suas palavras desmentiriam o futuro.

Michelle Bachelet passará a faixa presidencial ao direitista Sebastián Piñera, misto de senador, empresário de sucesso e ricaço de hábitos extravagantes, que, naquele distante 2006, não assustaria nem o mais paranoico situacionista. Mas agora ele assustou - e levou. Só para recapitular: no primeiro turno, Piñera cravou 44% dos votos, empurrando ladeira abaixo os três candidatos de esquerda, Eduardo Frei (29%), pela Concertação, Marco Enríquez-Ominami (20%), independente, e Jorge Arrate (6%), pelo Partido Comunista. No segundo, Frei cresceu bem (48,3%), mas Piñera também expandiu seu eleitorado: foi para 51,6%. E assim, depois de 20 anos de uma coalizão que encerrou o mando de Pinochet e mudou a cara do país, eis que o Chile faz derecha, volver. "Não foi Piñera quem ganhou. Foi a Concertação que perdeu", adverte o sociólogo chileno Manuel António Garretón, enfatizando diferença crucial entre as duas premissas.

Esse é o tema central da entrevista que concede. Por que uma coligação que elegeu em sequência quatro presidentes, a bordo de um projeto de redemocratização de longo termo, perde a hegemonia e ainda mergulha numa crise? Por que Bachelet não converteu em votos para Frei a aprovação de seu governo, acima de 80%? Isso serve de advertência para o presidente Lula e sua candidata Dilma? Professor titular da Universidade do Chile e autor, entre outros títulos, de Pós-Pinochetismo na Sociedade Democrática, Garretón analisa a virada chilena. Com algum pesar e rigor com a atual mandatária.

Em 2006, a presidente exibia confiança no futuro da Concertação. Mas já havia sinais de fratura na coalizão de centro-esquerda, não?

O que eu acho é que não devemos falar de fratura em função dos resultados eleitorais de agora, porque se trata de uma situação bem mais complexa. Sim, no governo Bachelet já se identificara uma necessária mudança de ciclo político no interior da Concertação. Ninguém duvida que a coalização de centro-esquerda mudou o país, mas não logrou completar o projeto democratizador a que se propusera por manter intacta a institucionalidade da era Pinochet e por insistir no modelo econômico que trouxe desigualdade.

O que significa manter a institucionalidade da era Pinochet?

Não é apenas sobreviver no mesmo aparato constitucional, mas manter o mesmo tipo de embate entre forças políticas, as que alimentam o conservadorismo e as que propugnam a democracia. Esse embate continuou a se reproduzir em todas as esferas, no Parlamento, no Conselho de Educação, no sistema judiciário. Exemplo: Bachelet nomeou dois ministros para a Suprema Corte. Um deles defende a impunidade da repressão e justifica a violação dos direitos humanos no regime militar. E por que ela o nomeou? Porque não podia negar isso para a direita. É preciso reconhecer: a Concertação deu mais importância aos seus governos do que ao avanço institucional. Agora está pagando a conta.

Talvez no Brasil tenhamos uma visão difusa do quadro político chileno, no sentido de achar que Pinochet, ao morrer, levou consigo o pinochetismo e a linha-dura.

De modo algum. A direita chilena vive em suas duas vertentes clássicas: a autoritária e a oligárquica, ou plutocrata, que representa os ricos. No regime de Pinochet, não só a vertente dura se impulsionou - a oligárquica, também. E assim nasce uma direita civil de feição autoritária, que hoje faz barulho. Piñera, por sua vez, está alojado num campo democrático de centro-direita, mas também representa a plutocracia. Isso gera contradições num país de distintas classes médias e histórico de centro-esquerda. Pois bem, uma dessas classes médias conseguiu sair da pobreza, subiu na vida e sonha ter o sucesso de Piñera. Trata-se de uma franja social pequena, que muda de voto de acordo com seu projeto aspiracional. Isso do ponto de vista sociológico. Do ponto de vista político, a vertente autoritária, herdeira do pinochetismo e alojada na União Democrática Independente, a UDI, saiu-se bem nestas eleições parlamentares. Ao celebrar, havia grupos que gritavam "Pinochet, Pinochet, esta victoria es para usted". São minoritários, mas atuantes.

Piñera tenderá para a direita oligárquica ou para a direita autoritária?

