Luiz Werneck Vianna
Contraponto
A marca de um grande autor, como Gramsci, está na capacidade da sua obra ter sabido não só formular uma compreensão das questões presentes em seu tempo como, bem para além delas, ter deixado um repertório de validade permanente a transcender a circunstância em que foi produzida. No caso de Gramsci, envolvido como sempre esteve com os problemas da sua sociedade, havia a plena consciência de que a sua reflexão, tendo como ponto de partida o aqui e o agora, não deveria se deter na casuística dos fatos presentes, mas sim sondar o que havia de universal em suas manifestações. E foi sob essa inspiração, que, em suas palavras iniciais nas Cartas do Cárcere, fez estampar a orgulhosa divisa für ewig (para sempre).
Gramsci, como é sabido, escreveu os textos dos Cadernos, que começa redigir em 1929, três anos após sua prisão pela polícia política do fascismo italiano, sob a forma de fragmentos a serem desenvolvidos sistematicamente quando viesse a oportunidade, que não veio, pois morre em 1937 na condição de prisioneiro.
Embora a atenção crítica do autor se dirigisse para um elenco muito diversificado de questões, indo da literatura à política e à filosofia, passando por uma refinada intervenção em economia política, seus múltiplos objetos, contudo, sempre estavam aplicados para uma única direção: exausto o ciclo aberto pela Revolução de 1917, quais as novas circunstâncias com que se confrontava a luta pelo socialismo e que inovações teóricas eram exigidas a fim de levá-la à frente.
Apartado do convívio social, a matéria-prima das suas reflexões nos Cadernos será a da sua rica experiência, primeiro, como militante político e, depois, como dirigente do Partido Comunista Italiano (PCI). Elas serão processadas à luz das informações que recebe sobre o estado de coisas reinante no país, no partido e no mundo, da sua cunhada Tânia Schucht e do seu amigo Piero Sraffa, um brilhante economista radicado na Inglaterra, ambos com permissão para visitá-lo na prisão. Graças a eles, Gramsci mantém-se antenado com os fatos da política italiana e da cena internacional, nos anos dramáticos de emergência do nazismo na Alemanha, com indisfarçáveis sinais de guerra iminente entre as principais potências europeias, e de consolidação do regime fascista em seu país.
Se as suas referências políticas, antes da prisão, já vinham mudando, em particular na caracterização do que deveria ser a estratégia do movimento socialista no Ocidente em oposição àquela que tinha preponderado na Rússia, uma formação econômico-social de tipo “oriental”, os Cadernos testemunham o triunfo teórico do seu autor sobre essa decisiva questão.
Se no Oriente o Estado era muito poderoso, enquanto seria fraca e gelatinosa a sociedade civil sobre a qual se assentava, no caso de colapso das suas estruturas de poder, ele se tornava vulnerável à apropriação por parte dos seus adversários.
No Ocidente, diversamente, em razão da complexidade e do vigor da sua sociedade civil, uma tentativa de conquista do Estado por parte de um grupo antagonista teria de se confrontar com uma rede de trincheiras – as agências privadas de hegemonia, no léxico do autor – com ele intimamente articulada e que consistiria em um sistema intransponível em defesa da ordem estabelecida.
As repercussões dessa nova concepção do Estado ocidental moderno, visto como um aparelho de coerção encouraçado por um consenso socialmente produzido nas agências da sociedade civil, implicava um giro radical na estratégia do movimento socialista: a ênfase no político-militar deveria ceder lugar ao político-cultural, à luta pela hegemonia da direção da vida social. Tal operação teórica, presente em germe em textos anteriores à sua prisão, como em A Questão Meridional, somente ganham sua plena expressão nos Cadernos, assim como sua experiência juvenil nos conselhos operários de Turim, nas primeiras décadas do século, vai aguardar o momento de reflexão no cárcere para se converter nas páginas clássicas sobre o americanismo e o fordismo.
Gramsci revive na prisão, sob a forma de um pensamento refletido, o seu passado. Dele extrai uma teoria nova, o que lhe vai permitir observar a cena contemporânea com categorias originais, instituindo um campo próprio para o estudo do processo de modernização capitalista, em particular na modalidade de modernização autoritária, tal como em suas análises sobre o corporativismo italiano. A precocidade e o alcance de sua pesquisa teórica sobre esse assunto, antecipando-se em décadas a feitos da ciência política contemporânea, são bem indicados na formulação do seu conceito de revolução passiva, sua maior contribuição para os estudos dedicados à mudança social, hoje de uso generalizado.
Nessa coletânea de artigos de importantes especialistas italianos na obra gramsciana, reunida por Luiz Sérgio Henriques e Alberto Aggio, respeitados intérpretes do legado do genial sardo – o prefácio deles não se pode não ler – o leitor encontrará um bom mapa do estado das artes e do tipo de recepção contemporâneos às extraordinárias criações deste grande autor que foi Gramsci.
Esta obra compoe-se de ensaios selecionados de Gramsci em seu tempo, originalmente organizado por Francesco Giasi e publicado em dois volumes (Roma: Carocci, 2008), com exceção das contribuições de Francesca Izzo e de Giuseppe Vacca, incluidas especialmente nesta edição brasileira.
Esta obra compoe-se de ensaios selecionados de Gramsci em seu tempo, originalmente organizado por Francesco Giasi e publicado em dois volumes (Roma: Carocci, 2008), com exceção das contribuições de Francesca Izzo e de Giuseppe Vacca, incluidas especialmente nesta edição brasileira.
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