segunda-feira, 25 de março de 2013

Iraque à beira de outra guerra 10 anos depois

Karlos Zurutuza
IPS

“Sabemos que estamos à beira do desastre e já nos estamos a preparar para isso”, confessa o deputado curdo Jalid Shwani no Iraque, quando se completam 10 anos da invasão do país, liderada pelos Estados Unidos. O aniversário, que ocorreu quarta-feira 20, ocorre num momento em que o Iraque está mergulhado no paradoxo de a iminência de um novo conflito armado ser um dos poucos pontos em relação ao qual a maioria dos iraquianos está de acordo. Shawni conversou na sua residência de Kirkuk, 230 quilómetros a noroeste de Bagdad, onde curdos, árabes e turcomanos disputam a cidade que mergulha os seus alicerces sobre uma das maiores reservas de petróleo do mundo.

Enquanto se espera um referendo sobre o estatuto deste governo, que vem sendo adiado desde 2007, Kirkuk entra numa espécie de “limbo” legal enquanto sofre constantes ataques suicidas e assassinatos seletivos. “Kirkuk não é outra coisa senão o poço negro em que se reflete hoje o Iraque”, prossegue Shwani. “Não há acordo político, nem diálogo, nem confiança entre as diferentes comunidades”, enumerou este integrante do Conselho de Representantes, o parlamento nacional com sede em Bagdade. A cidade natal de Shwani é uma imensa e informe sucessão de casas de betão enegrecidas pelo fumo que emana dos poços petrolíferos. Só as bandeiras de cor azul turquesa em postes e varandas rompem a monocromia para recordar que os turcomanos são maioria no bairro de Tarik Bagdad.

Arshad al Salihi, líder da Frente Turcomana, a principal coligação desta minoria, e o único membro de sua nação no parlamento iraquiano, recebeu a IPS no seu escritório. “Depois da invasão, todos esperávamos uma melhoria nos direitos humanos, mas a verdade é que hoje nos encontramos prostrados pelo sistema”, lamentou al Salihi, para quem a Turquia é o único modelo de democracia em todo o Médio Oriente. “Achamos que a guerra civil é iminente e estamos muito assustados. Se a situação acabar por explodir, vai nos surpreender em 'terra de ninguém’. Sempre foi assim”, explicou, em referência ao povo turcomano, que tem raízes turcas.

Talvez o medo comece a calar na população, depois das duas condenações à morte impostas a Tarik al Hashemi, líder da coligação que englobava o voto sunita e vice-presidente do país até dezembro de 2011. Foi então que o próprio primeiro-ministro, Nuri al Maliki, o acusou de “terrorismo”, umas horas apenas depois da retirada oficial das tropas dos EUA. Não em vão, al Maliki, de confissão xiita, também é ministro do Interior e da Justiça.

“Não somos baathistas”

Desde dezembro passado, dezenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas de Nínive, Ambar e Saladino, as províncias predominantemente sunitas, a oeste e noroeste de Bagdade. Ninguém se surpreende por as revoltas mais importantes desde o início da “primavera iraquiana", de fevereiro de 2011, ocorrerem nas regiões ocidentais do país.

Isso porque os sunitas no Iraque pós Saddam Hussein – que governou o país entre 1979 e 2003 e foi enforcado em 2006 – observam com espanto como lhes são fechadas as portas do trabalho, ao mesmo tempo que se abrem as da prisão. “Os sunitas no Iraque só são maioria nas prisões”, disse à IPS o governador da província de Ambar, Mohammad Qasim Abid.

Os protestos contra o governo começaram a tomar corpo em dezembro de 2012, depois da detenção dos guarda-costas de Rafie al Issawi, proeminente líder sunita no Poder Executivo. Durante o regime de Saddam Hussein e do partido Baas, muitos cargos do poder foram ocupados por sunitas, mas não existia a divisão sectária de que hoje padece o Iraque. Na cidade de Mossul, no Norte, Ganem Alabed, coordenador dos protestos na capital da província de Nínive, comentou que dezenas de milhares de manifestantes se congregam a cada sexta-feira na central praça de Ahrar. “Poderíamos ser muitos mais se não fosse o cordão policial”, assegurou Alabed. O ativista denunciou no seu momento o assassinato a tiros do manifestante Mohammad Saleh, a mãos da polícia, a 8 deste mês.

A organização Human Rights Watch corroborou esta morte através de depoimentos de manifestantes obtidos no lugar, que confirmaram também outras agressões por parte das forças de segurança. Supostamente, soldados iraquianos teriam levantado obstáculos à evacuação dos feridos. Incidentes semelhantes ocorreram nos últimos três meses por todo o Oeste iraquiano. A 25 de janeiro, soldados mataram a tiros nove manifestantes, ao abrir fogo sobre uma marcha de protesto em Faluja, 60 quilómetros a oeste de Bagdade.

O primeiro-ministro iraquiano usa as mesmas palavras do presidente sírio, Bashar al Assad, ao denunciar a existência de “agentes estrangeiros” por trás das manifestações. Da mesma forma que o seu aliado sírio, al Maliki tenta “isolar o vírus”. Com esse objetivo, fecham-se as fronteiras com a Síria e a Jordânia, limítrofes das regiões sunitas. É igualmente bloqueado o acesso à imprensa. Como resultado, as imagens das manifestações chegam como as da vizinha Síria: em vídeos gravados por telemóveis e colocados no Youtube.

A sensação de “já visto” começa a ser recorrente. Até começa a falar-se de um “Exército Livre Iraquiano”, em clara imitação do Exército Livre Sírio, a organização armada que aglutina a maioria dos opositores ao governo de al Assad. As mobilizações em Kirkuk são bem mais modestas, dado o carácter misto da sua população. No entanto, isso não impediu que o coordenador local dos comités de protesto, Bunyan al Ubaidi, morresse baleado em frente à sua casa, no sábado 16.

“É o nosso primeiro mártir nesta nova etapa”, lamentou Ahmed al Ubaidi, membro da mesma tribo que o assassinado e porta-voz do Projeto Comum Árabe, a principal coligação política que reúne 24 organizações árabes de Kirkuk. “Primeiro sofremos a invasão dos americanos e depois a do Irão. Não somos baathistas, mas também não queremos viver sob um regime governado por políticos leais a Teerão”, denunciou este antigo oficial do exército de Saddam Hussein.

Al Ubaidi negou que as revoltas sejam despoletadas pela guerra civil na vizinha Síria e fez questão de afirmar que os protestos “não reclamam nada além de direitos e de democracia para todos os iraquianos”. No entanto, o veterano ativista não vacila na hora de denunciar que a Unidade Tigre – um grupo militar composto por 60.000 homens, todos árabes xiitas – está estacionada na região. “Al Maliki mandou esta unidade para a região com a desculpa de garantir a nossa segurança, mas o seu único objetivo é proteger o regime em caso de a crise se agudizar”, assegurou Al Ubaidi. O seu resumo dos últimos protestos é bem mais gráfico: “Os manifestantes plantaram uma palmeira e agora esperam recolher as tâmaras”.

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