Com os acenos que faz para a Concertação integrar seu governo, sinaliza que não quer, e nem pode, ficar no campo da direita. Se ficar, o risco de ser manipulado pelos autoritários é tremendo.

O senhor diz que o modelo econômico chileno não evoluiu desde os tempos do Pinochet. Mas seu pais é elogiado pelo crescimento expressivo.

No meu entender, o Chile não é tanto herdeiro do thatcherismo como é do neoliberalismo que sai da escola de Chicago, de Milton Friedman. Até porque o tatcherismo não desmantelou o Estado de bem-estar social inglês do mesmo modo como desmantelamos aqui, sob Pinochet. Neste país devastou-se uma economia de corte popular-nacionalista nos anos do regime militar. Tanto que hoje é consensual a avaliação de que o milagre econômico chileno foi feito mesmo pela Concertação, bastando para isso comparar dados de crescimento da era Pinochet com dados de crescimentos posteriores. É irrefutável. O modelo econômico do general foi implantado para "funcionar" numa sociedade de desiguais. A própria OECD apontou isso em relatório, a partir de análise do modelo educacional.

Então por que socialistas e democrata-cristãos, unidos, não operaram mudanças profundas?

Porque a coalizão caiu na armadilha do próprio êxito. Ela foi se saindo bem, ganhando eleição atrás de eleição e não se deu conta de erros que estava cometendo. Não fez uma reflexão crítica sobre as coisas que faltava realizar e nem sobre obstáculos que a impediam de dar um salto.

Mas o senhor não concorda que o governo Bachelet avançou em termos de proteção social e soube fazer o manejo da crise econômica que eclodiu no ano passado?

O governo Bachelet foi muito criticado nos primeiros anos, lembre-se. E ela mesma tinha baixa popularidade. Começou um ciclo ascendente ao implantar políticas de proteção social e subiu ainda mais com o manejo da crise. Esse bom manejo tem uma explicação: reservas, muito dinheiro que não fora investido até por más razões. Tudo bem, foi dinheiro usado em benefício da população e não para capitalizar bancos.

Terá sido um erro escolher Eduardo Frei para suceder Bachelet?

O erro não foi a escolha em si. O erro foi como a escolha se deu. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer o gesto de Frei e até homenageá-lo: ofereceu sua candidatura quando tinha 1% de intenção de voto. Foi para a disputa quando já havia candidatos do seu campo político em cena, como o ex-presidente Ricardo Lagos e o secretário-geral da OEA José Miguel Insulza. Só que nenhum dos dois estava postulando verdadeiramente a candidatura. Frei restou firme, com seu 1% inicial. Era o melhor candidato governista.

Por que Lagos e Insulza, que tinham visibilidade interna e internacional inclusive, caíram fora?

Perguntemos a eles (risos). Minha interpretação é meramente técnica: fizeram cálculos e preferiram não correr riscos. Foi um erro não terem se submetido a primárias abertas, como se cogitou. Primárias poderiam ter sido mobilizadoras. Teriam selado a adesão do independente Enríquez-Ominami e de Arrate, do PC, garantindo mais coesão ao campo político. Enríquez-Ominami acabou conseguindo 20% dos votos no primeiro turno, com uma candidatura sem projeto, sem futuro, apenas interessada em ganhar os descontentes. Resultado: não foi Piñera quem ganhou, mas a Concertação que perdeu. Agora o eleito terá que governar sem maioria no Parlamento, pressionado pela UDI, a direita dura que não quer avançar nas políticas de direitos humanos, que foi contra a instalação do Museu da Memória, que responde conservadoramente a temas como aborto, pílula do dia seguinte, união homossexual, etc. Inclusive é uma direita que não engole totalmente Piñera, tanto que lá atrás tentou impedir sua candidatura.

Que papel jogam os militares hoje?

Defendem basicamente as prerrogativas institucionais e vão fazer pressão para que se mantenha a reserva de 10% do cobre para as Forças Armadas, lei que o novo presidente anuncia rever. Seguem dando provas de que abandonaram a política.


Afinal, que segmento da população definiu a vitória da centro-direita?

