sábado, 4 de outubro de 2008

Capitalismo vive seu Ensaio sobre a Cegueira


Saul Leblon
Carta Maior

No cinema e no romance não há forças de redenção para a anomia descrita por Saramago. Algo semelhante parece ocorrer nesses dias marcados por um certo conformismo bovino na fila do matadouro. Reside aí, talvez, a verdadeira dimensão sistêmica da crise. Não se trata apenas de um atributo de abrangência econômica, mas sim da virtual incapacidade política de seus protagonistas para acionar uma mudança de rumo.

Numa das cenas do filme “Ensaio sobre a Cegueira”, adaptação de Fernando Meirelles para o romance de Saramago, o personagem pergunta à esposa cuja visão subsiste na solidão de um mundo que perdeu a capacidade de enxergar e se auto-gerir: “Há sinais de governo?” A resposta é dada pelo angustiante passeio da câmera nas ruas de uma metrópole onde nada funciona. O que as lentes mostram são bandos esfarrapados e famintos vagando sem destino. Modalidades previsíveis da barbárie preenchem um hiato em que o Estado desmoronou e os valores da convivência humana se eclipsaram. A auto-regulação dos mercados não funcionou.

Quem assistir ao filme nesses dias de convulsão financeira dificilmente resistirá à analogia. A crise iniciada nos EUA, que aos poucos contamina o resto do planeta, é o Ensaio sobre a Cegueira de quem vive sob a supremacia dos mercados desregulados no alvorecer do século XXI. Da esquerda à direita, dos trabalhadores aos banqueiros, passando por governantes, economistas e líderes políticos quase ninguém consegue enxergar a real extensão de um colapso que se arrasta desde agosto de 2007. Num crescendo ele se derrama de um setor a outro, salta de país a país como uma fatalidade intangível e ingovernável cuja visita cabe apenas aguardar. Mais inquietante, sobretudo, é a invisibilidade de alternativas que possam conduzir a sociedade a uma nova visão da economia e do seu desenvolvimento, escapando à propagação inexorável de solavancos que eclodem em intervalos cada vez menores, com virulência cada vez maior (1987-1988-2001-2003-2007-2008).

No cinema e no romance não há forças de redenção para a anomia descrita por Saramago. Algo semelhante parece ocorrer nesses dias marcados por um certo conformismo bovino na fila do matadouro. Reside aí, talvez, a verdadeira dimensão sistêmica da crise. Não se trata apenas de um atributo de abrangência econômica, mas sim da virtual incapacidade política de seus protagonistas para acionar uma mudança de rumo, comportando-se cada qual como parte indissociável da engrenagem em pane. São tempos trágicos nesse sentido. Como na alegoria do escritor português, o que se “enxerga” por entre um noticiário errático são figuras trôpegas de uma tragédia grega. Cada passo hesitante que os governantes dão para impedir que ela se espalhe e se cumpra é mais um passo que pavimenta o caminho para que ela avance. A cegueira é a jaula ideológica construída ao longo de décadas de recuos e concessões aos mercados e a seus dogmas.

Múltiplos de US$ 100 bilhões de dólares ocupam as manchetes há semanas anunciando a solução definitiva para o impasse. No dia seguinte uma nova quebra sinaliza a dinâmica de um colapso subterrâneo. O que se esfumou foi o indispensável consenso que sustenta a fixação dos valores de troca no coração do sistema. Os mercados financeiros não sabem, ou escondem, quanto valem os ativos podres inscritos em seu metabolismo. A segurança que sustenta e ordena a arquitetura do valor de troca no capitalismo patina perigosamente. Bilhões e trilhões se equivalem e nada detém o esfarelamento em marcha. No filme de Fernando Meirelles um grupo de cegos envereda pelo mesmo labirinto quando assume o poder num campo de concentração. Em princípio mimetizam a ordem anterior exigindo dinheiro em troca da comida escassa. Depois, pragmáticos, adotam o valor de uso: “Enviem as mulheres”.

O que se assiste hoje é um movimento de fuga para a segurança cuja última trincheira, antes de a vida imitar a arte, são os títulos do Tesouro norte-americano. Não importa que os treasures ofereçam rendimento quase negativo nessa hora. O que a riqueza fiduciária mira é um abrigo de poder. Busca-se o derradeiro oásis capaz de legitimar, militarmente se preciso for, a suposta equivalência entre a riqueza fictícia e fatias da riqueza real disponíveis na sociedade – ouro, máquinas, terras, petróleo, alimentos, armas...

A inexistência de forças para impor uma outra regulação empresta coerência à intuição dos detentores da riqueza. Ao contrário da parábola de Saramago, o capitalismo real não se auto-destrói. Assim como não existe auto-regulação não há auto-revolução do capital. Lênin deduziu que política é economia concentrada. Mas se ela não atingir a densidade necessária à esquerda, a resposta virá da direita como de fato ocorre nesse momento. Na crise de 29, quando a Bolsa derreteu e o desemprego atingiu um em cada quatro norte-americanos (em 1933 a taxa de desemprego foi de 24,9%), a relação de forças existente no mundo era bem diferente da atual. Doze anos antes do crak uma revolução operária instalou o primeiro governo comunista da história numa das maiores nações do planeta. A Alemanha drasticamente atingida pela confluência entre a crise internacional e as reparações da Primeira Guerra, também viu eclodir um poderoso movimento socialista que quase tomou o poder no país. Seu fracasso levou à ascensão expansionista do nazismo.

O economista Paul Krugmann lembra ainda que os desempregados e veteranos da Primeira Guerra Mundial ergueram uma favela na principal avenida de Washington durante a crise. Famílias famintas, desempregados rurais e urbanos entraram em conflito com o Exército norte-americano nas ruas de cidades em vários pontos do país. O PIB recuou 27% entre 1929 e 1933. Nove mil bancos quebraram. A taxa de desemprego só retornaria a um dígito com o esforço de mobilização provocado pela Segunda Guerra, em 1941. Foi um tempo de miséria e simultâneo avanço social, com expansão do sindicalismo e das idéias socialistas em todo o mundo. Foi essa relação de forças que impôs à crise de 29 um New Deal feito de uma dura regulação estatal dos mercados financeiros, associada a frentes de trabalho, bônus de alimentos, refinanciamento de moradias e investimento público maciço em infra-estrutura, habitação e agricultura. É a ausência dessa mesma correlação que dá ao atual secretário do Tesouro norte-americano, Henry Paulson, a liberdade de um bombeiro vesgo, cuja mangueira só enxerga a cobertura do edifício e ignora as chamas que devoram os andares debaixo.

A história destes dias é a história de uma agonia repetidas vezes anunciadas nos últimos anos. Mas a agonia ainda não é a morte para um neoliberalismo comatoso e cego. Vale relembrar a lição de Gramsci: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não consegue nascer. Nesse interregno uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”.

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