Carta Maior
Há exatos 30 anos, o Brasil deixava para trás uma sangrenta ditadura e inaugurava o maior período democrático que o país já teve. No dia 15 de março de 1985, tomava posse José Sarney, o primeiro presidente civil após 21 anos de governos militares. No ano seguinte seria iniciado um processo constituinte que, se não sanou as injustiças seculares do país, deu ao Brasil instrumentos para resgate da cidadania dos brasileiros. De lá para cá, o país ganhou uma nova Constituição, foi sete vezes às urnas para eleger presidentes da República e construiu o mais longo período de estabilidade democrática de sua história.
Nesse período, todavia, as mazelas do sistema político-eleitoral permaneceram intocadas. Os interesses consolidados de gerações de políticos que seguiram a trilha da política tradicional – e tiveram poucos problemas de convivência com o regime totalitário – foram impostos, na Constituinte, sobre os que vinham das lutas democráticas e populares. Os sistemas eleitoral e partidário não foram adequados à realidade democrática porque isso significava ameaçar o status quo dos políticos que dominavam a política na ditadura, e antes dela, e antes ainda.
Agravaram o quadro de inadequação de partidos e vulnerabilidade do sistema eleitoral às pressões do poder econômico uma mal-resolvida discussão sobre sistema de governo; pressões internas do aparelho de Estado; o jogo pesado dos grandes veículos de comunicação para manter um quase monopólio sobre a opinião pública; o enorme poder de controle dado ao Legislativo sobre um Executivo que saía hipertrofiado do período ditatorial; pressões diretas do Poder Judiciário, que saiu da Constituinte sem ter de se submeter a qualquer forma de controle externo; e um cálculo malfeito da quantidade de poder que se poderia dar a órgãos de controle externo do Executivo sem afetar a governabilidade de um poder que, a partir de então, afinal, seria ocupado por presidentes eleitos.
O resultado desse mistura-e-manda não poderia ser uma democracia sem defeitos. O mais longo período democrático do país sobrevive milagrosamente a uma realidade em que a política institucional é um palco de competição e disputa permanentes entre poderes.
A política eleitoral e partidária permaneceu intocada, reproduzindo a aliança histórica entre elites políticas e econômicas. A permissividade da lei eleitoral fez uma ligação quase direta entre ambos: as elites econômicas financiam fortemente os candidatos, mantêm políticos tradicionais no cenário político e cooptam novos quadros; as eleições parlamentares, mediadas pelo dinheiro privado, encurralam qualquer governo e tornam altíssimo o custo da governabilidade. O financiamento empresarial de campanha tornou o sistema político altamente vulnerável à corrupção. E quanto mais o poder econômico desmoraliza a política, e suprime dela o papel transformador que, por princípio, deve ter, mais a política se torna sua refém. Quanto mais a governabilidade fica comprometida pela soma da alta representação do poder econômico no Legislativo e das dificuldades de formação de maioria impostas pelo sistema político, mais aumenta o poder de barganha dos grandes interesses com o Executivo.
O monopólio dos meios de comunicação por poucas e conservadoras empresas garante o clima do horror à política e aos políticos, sem em nenhum momento discutir as verdadeiras limitações da democracia brasileira. É mais fácil jogar com o preconceito e consolidar sensos comuns – como a de que a “política é para corruptos”, “a democracia é cara” –, desqualificadores da política, do que discutir profundamente as raízes do problema. E, numa realidade onde as chances eleitorais dos setores conservadores na Presidência da República é fraca, a desqualificação da democracia anda junto com a desqualificação do eleitor. A ridicularização da escolha política, a “responsabilização” das parcelas mais pobres da população pelos problemas do país são tentativas de impor um senso comum reacionário, conservador: a qualidade da política, segundo essa visão, é dada não pela qualidade da democracia, mas pela qualidade do eleitor. Em nenhum momento se discute as candidaturas milionárias, bancadas por interesses econômicos, que distorcem completa e absolutamente o sentido da escolha popular.
Chegou a hora de vencer as escaramuças dos interesses sombrios e renovar a democracia brasileira. A crise que se aprofunda não é meramente econômica. Ela é, sobretudo, política. A democracia brasileira deve sobreviver a essa crise de crescimento porque nós, aqueles que batalharam no passado nas trincheiras contra a ditadura e continuaram a lutar por justiça social, saberemos vencer preconceitos e empreender a ação política transformadora.
Para que isso ocorra, as forças progressistas devem se unir em torno de uma proposta de reforma política, capaz de salvar a política do cativeiro a que foi jogada pelo poder econômico, e ganhar as ruas. A exemplo do fim da ditadura e das conquistas sociais conquistadas na Constituinte, esta batalha tem que mover cada democrata deste país, cada pessoa de bem, para que todo brasileiro tenha direito a voz, voto e justiça.
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