Nesses 20 anos, tínhamos um padrão eleitoral delineado em dois grandes campos. Porém, emergiram aqueles 10% flutuantes do eleitorado, uma parcela de cidadãos que muda de voto porque deseja mudar de governo. E só. Foi a parcela que acabou dando a vitória à Aliança para o Chile. Há nisso grande responsabilidade de Bachelet.

Por quê?

O chefe de governo, no regime presidencial, tem que exercer papel de liderança no interior da coalizão. Fosse no parlamentarismo, seria diferente. Mas no presidencialismo é assim. Bachelet demonstrou ter essa liderança ao impedir a renúncia do presidente do Partido Socialista, Camilo Escalona, no segundo turno. A pergunta que se faz: por que não demonstrou a mesma presença durante todo o período no poder? Os presidentes eleitos pela Concertação, salvo Patricio Aylwin, que foi o primeiro governo, não deram importância aos partidos.

O senhor está dizendo que Bachelet deu mais importância à performance do seu governo do que a sua capacidade de liderança política?

Isso mesmo. Por mais sucesso que tenha um governo, e por maior que seja o bem que ele tenha promovido, o fato de não conseguir reproduzir esse êxito do ponto de vista eleitoral é um fracasso político. Não estou falando de uma liderança unicamente mensurável em votos, mas de uma liderança que oriente o debate de ideias.

Qual é o peso de Michelle Bachelet dentro da coalizão?

Como presidente, muito peso. Se a desvinculamos do cargo, vemos que é muito influenciada por setores do partido e não se assume como líder. Como estadista deixa a desejar.

No Brasil analistas e imprensa observam o comportamento eleitoral do Chile, pois há a situação de um presidente com alta popularidade, Lula, empenhado em transferir sua aceitação para uma candidata estreante em disputas eleitorais.

Popularidade é capital pessoal, não se transfere. Se assim fosse, 80% dos chilenos teriam votado em Frei. O que define campanhas é liderança, é conduzir o debate. Lula não passará popularidade para Dilma, isso é uma ideia absurda. Ele já transferiu popularidade para si mesmo, de um mandato para outro. Ponto. Agora, num regime como o chileno, onde não existe a reeleição e o voto não é obrigatório, daí o presidente é obrigado a liderar o processo político no interior da coalizão. Bachelet percebeu isso muito tarde, nos últimos momentos da campanha. Apenas jogou abertamente dois ou três dias antes das eleições do segundo turno.

O Chile nunca se inclinou ao populismo. Como será o relacionamento de Piñera com governos latino-americanos que têm esse perfil?

Penso que o Chile, em termos políticos, tem mais afinidades com o Uruguai do que com a Bolívia ou a Venezuela, onde o colapso dos partidos deu lugar às lideranças pessoais. Também se parece mais com Uruguai do que com a Argentina, governada por um partido com inúmeras divisões internas. O Brasil, no cenário regional, ainda é o país que melhor expressa o entrosamento entre Estado, partidos, movimentos sociais, setores populares e a tecnocracia. Isso inclusive ajuda o presidente Lula a ter toda essa exposição mundial. Já a nossa política externa não tem pretendido que o Chile dispute protagonismo com o Brasil. E temos mantido boa relação com os governos de centro-esquerda. Bachelet vinha encaminhando, com muito tato e junto a Evo Morales, o contencioso marítimo entre Chile e Bolívia - avançaram enormemente, mas, talvez agora haja um retrocesso. Em nome de um progressismo tecnocrata, Piñera pode aproximar-se mais de Felipe Calderón, no México, de Álvaro Uribe, na Colômbia, e mesmo dos EUA. Ou praticar uma política externa isolacionista, o que é ruim.

No La Moneda, Bachelet comentou que quatro anos era pouco tempo para governar. Preferiria mandato de cinco anos, sem reeleição.

Isso não foi para a frente, embora haja setores que defendam a ideia. Não creio que tivesse sido um bom caminho. A tradição chilena sempre foi de mandato presidencial de seis anos, sem reeleição. Mas depois do plebiscito do "não", em 1988, houve um câmbio radical para derrubar o modelo implantado por Pinochet - oito anos, sem reeleição - substituindo-o pela metade. É pouco? Não creio. Penso que a renovação a cada quatro anos, em paralelo com as eleições parlamentares, cria uma boa dinâmica. A Concertação mesmo, a partir desta derrota, terá que trabalhar desde já na própria renovação.

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