Teoria e Debate
Há um debate acadêmico corrente sobre se os diplomatas são servidores de Estado ou de governo. Os diplomatas que defendem a primeira opção, particularmente aqueles que criticam a política externa brasileira levada adiante pelo governo Lula e Dilma, o fazem argumentando que trata-se de uma política de Estado e não de governos ou de partidos. Além disso, a política brasileira representaria um “consenso” construído ao longo de décadas de atuação do Itamaraty. Dessa forma, a burocracia do Ministério das Relações Exteriores também se insularia da incidência do próprio governo e de grupos de interesse da sociedade civil sobre a política externa, podendo se dedicar à evolução de sua própria carreira profissional.
O contraponto a essa visão é reconhecer a política externa como uma política pública, embora com algumas características diferentes das demais por administrar relações internacionais e tratados com caráter duradouro ou permanente. Porém, como dizia o ex-ministro de Relações Exteriores, embaixador Celso Amorim, para servir ao Estado é necessário servir ao governo, e as circunstâncias que o governo enfrenta podem se alterar afetando a política. Além disso, um consenso cada vez maior entre os especialistas em relações internacionais é a crescente transnacionalização das relações internacionais e o fato de o Estado ter deixado de ser o ator unitário delas há muito tempo, compartilhando essa responsabilidade com outras esferas de governo, organizações sociais, empresários, sindicatos, entre outros.
Contudo, o atual ministro golpista das Relações Exteriores do Brasil, senador José Serra, simplesmente atropelou esse debate e submeteu a burocracia do Itamaraty não apenas a serviço de sua visão de política externa e à de seu partido, mas também à sua campanha para a Presidência da República em 2018.
No que tange ao primeiro aspecto, ele resolveu se relacionar prioritariamente com os partidos políticos de direita na América Latina, mesmo em detrimento de governos legítimos como os da Venezuela, Bolívia e outros, inclusive hostilizando-os como tem feito constantemente com o governo Maduro. Dessa forma estabeleceu alianças prioritárias com os governos Cartes do Paraguai e Macri da Argentina, além de ofender o governo do Uruguai ao tentar cooptá-lo por meio da oferta de participação em negociações comerciais internacionais. Serra já registra em seu currículo a provocação de desavenças com a Organização para a Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização dos Estados Americanos (OEA), Venezuela, Equador, Bolívia e Uruguai. Durante os governos Lula e Dilma sempre houve relações respeitosas com todos os países, mesmo quando não havia afinidades ideológicas, como era o caso do governo Uribe da Colômbia, com quem o presidente Lula se encontrou diversas vezes para discutir tema de interesse das duas nações.
O próximo passo de Serra será impor ao Itamaraty, gostem os diplomatas ou não, a adesão do Brasil aos acordos econômicos de nova geração como TPP e Tisa, além de promover a entrega do nosso petróleo às empresas multinacionais, pois é delas que ele espera o apoio à sua campanha para presidente da República em 2018, além da vocação entreguista de seu partido e de sua coalizão política. Seria engraçado, se não fosse trágico, que seu partido gosta do desenvolvimento do capitalismo, mas não no Brasil!
A submissão do Itamaraty a seus planos eleitorais começou pela portaria que orientou todas as repartições diplomáticas a defenderem o golpe de Estado que tirou a presidenta Dilma do governo sob a alegação de que a Constituição foi cumprida. De fato, o rito foi seguido, o único detalhe é que não havia crime que o justificasse. Durante a Conferência Anual da Organização Internacional do Trabalho (OIT) deste ano, um jovem diplomata da Missão de Genebra passou, porque quis, pelo constrangimento de ser interrompido ao defender o golpe pelo presidente de uma das Comissões de Trabalho, sendo alertado que não se tratava da pauta da discussão, além de gerar ruidosa indignação na delegação dos trabalhadores.
Pouco depois, o ex-ministro de Relações Exteriores da presidenta Dilma, embaixador Luiz Alberto Figueiredo, que servia à Embaixada do Brasil nos Estados Unidos, tentou usar o mesmo argumento contra a denúncia do golpe por quarenta parlamentares americanos. Apesar de sua atitude cordata, foi transferido para a embaixada em Portugal, para dar lugar ao tucano Sérgio Amaral. Portugal é um país que tem muita afinidade cultural com o Brasil, mas é para onde frequentemente são nomeados embaixadores sem vínculo com a diplomacia, como o ex-chefe do SNI do governo Médici, general Carlos Alberto da Fontoura nos anos 1970, ou mais recentemente políticos como José Aparecido de Oliveira e Paes de Andrade.
O aparelhamento do Itamaraty para os fins políticos de Serra ficou ainda mais evidente na medida em que ele deslocou dois assessores, que não têm qualquer relação com política externa, de seu gabinete no Senado para o ministério. Um deles é um egresso da Polícia Militar de São Paulo, Hideo Augusto Dendini, envolvido com o Massacre do Carandiru em 1992, e o outro, Luiz Paulo Alves Araújo, investigado na operação Satiagraha. Para completar o quadro de “tutti buona gente” que cerca o chanceler golpista, ele concedeu passaporte diplomático para um pastor da Assembleia de Deus e sua esposa, sendo este investigado pela Lava Jato como suspeito de intermediar propina para o ex-presidente da Câmara de Deputados Eduardo Cunha. Realmente, ninguém merece!
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